Horas se passaram e Verion acordou de um sono profundo na madrugada. Sentiu suas pernas dormentes. A cabeça uma bagunça pela sobrecarga sensorial. Respirando fundo, a confusão se dissipou em alguns minutos e ele percebeu a irmã caída numa enorme quantidade de sangue.

    — Yun? — Os olhos se arregalaram e, cambaleando, ele levantou o mais rápido possível.

    Ajoelhou-se ao lado dela, sofrendo de um frio anormal vindo daquele sangue. Parte de sua pele congelou instantaneamente em contato com aquilo, mas não importava. O Velgo colocou a mão sobre ela para sentir o que tinha de errado no corpo.

    Os batimentos cardíacos eram lentos, mas nada que a matasse. Nenhuma ferida estava aberta, mas uma coisa estava diferente: algumas partes do cabelo tornaram-se brancas. Verion gerou calor realizando a compressão do ar e dissipou o frio próximo. Carregou a irmã inconsciente para casa mais uma vez.

    O garoto observou inquieto os fios brancos, acreditando, pela lógica, que fosse uma maldição. Pensou que nada poderia fazer caso fosse essa a realidade, apenas sentou-se ao lado da irmã. Olhava para ela com um olhar desesperançoso, tentando buscar uma resposta para o surgimento de uma provável maldição.

    Qualquer sentido parecia escapar entre seus dedos trêmulos. A sensação infligida pelo Deus da Aniquilação deixou seus sentimentos confusos, e uma outra coisa parecia aprofundar-se no seu cérebro. Algo o impediu de rememorar aquela dor, de sentir-se desesperado diante daquela situação.

    Um sono invasor, parasitário, o fez apagar em segundos.

    Nos sonhos, sentiu-se abraçado por uma calmaria e serenidade quase infinitas; não era normal. A voz de um homem ecoava com dizeres incompreensíveis diante de três grandes ampulhetas. Uma permanecia vazia e as outras duas tinham areia em constante queda. Tudo parecia derreter entre bolhas de sabão que expandiam e levitavam objetos.

    — Oi, quem é? Quem tá aí?

    Um opaco vulto dourado observava-o no canto de sua visão periférica.

    De repente, acordou na cama, os olhos alvejados pela luminosidade da manhã. Girou no colchão para olhar ao lado, ganhando a certeza de que a irmã não estava deitada junto a ele.

    Levantou-se e abriu a janela, pulando para fora e caindo na terra fofa do jardim. O que ralou, curou.

    Quando pensou em chamar pela irmã, notou um rastro de gelo manchado com gotas de sangue. Seguiu a trilha macabra até uma parte da floresta próxima, onde viu a irmã de costas, portando uma espada de gelo em cada mão, vislumbrando o brilho do sol trespassar as folhas de uma árvore. Balançava o corpo levemente e arrastava os pés descalços no chão frígido.

    — Yun?

    — Verion, preciso pedir outro favor para você. — Olhou por cima do ombro, a feição cansada.

    “Que bom, ela tá bem então! Eu acho. Só saudável ela pediria coisas tão cedo assim.”

    — Tá, tá… Pode dizer, eu faço qualquer coisa!

    — Traz seu amigo aqui, o Jeremiah. — Ela segurou os cabelos brancos e bufou, impaciente.


    Enquanto caminhava pela floresta checando os arredores para ter certeza de que aquele corvo falante não estava o encarando por aí, acabou escutando duas risadas escandalosas entre as árvores. Aproximou-se calmamente para observar. Era John e uma amiga dele, Lorellai. O vendedor agora portava o relógio no pulso, exibindo-o orgulhosamente.

    Estavam usando roupas combinando, calças, uma camisa branca e uma jaqueta laranja aberta por cima. A ruiva de pele parda girava uma faca na mão como se fosse brincadeira, e ele mexia no bigode pontudo.

    — Tsc, tem alguém olhando.

    Verion não teve tempo de reação, foi agarrado pelo pescoço e erguido pela mulher como se fosse uma folha de papel. Sentiu que ela poderia arrebentar seu pescoço a qualquer segundo.

    — Ei, ei, ei! Calma aí Lore, ele é um conhecido meu! — exclamou John, fazendo com que ela soltasse o baixinho.

    — Eita… desculpa aí por isso, achei que era outro funcionário meu — disse e deu dois tapinhas na cabeça dele.

    — V-você trata seus funcionários assim?! — Verion segurou o pescoço e ficou com a língua para fora, fazendo drama.

