Capítulo 6 - O Dragão da Aniquilação
Estremecia de ódio e dor de cabeça. Lia cada linha com uma atenção absoluta há horas. Os olhos, já ressecados, ardiam de sono. O sangue na perna permanecia lá, ressecado; também em suas unhas.
Tentava com dificuldade passar as páginas, as mãos trêmulas e o cansaço mental deixaram a simples tarefa muito dispendiosa. O sono arrebatador estava à espreita, porém algo capturou-lhe a atenção.
— Domínio Divino… — Folheou entre os trechos explicando esse conceito e as anotações do pai.
Um Domínio Divino é uma dimensão paralela onde as deidades habitam. Normalmente só podemos pedir contratos com os deuses na presença direta deles ou em seus domínios.
Existem exceções, como no meu caso, de pessoas que realizam contratos forçados com os deuses. Quando me liguei à Vegarten no polo sul foi algo unilateral, apenas tomei parte do poder para mim sem necessidade de um ritual.
Deuses cedem suas Definições, os conceitos que representam, para os humanos. A partir do momento em que os humanos recebem isso, os deuses não podem apenas tirar deles. Caso uma deidade queira retirar essa capacidade de alguém, precisa ir presencialmente até essa pessoa e a matar com as próprias mãos.
Há uma relação de dependência inicial pelo lado daqueles que recebem essas bençãos. Dizer o nome de uma deidade permite os indivíduos utilizarem suas Definições em máxima potência em proporção direta ao próprio Roha. Porém, há como usufruir dessas habilidades sem clamar às deidades.
O ritual para entrar em contato com o Deus da Aniquilação necessita de…
Os olhos vagaram sem rumo entre linhas, e a paranoia sussurrou em seus ouvidos. Ela não sabia da existência desse termo, Domínio Divino, mesmo que algo em seu âmago lhe dissesse que deveria saber cada mísera linha sobre o assunto.
“Então não foi só o cabelo branco…”
Deixou o diário de lado, sobre a mesa. Cambaleou para fora do galpão, tendo a visão ofuscada pelos primeiros raios de sol do amanhecer. Desviou o olhar e seguiu para casa, indo até o quarto em que o irmão dormia.
Verion descansava silenciosamente, coberto até o pescoço e mesmo assim encolhido pelo frio da madrugada. Yunneh acariciou seus cabelos castanhos com delicadeza e se sentou na beirada do colchão.
— Acorda, eu preciso que você faça uma coisa pra mim… — Ela o balançou de leve, aguardando alguma resposta.
Despertou confuso, demorando a reconhecer a irmã diante dele.
— Você tá bem? — Esfregou os olhos, tentando afastar o sono.
— Zero… só quero dormir logo, então me ouve.
Novamente em Aludra, Verion caminhava carregando sua bolsa no ombro. Bocejava aqui e ali, mas o foco se mantinha o mesmo.
“Aquele moço que comprava sucata, onde era?”
A irmã pediu para que ele vendesse alguma coisa velha e de valor apenas para comprar os componentes ritualísticos: chumbo, sal e ferro. Com isso, e algumas outras coisas, era possível realizar a entrada no Domínio Divino da deidade fundadora daquela nação.
Um burburinho nas ruas sobre uma mulher de cabelos azuis usando roupas extremamente luxuosas espalhava-se. Verion não se interessou, muito menos prestou atenção. Sua busca finalmente terminou ao ver o nome da pessoa que procurava estampado em uma placa.
“Como é que eu não lembrei disso antes?”
O vendedor tinha um nome muito marcante e estranho, John Jefferson Jofrey James Jolter Jay, que quase todos chamavam simplesmente de “Jotudo” ou “J6”. Costumavam dizer, de brincadeira, que o pai dele havia perdido uma aposta ou que estava bêbado.
