Verion caminhava numa floresta ao nascer do sol. Seguia devagarinho e cabisbaixo, ainda tomado pela sonolência que pesava suas pálpebras. A bolsa que pegou no galpão, pertence de Elta, balançava de um lado para o outro.

    A irmã pediu que comprasse algumas coisas na cidade para um experimento. Ele não queria ter saído tão cedo, mas ela foi muito convincente com um argumento robusto: — Vai lá ou vamo moooorrer!!!

    A trama de que um deus havia matado seu pai e iria pessoalmente atrás deles ficava cada vez mais absurda e abstrata em sua cabeça. Evitava pensar muito na situação, não era exatamente produtivo ficar chocado o dia inteiro.

    Aproveitando que era caminho, iria até uma cabana na floresta, próxima a um rio. Não visitava muito aquela pessoa, mas lembrava a localização.

    A cabana ficava bem no topo de uma elevação no terreno, fora construída lá para maior visibilidade dos arredores. Restavam apenas tocos de árvores ao redor, todas cortadas.

    — Jeremiah! — Aguardou algum tempo e, como não obteve uma resposta, subiu à cabana.

    Quando ia bater na porta, ouviu uma barulheira no interior como se fosse desabar. Um garoto loiro saiu de lá todo arranhado e com os braços enfaixados. Os trapos que vestia estavam mais esfiapados do que de costume.

    — Fala Verver, tudo b-beleza?

    — O que aconteceu?

    Cruzou os braços para tentar parecer maneiro e disse: — Uma família de ursos entrou na minha humilde cabaninha, mas tá tudo sob controle!

    Roooaaarrr!

    — SAI FORA MALUCO! — Ele trancou a porta de madeira às pressas, quase deixando a chave escapulir entre os dedos.

    Verion ficou com cara de bobo, imaginando três ursos usando talheres para comer mingau na mesa da cozinha dele.

    — Tenta adotar eles — disse como se fosse algo tão sensato como dizer que a água é líquida.

    — Não dá! Ô bicho burro, diz aí o que tu quer logo.

    — Só vou comprar umas Quilis na cidade. Quis passar aqui pra saber se você tava bem.

    — Ah, era isso. Tô legal sim… — Jeremiah estreitou o olhar. — Mas calma ae, isso não é proibido pra menor de idade?

    — Ó o urso vindoooo! — O baixinho apontou em uma direção aleatória.

    — Sério? — Ele olhou para o lado e, quando notou, o visitante já havia desaparecido.

    Jeremiah encheu os pulmões de ar fresco, destrancou a porta e pulou para dentro da casa novamente. A batalha pelo mingau que cozinhou continuaria por algum tempo.

    O caçula da família Velgo seguiu caminho até Aludra.

    A cidade era ponto de encontro para pesquisadores da natureza e comerciantes de ervas. Pela ótima qualidade do solo da região, diversas plantas cresciam muito saudáveis, o que aumentava a eficiência das poções.

    O maior polo comercial de Aludra ficava nas sombras de um enorme templo em homenagem ao Deus da Aniquilação. No topo da construção, uma estátua de dragão lançava seu olhar sobre a região. Tendas coloridas espalhavam-se pelas ruas, tantas que dificultavam a locomoção. Vendiam inúmeros itens.

    “Devo conseguir fazer alguma coisa, mas ainda é pouco…”

    Quando foi pegar algum dinheiro para fazer essa compra, Mirya não permitiu que levasse, sem dar uma justificativa ao filho. Ele não contestou por medo do olhar dela, e por estar lerdo de sono. Restou pegar um pouco de dinheiro que a irmã tinha guardado no galpão.

    Tendo pago e pego os produtos, colocou todos em sua bolsa. Seguiu pelo caminho de onde veio e parou para bisbilhotar a situação de Jeremiah. O garoto estava genuinamente argumentando com um urso e apontando o dedo na cara dele.

    O urso tentou mordê-lo e levou um soco flamejante. O animal fugiu e o loiro foi ao chão como uma folha de papel; sua energia mágica, o Roha, era tão curta quanto seu senso.

    “Ele vai ficar bem.”

    Verion, voltando pela longa estrada, sentiu estar sendo observado. Um belo corvo o encarava dentre as árvores. Parecia relaxado, apenas seguindo com o olhar.

    — E você aí? — Verion abriu a bolsa e pegou um pequeno biscoito esfarelado, segurando-o na palma da mão.

    O corvo pousou no braço dele e comeu o biscoito antes de falar: — Obrigado e volte para casa.

    — Pera, cê falou?!

    A ave levantou voo e desapareceu no meio da mata carmesim. Ele ficou boquiaberto, e apertou o passo para chegar em casa logo.


