Era madrugada, noite de lua cheia. Yunneh e a conselheira Lorellai conversavam sentadas diante do jardim da casa. A jovem da família Velgo segurava uma rosa entre os dedos enquanto a ouvia.

    — Sua mãe era líder de uma divisão de 200 mil soldados. Acabou que… durante a última guerra, quase todos foram mortos.

    — Sabia que ela tinha combatido, mas não que era algo nessa escala — disse com grande apatia.

    “Ela nunca foi muito aberta sobre isso. Deve ter algo no diário do meu pai, mas não achei ainda. Esse negócio é enorme, é página que não acaba mais…”

    — Depois do fim da Guerra de Etinova, ela continuou em sua terra natal por mais alguns anos, em Raptra, mas veio morar aqui em Quilionodora junto de Elta Velgo.

    Yunneh escolheu contar mais meias verdades, dizendo que a razão da mãe ter os abandonado era por temer o Deus da Aniquilação. Não fazia sentido para ela que uma mulher como Mirya, uma veterana de uma guerra sangrenta, não ter coragem de lutar pelos próprios filhos.

    Entretanto, pouco importava naquele ponto os laços de sangue ou as intenções da mãe, aquela era uma traição imperdoável aos seus olhos. Ainda tinha vontade de matá-la pelo abandono e roubo do dinheiro, mas preferia não revelar esse detalhe à Lorellai.

    “Não posso ser sincera, isso vai me fechar algumas portas… Se ela vai me dar algum tratamento especial por eu ser filha de quem sou, vou me agarrar a esse privilégio.”

    — Bem, vocês não precisam mais dela. Eu poderia substituí-la, vou fazer um esforço por isso. — Esmagou a flor que segurava.


    Pela manhã, os irmãos, vestidos com seus jalecos brancos, organizavam meticulosamente seus pertences no galpão, preparando-se para viagem à capital. O tempo que passariam lá, mais que uma semana, exigia que levassem isso em consideração.

    Verion estava com os cabelos muito bem penteados, uma raridade. Era um inimigo quase declarado dos pentes, não fazia a menor questão disso, porém Lorellai o forçou. Seu jaleco encomendado da alfaiataria havia chegado, servindo-lhe perfeitamente.

    Yunneh ocultava seus poucos cabelos brancos sob um chapéu cinza. Esbarrar com alguém amaldiçoado por aí, apesar de estranho, não era impossível. De qualquer forma, preferia não chamar atenção.

    — Você terminou aquele livro? — Verion perguntou despretensiosamente.

    — O da Lya? — Ela parou de forçar os objetos para dentro da mochila com o cotovelo, voltando seu olhar ao irmão.

    — Sim. Essa coisa teve um final feliz?

    Verion conhecia apenas fragmentos da história: uma protagonista aprisionada, passagens repetitivas sobre medo de mofo e da escuridão. Não era o suficiente para deduzir o fim.

    — Não sei dizer, foi um final em aberto. A última página dizia que…

    A garota que outrora chorou na escuridão, desapareceu. Restara sangue, de onde brotou um singular e belo girassol.

    — Que anticlimático… — murmurou.

    — Espero que tenha uma continuação, não encarei 991 páginas pra isso!

    Após resolverem tudo que tinham a fazer por lá, partiram rumo à cabana de Jeremiah para buscá-lo. Encontrariam-se depois com Lorellai e John em Aludra.

    A floresta carmesim daquela parte do país era bem vazia. Poucos animais apareciam por lá fora os ursos; raramente alguma ave, marsupial ou roedor. O baixinho mantinha seus olhos atentos, não esqueceu o corvo falante por um dia sequer.

    “Se o deus misterioso consegue afetar nossa percepção da realidade, será que o corvo era coisa dele também?”

    — Yun, acho que deveríamos começar a anotar tudo que fazemos igual o nosso pai. Se essa deidade consegue mexer nas nossas memórias, acho que faz sentido guardarmos informações importantes.

    — Tinha pensado nisso antes e já comecei — confessou Yunneh, a voz acertiva.

    Um detalhe na página final do diário de Elta ainda a incomodava. Apesar de não ter dado prioridade para isso no começo, no dia que o recebeu, acabou pensando sobre.

    A caligrafia perfeita, quase mecânica, empregada na palavra Daath trazia à tona a chance de que o diário poderia ter sido mexido e implantado para que achassem posteriormente.

    Esse trecho contrastava por completo com a escrita à mão no restante do diário. Contudo, era óbvio demais para que não fosse proposital e premeditado ser tão óbvio: alguém queria deixar claro que tinha acesso ao caderno.