A porta do estabelecimento era pesada, mas nada que o garoto não pudesse mover. O som de um sino na entrada alertou John da chegada de Verion. O homem barbudo com bigode pontudo fazia café tranquilamente na bancada de madeira do lugar.
— Bom dia, Velgo — disse enquanto puxava uma xícara.
— Oi John, quero vender uma coisa pra você! — Ele começou a revirar a bolsa.
“Cadê isso caramba? Essa bolsa nem é tão grande assim pra ser difícil de achar! Ué, por que que tem um prato aqui?”
— Olha, não sei se eu vou ter interesse no que uma criança tem a apresentar…
— Aqui! — Verion exibia um relógio digital de pulso em suas mãos, apertando um botãozinho que fez ele ligar uma luz azulada.
— Isso… tá funcionando bem mesmo? — O descredito emanava do olhar.
— Claro que sim!
— É suspeito uma família rica como a sua chegar com um tesouro desses aqui como se não fosse nada. A primeira suspeita seria de golpe, é óbvio… Não faz sentido que algum Velgo troque isso por uma mixaria com um bigodudo irrelevante. — Ele arregalou os olhos e pontou para o próprio rosto, e encheu a xícara.
“Se eu falar que fiquei pobre ele não vai acreditar…”
— S-só quero me livrar disso, era do meu pai e ninguém mais quer ver por perto porque deixa todo mundo triste!
O baixinho tentou parecer muito confiante, mas John viu suas pernas tremendo tanto quanto as cordas frouxas de um violão. O vendedor suspirou e deu um gole no café, quase derrubando a xícara por estar muito quente.
— Arff… fala logo o quanto quer por isso, vou acreditar em você.
— 20 mil Zaykkas, no precinho. — Aproximou-se da bancada.
— Só isso? Aumenta esse preço aí bobão. Gosto de me dar bem nos negócios, mas não vou passar a perna em criança. Não é todo dia que tecnologia do oriente entra nesse país, valorize seu produto!
— 50 mil? — perguntou com uma grande insegurança na voz.
— Você não tem noção mesmo, né? — Ele deixou o café na bancada e foi andando até garoto. — Sei que deve ter noção do bloqueio tecnológico que nossa nação sofre, mas parece não ter o menor senso do valor de um objeto desse nessas terras.
— Eu sei do bloqueio, mas meu pai nunca falou de preços…
— Dou 200 mil por esse achado, é o que eu posso pagar por agora — disse John, olhando o acessório de perto.
Verion aceitou aquele valor sem pensar duas vezes. Minutos depois o homem veio com uma maleta repleta de dinheiro. O Velgo abriu para checar e eram realmente as cédulas oficiais. O rosto de Layla Zayn estampava cada nota junto do símbolo do poder central do mundo, a Zona Neutra Internacional.
Com a maleta em mãos, foi até a loja da alquimista da cidade que tinha os produtos mais confiáveis em quesito de pureza. A maleta e a quantidade de dinheiro a assustaram, mas logo o trato foi feito. Ele saiu de lá com uma grande bolsa com jarros de vidro lacrados.
“Ainda sobrou bastante coisa… Vou comprar uma melancia grandona!”
No meio do caminho para adquirir a fruta, acabou vendo Jeremiah. O garoto loiro de cabelos longos conversava com uma mulher ao lado de uma árvore. Ela era a moça de cabelos azuis de quem tanto tagarelavam sobre na cidade.
Verion se escondeu ao lado de um muro para ouvir a conversa.
— Eu sempre vi muitas crianças morrerem nas mãos dele sem chance de se tornarem fortes, então quis dar essa oportunidade para alguém. — Seu olhar cansado recaiu sobre o loiro.
Ela abriu um grande estojo em que havia uma espada vermelha e uma máscara branca com detalhes dourados. Eram itens de luxo muito bem confeccionados.
Jeremiah achou um pouco estranho, mas pegou as duas coisas com rapidez. Colocando a máscara, conseguiu sentir algo de diferente.