    — É que ela tá no último dia de férias e vieram umas pessoas da capital chamando de volta para o trabalho.

    “Caramba, e isso lá é motivo pra sair enforcando os outros do nada?”

    — Sei que o meu cargo é importante, mas tá de sacanagem que colocaram uns chatos pra me seguir logo no último dia de descanso? — Ela bateu com a mão na testa e rangeu os dentes.

    Conversaram por alguns minutos. Verion descobriu que ela era a conselheira pessoal da líder da nação de Quiliondora, e ela descobriu que ele era um Velgo. A falta de meios mais modernos de comunicação no país fazia até esses detalhes ficarem um pouco apagados para a população geral.

    Muitas pessoas nem sabiam o rosto ou nome da conselheira, e alguns nem faziam ideia de que Elta Velgo tinha filhos, apesar dele ter sido uma das figuras mais importantes do século. Tudo dependia de cartas, jornais e uma pitada de boa vontade para caçar informações. No caso de Lorellai, ela sabia da existência deles, mas nunca viu os rostos.

    — Mas se você é tão crucial assim, não deve ser algo muito importante? — questionava o baixinho.

    — A Lisbeth é uma semideusa, se ela não consegue lidar com um probleminha interno sendo quem é, aí é burrice dela! — disse ao gesticular furiosamente.

    John chamou a atenção do garoto e disse: — Quase esqueço de falar, sua irmã passou lá em Aludra hoje cedo. Ela saiu carregando duas bolsas pretas enormes por aí, parecia até estar carregando um cadáver!

    “Ela acordou bem antes então, pra dar tempo de ir e voltar deve ter sido antes do sol nascer.”

    — Estranho, mas depois eu vejo isso. Aaahhh, preciso fazer uma coisinha agora, tchau!

    Verion acenou rapidinho e correu pela trilha. O vendedor e a conselheira se entreolharam e seguiram caminho, com ela puxando um assunto que lhe pareceu pertinente.

    — Esse garoto age esquisito pra idade dele. — Ela cruzou os braços.

    — Ele teve contato com os poderes da Deusa do Conhecimento por causa do pai dele, é diferente por isso, mas concordo que é esquisitão. Vamos continuar.

    Minutos depois, o garoto de cabelos castanhos chegou no lugar desejado. Uma batida na porta da cabana tão cedo de manhã fez Jeremiah dar um pulo e pegar sua nova espada. Admirou-se no espelho, dando piscadelas para o próprio reflexo.

    Heheheheh.

    — Senhora ursa, se prepara pra ver meu poder real! — Jeremiah colou a máscara e chutou a porta, atingindo Verion e o arremessando por dezenas de metros. O garoto terminou pendurado pela camisa nos galhos de uma árvore.

    — Ih cara, foi mal ae! — Jeremiah abaixou a máscara e começou a suar, pensando que arrumaria problemas por machucar alguém de uma família importante.

    O galho se quebrou com o peso e ele caiu no chão como um saco de batatas. Curou-se e foi correndo até loiro para não perder tempo.

    — Jeremiah!

    — F-foi mal aí por ter batido em você cara!

    — Deixa pra lá e vem comigo, minha irmã pediu pra eu levar você até lá em casa. — Apontou para o rosto dele.

    — Ué, e eu ia fazer o que lá? Nem conheço ela direito, é algum esquema de sequestro isso aí Verver? — O espadachim estreitou o olhar em confusão e apontou a espada para o garoto.

    “Ele tá com o braço todinho tremendo pra levantar isso…”

    — Tenho uma maleta grandona de dinheiro, só vir comigo!

    — Ficou com mais cara de sequestro ainda… — Ele abaixou a lâmina e até respirou aliviado após tentar para de ser imponente. — Só manda a real aí logo que penso no caso.

    — Minha irmã, eu acho que ela foi amaldiçoada, acordou com uns cabelos brancos e me pediu pra te chamar.

    Jeremiah supôs que era verdade em primeiro lugar, mas, mesmo que fosse real, o que ele, um pobre que morava numa cabana no meio do nada, poderia fazer? Não tinha cabimento algum chamar um pré-adolescente abandonado para resolver a questão de uma maldição, isso seria assunto para médicos especializados na magia da Deusa da Vitalidade.

    O loiro pensou: “Tem caroço nesse angu. Nem a filha do maior médico da história tá lidando com isso, o que ela quer comigo então? Essa maldição deve ser algo fortão… Uma maleta de dinheiro, né?”.