    O turbilhão de questões deu lugar a uma calmaria plena, e nessa serenidade, surgiram os pontos para que ela tangenciasse uma verdade.

    “Se a possibilidade de alterar nossas memórias é tão real, por qual razão deixariam nós progredirmos? É tão estranho quanto… Quilionodora não revelar aos seus seguidores que há uma rixa conosco.”

    “Bem, a deidade da espada de lâmina serrada disse a meu pai que iria nos buscar no momento certo. Qual seria esse momento certo? Se a ideia é nos matar, não deveriam preferir facilitar seus próprios trabalhos?”

    “Se tiveram acesso ao diário e não acabaram com as informações mais úteis, qual é o ponto de terem o pego para início de conversa? Estão só brincando com a gente?”

    Continuou imersa nos pensamentos, desviando dos obstáculos do caminho por puro instinto até que se formou uma ideia:

    — Verion, tenho um palpite do motivo do Quilionodora não enviar seus fies para nos atacar…

    — Qual é?

    — Se nós somos cobaias de algum tipo de experimento, provavelmente a coisa que o deus misterioso está esperando ser concluída para nos matar, isso pode ser o motivo dele não espalhar essa informação.

    — Ele… ele não poderia confiar essa tarefa a ninguém? — indagou, inclinando a cabeça.

    — Sinto que seja isso. Esse tal experimento deve ser o motivo dele preferir o silêncio… Deve ser algo perigoso. Pode existir algum problema direto em alguém além dele tentar nos matar, mas não sei dizer.

    — Parece fazer sentido… — cochichou para si mesmo.

    A resposta para a data do despertar do dragão residia em um dos maiores eventos da história. A Guerra das Deidades ocorrida 13 milênios antes. Boa parte do acontecido era envolto em mistério, nunca se soube o motivo da guerra, apenas seu final.

    Ao fim do confronto, Quilonodora e Benten acabaram adormecendo após finalizarem a guerra com as próprias mãos.

    — Quero perguntar à Lisbeth quando ele vai acordar! — gritou Yunneh, deixando escancarada sua confiança.

    “Benten despertou há 48 anos, então ele também deve estar prestes a retornar. Ainda falta muita coisa do diário pra saber, talvez eu ache algo útil sobre isso.”

    “Até que dormir por 13 mil anos não parece má ideia.”

    A cabana do espadachim inexperiente finalmente foi avistada por eles na floresta. Tinha algo diferente lá, e não era apenas uma coisa.

    — Ué, ele derrubou mais árvores — disse Verion enquanto observava a expansão da área desmatada.

    — Aquilo lá são placas? — Ela forçou o olhar para lê-las.

    PROIBIDO GELO

    BANIMENTO DO FRIO

    — Que besta! — disseram em sincronia, quase revoltados com o quão caricato aquilo era.

    Ele saiu da cabana coberto com cinco casacos, todos roubados, e uma coberta enrolada no corpo. Estava com as mãos em chamas e com a espada na boca, mordida pela empunhadura. Sua máscara, fora do rosto, ficou oculta sob o amontado de tecido.

    — Japodamenetodquicpital?

    — Tira isso da boca pra falar — pediu, rispidamente, Yunneh.

    — Já dá pra ir pra capital?

    Verion pensou um pouco em como acalmá-lo e disse a primeira coisa que passou em sua cabeça: — Não precisa disso tudo não, a Yun não quer mais te arrebentar!

    — Arrebentar é definitivamente uma das piores palavras que você poderia usar agora! — O loiro ficou acuado.

    — É, mas relaxa, você é inútil pra mim agora.

    Jeremiah murchou como uma flor desidratada e resmungou: — Ô minha filha, não cansa de me humilhar?

    — Hum?

    Ele acabou jogando todos os casacos fora por ter começado a suar. O trio seguiu até a cidade de Aludra, no ponto de encontro predefinido. O caçula dos Velgo continuava caçando o corvo em todos os cantos.

    Aguardavam na faixada da loja de John. Yunneh estava sentada, costas contra a parede, e Verion ao lado com a cabeça encostada em seu ombro. Permaneciam pacientes, tudo que Jeremiah não era naquele instante.

    Ele jogava e espada para o alto e tentava a agarrar antes de cair no chão. Cortou a mão vez ou outra, mas não parou porque podia se regenerar.

    — Como é que eles marcam o encontro e se atrasam depois?! — Enfiou a espada no chão, fazendo um buraco no pavimento. — Vish…

    Escondeu o buraco com o pé para não precisar pagar por isso caso alguém visse. Não teria dinheiro para isso nem nos seus melhores sonhos.