— Isso é…
— Senti que seu controle sobre o Roha é praticamente nulo, então pedi para Yan, meu ferreiro pessoal, construir duas coisas que normalizassem isso.
Esforçava-se para segurar aquela espada que era tão pesada, mal conseguia mantê-la para uma altura maior que a da cintura.
— Não precisa tentar me impressionar… — Ela acenou para ele e sorriu. — Me encontre em Raptra quando sentir que é forte o suficiente. Quero sua ajuda para matar meu pai. Acha que consegue?
— Sim! — respondeu do fundo do coração, e quase tombou para o lado com a arma.
— Quase esqueço de falar… seu irmão está vivo. — Sem maiores explicações, Charlotte desapareceu.
“Que tipo de pessoa é o pai dela?” Verion segurou firmemente a bolsa pendurada no ombro.
O péssimo negociador saiu de trás do muro e viu Jeremiah tirando a máscara e olhando para a espada com um enorme sorriso. O olhar dele perdidamente apaixonado pela qualidade da lâmina.
— Oi Jeremiah! — Aproximou-se como quem não queria nada.
— Ouviu alguma coisa?
— Queee coooisas?
“De jeito nenhum eu me meto nessa conversa de doido de assassinato.”
— Nada! Ae, tinha pensado numa coisa um dia desses, já conseguiu fazer um contrato com o Quilionodora? Você chegou na idade desse tipo de coisa.
— Eu vou tentar hoje, minha irmã me pediu pra comprar os materiais. — Mordeu de leve os lábios com uma preocupação: — Como foi quando você fez isso, ele te tratou bem?
— É o pai que nunca tive! — Ele deu uma risada desaminada e disse em deboche à própria desgraça: — Literalmente não tive… T-tanto faz, pode ir sem medo, ele é bem legal!
— Obrigado por contar, pai de urso. — Verion acenou e foi perambulando atrás de sua melancia.
O loiro ficou sozinho e olhou ao redor para se certificar de que ninguém estava o vendo. Começou a arrastar a espada pelo chão com todas as suas forças.
— Coisa pesada dos infernos! — resmungou e seguiu caminho até sua cabana na floresta, deixando um rastro de lâmina pelo percurso.
Verion havia chegado há certo tempo e trazido consigo a maleta lotada de dinheiro, que acabou por chocar a irmã. Ela nem imaginava que aquela coisinha pudesse ser tão valiosa. Com pouco mais de duas horas e meia de sono, acreditou que poderia logo fazer aquilo.
Os elementos químicos espalhados pelo chão brilhavam em vermelho no interior do galpão. Cada parte do círculo fora minuciosamente desenhada por Yuuneh. O formato no centro era idêntico a asas de dragão.
— O que que falta agora? — Verion retirava as luvas contaminadas com chumbo.
— Precisamos de uma escama de qualquer réptil e uma agulha, não é nada complexo. — Formou uma espada de gelo. — Bora caçar uma lagartixa!
Procurando nas imediações da floresta, avistaram uma bem grandinha em um galho. O animal tranquilamente alimentava-se de insetos.
— Temos que agir com calma — disse Verion enquanto caminhava com delicadeza.
— Eu quero terminar isso e cair na cama igual uma pedra, não me pede calma. — Concentrou a energia, Roha, e arremessou a espada. A lagartixa foi cortada ao meio junto do galho… e da árvore inteira.
— Bruta.
— As brutas são as melhores… — Ela deu uma risadinha maliciosa.
— Tô com medo de saber de onde vem essa afirmação!
— É… Sabe, acho que puxei meu pai nessa coisa aí de gostar de mulher…
— Ahh… — Verion ficou pensativo.
Eles pegaram o que sobrou da lagartixa e voltaram para o local do ritual.
— Só precisamos furar isso entre as asas do símbolo — disse Yunneh ao formar uma agulha de gelo.