    À beira de um rio, nas proximidades da residência Velgo, duas figuras destacavam-se sob a luz do sol. O som da água corrente era a única coisa boa a ser ouvida por lá.

    O homem de cabelo branco enrolado no pescoço girava o revólver entre os dedos. Uma expressão de tédio estampava seu semblante. Mirya, com sua lança, raspava o chão pedregoso da margem, fazendo alguns desenhos de rostos que não via há tempos.

    — Vai demorar muito mais para que faça isso? Tá ficando chatinho já… — indagou sem desviar o olhar da arma.

    — Sei que tenho fama de terrível por conta dos meus atos naquela guerra, mas não sou tão desalmada a ponto de fazer isso com tamanha casualidade.

    — Curioso você dizer que não é desalmada, né minha queridinha? Aceitou fazer um trato mesmo sabendo que estou envolvido na morte do Elta.

    — Calado! Como alguém que viveu por milênios não aprendeu a virtude da paciência?! — A ponta da lança agora mirava a testa dele.

    — Seeeeeeeu horário limite é até o anoitecer! Quando terminar, se encontre com Karl Cettuwals em Raptra, ele explicará o resto. — Abriu um sorriso tranquilo.

    — T-tudo bem.

    — Tchauzinho, e se me trair vai virar estatística de mortalidade, hihihi!

    Como a escuridão diante da luz, o imortal desapareceu, deixando-a a sós com os próprios pensamentos. Mirya enfiou a lança no solo e a usou de apoio enquanto se questionava de seus atos. Sentiu o peso do mundo sobre os ombros, e um aperto no coração que gritava as dores de uma escolha sem retorno.

    “Meus três filhos me odiarão no fim, não há como evitar… Preciso acabar com isso e sumir do mapa até conseguir alcançar o meu sonho.”


    “Fumaça?”

    Verion correu pelo campo aberto e entrou no galpão. Lá, viu a irmã se acabando de tossir ao preparar alguns experimentos. O rádio, no volume máximo, tocava mais notícias da nação vizinha.

    O assassino que atua entre as fronteiras de Quilionodora e Raptra hoje fez um comunicado através de seus homens: “Há alguns anos, meus olhos se abriram para ele”.

    Não conseguimos dizer em exato do que ele estava falando. O líder de Raptra, Daren Vogrinter, disse que fará um pronunciamento oficial dentro de algumas horas.

    — Andou fumando alguma coisa?

    — Quê? De onde saiu essa ideia? Aah… Por favor, só dá um jeito de tirar isso daaaqui! — Ela balançava os braços tentando afastar a fumaceira.

    Verion criou uma esfera esverdeada com o Elemento Vento e a liberou, fazendo o ar expandir e levar a fumaça embora pela entrada.

    — Obrigada… — Respirou aliviada. — Nosso pai não deixou as medidas certas de alguns materiais, então eu tô tentando descobrir na prática mesmo.

    — Toma mais cuidado, por favor.

    — Conseguiu comprar as ervas?

    — Sim. — Ele colocou a bolsa sobre a mesa e a abriu, mostrando a planta azulada.

    Yunneh explicou que a erva Quilis permitia ultrapassar os limites naturais de energia mágica, mas com risco de efeitos colaterais imprevisíveis.

    — Não vamos consumir isso, só testar se conseguimos fazer o produto. Vamos guardar até acharmos a erva Jooguni para conseguir seguir com o experimento.

    — Como faz?

    — Primeiro precisamos ferver água.

    — Deixa comigo. — Ele pegou um pedaço de madeira e o colocou na fornalha do galpão. Unindo as mãos, o ar entre elas foi comprido, fazendo com que as moléculas se aproximassem, aumentando a temperatura entre as palmas e iniciando a combustão.

    Todo ser vivo dotado da capacidade de utilizar Roha tinha alguma peculiaridade no uso de seus Elementos, que poderiam ser relevantes ou inúteis. Verion tinha controle sobre dois: Vento e Imaginário. Sua peculiaridade com Vento era a compressão das moléculas do ar.

    As mãos queimaram, mas ele as curou sem dificuldades. O fogo estava aceso.

    — Não sei como você trata uma dor dessas com tanta normalidade… — murmurou antes de dar-lhe um peteleco na ponta do nariz.

    — Ai…

    Yunneh esperou a água ferver e colocou as ervas. Após alguns minutos, dois tons de azul destacaram-se na água, um azul claro e um azul escuro. Com uma seringa, ela puxou apenas a parte escura e colocou num recipiente de vidro.

    O olhar de Verion ficou vidrado no conteúdo, tinha um aroma doce. No fim, extraíram 500ml das ervas. Ela sabia que era pouco, mas foi o que puderam fazer.

    — Agora só falta refinar e…

    De repente, uma lança de gelo foi cravada no chão, quase atingindo os pés da adolescente.