    — Fura mais, eu quero dar prejuízo pro governo que segue essa deidade idiota — cochichou Yunneh com uma feição vilanesca.

    — C-credo!

    Levou uma hora para que eles chegassem, e nesse ponto Verion já estava em sua segunda melancia. Jonh e Lorellai chegaram com uma mulher alta de longos cabelos pretos e olhos púrpura. Usava um equivalente de um quimono branco.

    — Agora tá explicada a demora, foram do outro lado do mundo, é?! — Yuuneh apontou uma espada de gelo para eles.

    — O outro lado do mundo que veio até nós — brincou John.

    — Ela se chama Maika, é lá de Ni, mas veio fazer uns serviços no ocidente. O pessoal da capital contactou ela para nos ajudar.

    “Uma seguidora do Deus do Enigma? É a primeira vez que vejo uma…”

    — Me pagaram muito bem pra isso, o suficiente para que eu ignorasse as diretrizes da minha organização. — Ela se alongou e perguntou se poderiam ir logo até o destino deles.

    A conselheira certificou-se de que todos estavam prontos antes de dizer que sim. Maika gerou um campo de força roxo ao redor, englobando-os.

    — Podem ter um pouco de enjoo, mas vai ser rápido. — Um clarão púrpura seguiu a leste quando ela disse o nome da deidade, Ni, e complementou: — Revelação: Iter.

    Ouviram de repente inúmeros sons distorcidos, sentiram frio, calor, sensação de queda, tudo de uma única vez. Pareceu demorar muito, porém ocorreu tudo em dois segundos.

    — Onde a gente tá? — Verion ficou arrepiado, e segurou mais forte a bolsa ao perceber que tinha partido de Aludra em instantes.

    A folhagem escura cor de sangue, destoante do carmesim puro e brilhante das árvores de Aludra, era visto pelos irmãos pela primeira vez. Ouviram dessas diferenças de coloração vez ou outra, mas nunca saíram do interior para presenciá-las.

    Jeremiah não entendia o encanto e surpresa deles por isso, pois passou por essas terras muitas vezes. O som dos riachos e córregos podiam ser ouvidos ao longe com intensidade.

    — Acabamos de cortar 1800 quilômetros de distância. — Maika foi afligida por uma tontura violenta e se curvou um pouquinho.

    Yunneh pensou: “Sabia que os seguidores de Ni conseguiam cortar caminho no espaço, mas nossa, que mulher maravilhosa!”.

    Maika levou as mãos à cabeça e encheu os pulmões de ar fresco antes de retomar sua pose e preparar o próximo salto. A cintilação roxeada tomou força novamente.

    — Tudo bem com você? — perguntou Lorellai ao colocar a mão no ombro dela.

    — Acho que eu vou desmaiar mais tarde, mas compromisso é compromisso… Revelação: Iter. — Outro clarão ocorreu e tudo se repetiu.

    A sensação de queda acabou em simultâneo à chegada do som de uma multidão nas proximidades. Misturavam-se os gritos, risadas, conversas e sons cortando os céus. A agitação da cidade os tirou daquele estado de confusão rapidamente.

    — Que vontade de vomitar… — choramingou Jeremiah.

    — Chegamos na capital de Quilionodora, Sirius! — Maika disse orgulhosa, com as mãos na cintura.

    Um suspiro coletivo escapou dos jovens. Sirius se revelou diante deles em todo seu esplendor. Quatro aquedutos colossais, constituídos de pura obsidiana, serpenteavam pela cidade para abastecer a população.

    Todas as casas eram cinzas ou pretas, grandes e retangulares, na maioria com três a quatro andares. Em suas paredes, tremulavam as bandeiras da nação sob o vento suave, apresentando a furiosa face dracônica.

    As largas e arborizadas ruas que vibravam com o movimento de carroças, comerciantes e cidadãos cobriam cada canto daquele território, convergindo no coração da metrópole: uma torre de obsidiana que, perfurando os céus, projetava sua imensa sombra sobre as terras.

    A distância enorme fazia aquele obelisco ficar azulado na linha do horizonte, tal como uma montanha distante.

    No topo da torre, uma monstruosa réplica de Quilionodora era indistinguível. Feita de uma rocha branca e reflexiva, impecavelmente polida — era uma das únicas coisas na cidade que fugia do cinza, preto e vermelho.

    Com o badalar do sino de uma catedral anunciando o horário das dez da manhã, era hora de tomar iniciativa para conhecer a majestosa Sirius e resolver as pendências.

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