Ajoelhou-se e pôs os restos mortais no ponto exato, perfurando-o. Nada ocorreu e eles se entreolharam esperando algo.
— E aí? — Verion ficou encostado no ombro dela, olhando.
— Vou dizer o nome dele… Quilionodora!
Uma sensação de queda livre se seguiu por instantes com um som interminável de correntes no breu. E no momento em que pisaram no Domínio Divino, antes mesmo de seus olhos ousarem se abrir, tiveram a nítida certeza de estarem sob o julgo de uma aberração.
A mera respiração da besta adiante causava ventos que poderiam desmoronar casas inteiras como castelos de cartas. Os irmãos se depararam com algo mais do que colossal, tão monstruoso que somente sua cabeça era visível. O resto do corpo estava para muito além do horizonte.
Escamas rochosas vermelhas tão duras quanto diamantes e um olhar sanguinário embebido na pura sede de morte, isso era o Deus da Aniquilação. O dragão de rocha vulcânica e resquícios de placas tectônicas encarou os dois irmãos como encarariam poeira a ser batida da roupa.
Correntes vermelhas e negras entrelaçadas estendiam-se à vastidão de um céu branco. Diversas dessas que se quebraram e enrolaram nos corpos dos dois, apertando com extrema violência. Os ossos estavam para quebrar como vidro, mas eles continuaram lutando contra.
— Vocês, o que pensam que estão fazendo vindo ao meu domínio?! — gritou, fazendo todas as correntes vibrarem, produzindo um ruído distorcido arrepiante.
— Queremos receber sua Definição Divina! — Yunneh afrontou de volta, congelando e rachando as amarras.
Uma ausência de resposta trouxe a eles um frio na espinha. Sabiam que aquilo era como um sonho, porém, ainda assim, uma deidade era o anfitrião daquela reunião.
— Tahahahahahaha! Querem ouvir uma piada bem engraçado também? — A boca montanhosa se abriu ao máximo, gerando rachaduras e estrondos ensurdecedores, como os de um terremoto devastador.
Um clarão vermelho os atingiu de imediato, trazendo uma tortuosa sensação. Suas peles arderam como se mergulhadas em magma por décadas, e como se suas entranhas cozinhassem. A dupla foi chão de joelhos, sobrecarregados por uma pequena brincadeira de dois segundos.
— Nunca terão minhas bênçãos com essa praga dentro de vocês, cobaias infelizes! — Cada corrente começou a cintilar. — Assim que meu corpo despertar na cratera, irei os erradicar da face da terra! — vociferou antes das correntes os despedaçarem.
Acordaram como saídos de um sonho febril, chorando já durante a noite. A ardência infernal permanecia encrustada na carne, mesmo que não existisse mais. O garoto soluçava, tremendo descontroladamente. Uma risada que iniciou engasgada tomou forma, era a irmã.
— Verion… eu quero, quero, quero matar essa coisa! — O olhar macabro era iluminado pela luminosidade carmesim do ritual.
“Chega de tentar me enganar… Impossível é o caralho! Eu vou despedaçar esse dragão na porrada!”
O garoto não respondeu, e a jovem, fora de si, o puxou pela gola da camisa, obrigando-o a ficar de pé. Ela o chacoalhou incessantemente como se lidasse com um trapo velho qualquer. Verion foi largado e caiu de cabeça.
— Por favor, irmão…
A memória da dor excruciante caminhava por cada parte de seu ser, como se pudesse ter total certeza de que seu corpo estava carbonizado, mesmo sem ver qualquer sinal de queimadura. A angústia que beirava o inexplicável a fez começar a alucinar, arranhando a própria barriga.
“Cobaia… cobaia? Tem alguma coisa dentro de mim? Eu vou tirar, eu vou tirar! Agora! Agora! AGORA!”
Ela atravessou o próprio coração com uma enorme espada de gelo, descendo até a barriga, e a puxou para fora, manchando tudo de sangue.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.