    — Quero comprar um colchão novo, esse que eu tenho… meio que roubei de uma casa enquanto os donos tavam viajando.

    — Isso é um sim? — Olhou para ele com olhos de um cachorro pidão.

    — P-para de me olhar assim, vou te morder! — Ele trancou a porta de casa e guardou as chaves no bolso de seus shorts esfarrapados. — Se o dinheiro for mentira, vou roubar sua cama.

    — Só confia.

    Seguiram pela floresta em rumo a casa da família Velgo. Nenhum deles fazia ideia de quais eram as pretensões de Yunneh, apenas seguiram conversando qualquer banalidade que passava em suas cabeças. Verion fazia questão de não contar nada muito crítico daquela situação que viviam. Preferia pedir a permissão da irmã antes de compartilhar qualquer fato.

    Ao retornar para o terreno de casa com suas monótonas árvores carmesim, Verion pediu para que Jeremiah esperasse um pouquinho na sombra. Queria checar o interior do galpão, sentiu que muito provavelmente o que ela carregou em bolsas pretas estaria lá.

    — Só uma espiadinha… — Puxou a porta do galpão e sentiu um forte e denso cheiro doce, estava impregnado em tudo. Por estar tão intenso, demorou para lembrar o que aquele odor significava.

    “Quilis?!”

    Abrindo os enormes sacos pretos, encontrou diversos resquícios das ervas, muitos deles. Olhou a fornalha e os recipientes próximos, tendo a certeza de que aquilo tudo tratava-se de extrato. A maleta encontrava-se em um canto, e pegando-a, sentiu seu peso um tanto menor. Ele saiu do galpão correndo a plenos pulmões, preocupado com o que a irmã havia feito.

    — O que foi Verver? — Jeremiah coçava a bochecha despretensiosamente quando viu Verion ultrapassá-lo. — Quê? Ei, ei, ei! Não me deixa pra trás seu trambiqueiro!

    Não precisaram encontrá-la, Yunneh veio ao encontro deles, aparecendo dentre as árvores. A jovem continuava a empunhar duas espadas quando chegou até eles.

    — Yun, q-quantas Quilis você consumiu?! — quando Verion disse aquilo, o amigo sentiu um calafrio.

    — Como assim quantas? Já é difícil usar uma só sem ter algum problema, como ela teria tomado mais do que… — Notou os fios brancos como neve entre os castanhos.

    — Não precisam fazer todo esse alvoroço por nada, eu vou explicar tudo, só me deem um tempinho pra pensar…

    — Tem certeza que tu tá legal? — Jeremiah quase se encolheu com a dúvida, tinha medo dela explodir. Não seria a primeira ocorrência do tipo.

    Ela ponderou as possibilidades e decidiu caminhar pelo absurdo, afinal, o que pretendia fazer dali em diante era pura insanidade, e ela tinha plena noção disso.

    — Ontem eu e Verion tentamos firmar um contrato com Quilionodora, mas ele não só nos rejeitou como também disse que iria nos matar. Sabia que você era um seguidor dele, e alguém próximo do meu irmão, então quero te fazer uma proposta de duelo!

    — Vish, endoidou — cochichou e engoliu em seco. — E o que que eu tenho a ver com isso minha filha?!

    — Se eu ganhar, você vai ao Domínio Divino dele e levará minha declaração de guerra. Se você ganhar, eu te dou todas as posses que minha família possui nessas terras!

    Verion viu o olhar e sabia que ela não aceitaria um não como resposta. Correu para não ser atingido por acidente pelos ataques. Escondido atrás de uma pedra, apenas deixou sua cabeça à vista.

    — Veeeeerion, volta aqui agora seu micróbio sabichão! NÃO ME DEIXA SOZINHO COM ESSA AQUI! — Ele balançou a cabeça e colocou a máscara, tendo certeza de que iria dar um cascudo nele e de que não poderia dar as costas e ir embora.

    — Me enfrenta, filho da Aniquilação, vamos ver o que um servo do deus que disse que iria nos matar é capaz! — Ela abriu um corte no braço, fazendo sangue cair na grama adiante.

    “Lá vem mais bomba na minha vida, eu não consigo ter um segundo de paz nem mudando de nome! Essa maldição deve ter feito ela de algum jeito criar resistência a Quilis, mas tá de brincadeira que isso acontece logo com a pessoa que quer me comer vivo?!”

    Trocaram olhares, Yunneh com um foco férreo e Jeremiah rindo de nervoso. O duelo inesperado estava para começar.

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