    — M-mãe?

    A mulher entrou, de cabeça baixa, criando uma nova lança. Olhou cada detalhe daquele ambiente que, mesmo reformado, ainda parecia com o que era antigamente. Suas memórias borbulhavam com imagens vívidas de diversas vezes que viu Elta lá dentro.

    “Acabou, é mais uma vida que tenho que esquecer.”

    — Estou indo embora daqui e todo o dinheiro ficará comigo… Já sei que uma das deidades quer matar vocês, e eu não arriscarei meu pescoço por ninguém. — Mirya sentiu lágrimas escorrerem pelo rosto e fechou os olhos.

    O olhar da jovem se afiou no exato momento em que ouviu aquelas palavras.

    — Você não vai sair daqui com dinheiro algum. Eu preciso disso pra revitalizar as pesquisas do meu pai! — Yunneh formou uma espada de gelo e apontou-a para sua progenitora.

    — Não faça isso ser mais difí… — Antes mesmo de completar sua frase, foi atingida na cabeça por um pedregulho de gelo que atravessou o teto do galpão.

    Mirya levou um chute no pescoço e foi jogada para fora do lugar. Caída na grama rasteira, abriu os olhos para contemplar a visão de dezenas de espadas gélidas flutuando no ar.

    Com um estalar de dedos da filha, todas as espadas caíram sobre ela. Quebraram em pedaços ao baterem em seu corpo que agora estava mais resistente.

    — Fui eu quem te treinei, deveria saber que esse tipo de brincadeira não vai fazer nada comigo. — Suprimiu seus sentimentos como fora ensinada a fazer.

    A filha dos Velgo tinha capacidades elevadas para a idade, porém uma regra se mantinha: autoconhecimento é poder. Quem entendia perfeitamente a razão que regia suas vontades alcançava uma…

    — Revelação… — Ela levantou a perna direita e respirou fundo. — Conversão.

    Toda a área ficou escura como num eclipse e um forte feixe de luz concentrou-se aos pés de Mirya. Transformando luminosidade em frio, bateu o pé e tudo foi engolido por um impiedoso e gélido azul.

    Verion e Yunneh foram completamente congelados, tal como casa, galpão e a floresta ao redor. A agressora fechou os olhos e estalou os dedos, fazendo o gelo voltar a ser luz, cegando-os temporariamente.

    — Eu nunca amei vocês! — berrou e moveu-se num piscar de olhos até a filha, cravejando-a com lanças.


    Aaahhh!

    Ela abriu os olhos ainda na madrugada, despertando abruptamente. Percebeu que estava de volta à cama, a respiração acelerada tomando conta. O torso movia-se, subindo e descendo rapidamente, enquanto suas mãos envolviam o próprio pescoço, buscando se acalmar. Ao lado, seu irmão dormia profundamente, alheio ao que acontecia.

    Levantou-se sob forte sensação de tontura e o observou com um olhar inquieto.

    “Ele me salvou…? Merda, nem consegui reagir.”

    Ficou paralisada por minutos, sentindo sua mente queimar com tantos pensamentos horríveis sobre o que aconteceria se continuasse tão fraca. A imagem de seu irmão morto surgiu entre essas conjecturas, fazendo com que ela entrasse em ação para mudar o pior dos futuros.

    “Mirya, eu vou arrancar esse dinheiro de você e a tua cabeça!”

    Saiu de casa com o diário e correu pelo gramado até entrar no galpão. O rancor que crescia em seu coração queimava tal como a chama no lampião que carregava. A lua cheia iluminava parcamente através do buraco no teto.

    — Vegarten, por favor, proteja a carne e sangue de sua filha…

    Puxou o frasco, segurando com tanta força que fez rachar. O chiado do rádio fora de sintonia tomou sua percepção enquanto a mão trêmula levava o recipiente até os lábios. De olhos fechados, bebeu tudo de uma vez.

    A proteção da Deusa da Vitalidade não foi suficiente. Ela caiu no chão, contorcendo-se com uma dor de cabeça excruciante.

    Brtzzz.

    Um jovem chamado Vincent está sendo investigado por um massacre na capital de Raptra. Foram mais de 2000 mortos durante as últimas horas!

    “Posso ficar forte igual essa pessoa? Eu vou… eu vou… eu…”

    Yunneh cravou as unhas na perna até sangrar. Ergueu-se e sentou em uma das cadeiras, deixando o rosto repousar contra a madeira fria.

    Todos os métodos possíveis, para além de quaisquer limites, seriam necessários para proteger quem amava. Perante a luz que irradiava da lamparina, começou a ler o diário do início, procurando qualquer informação imprescindível que o maior alquimista deixou para trás.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota