Capítulo 1 - Enquanto o sol se põe.
O sol tocou o limiar do horizonte, formando uma coroa no topo da mais gigantesca duna que se podia observar naquela vasta vista. Durou apenas um instante. Uma bola incandescente que devia estar a milhões de milhas – apenas por um instante – estava perfeitamente alinhada ao mundo sob seus pés.
Um único momento que se passou. Logo após, o sol pareceu derreter dentro da areia, desaparecendo gradualmente, enquanto gritos a forçavam a continuar caminhando, rumo a um lugar que desconhecia.
Pamela erguia seus pés a cada passo, tentando tirá-los da areia quente. Aquele par acostumado a um tratamento quase cerimonial no salão da quinta avenida agora sentia um calejar constante desde o calcanhar até o dedo mindinho. Suas unhas estavam preenchidas de grãos microscópicos e repugnantes. Seus sapatos haviam sido retirados, assim como todo o resto se sua roupa. Não havia sido tocada. O homem alto e magro se certificou que não fosse. A expectativa dos motivos por trás disso amontoava-lhe olheiras que só podia sentir.
Ela seguia as costas de Marcelo, que reclamava quanto a tudo e não parecia entender que era um prisioneiro. E atrás estava um homem que ela não reconhecia.
Seu sorriso duvidoso se fora, assim como sua atitude arrogante e impetuosa. Agora jazia apenas um olhar vago em um rosto constantemente aborrecido.
Gritos se espalhavam pelo ar à sua volta. Xingamentos na maior parte. Outros prisioneiros da batalha contra a companhia também eram levados pelos captores. Tanto homens quanto mulheres e crianças estavam amarrados uns aos outros, praticamente nus, apenas com um calção folgado que servia apenas como um tapa sexo. O torso estava exposto, com as mulheres cobrindo seus seios de forma envergonhada.
Pamela, e os outros dois eram as únicas exceções a esse tratamento, vestindo roupas de tecido grosseiro que lhe cobriam todo o corpo, e protegiam-nos do calor do dia e do frio da noite. Sequer dividiam a mesma corda que os demais, tendo uma para amarrar os três. Eram considerados como “propriedade do feiticeiro”, como diziam os guardas que os vigiavam.
“Saadi” era como os homens – que vigiavam Pamela – o chamavam. Um feiticeiro blasfemo do deserto. Um homem que despertava em Pamela tanto repulsa quanto medo.
Ao menos, enquanto aquele homem se interessasse por eles, ela não seria exposta como os outros presos. Ou era isso que queria acreditar.
Nuvens de areia se formavam ao longe, sendo levadas pelo vento forte que parecia vir de todas as direções. A trilha dourada do sol aos poucos desapareceu por detrás da duna longínqua e o céu azul celeste acima de sua cabeça logo transformou-se em uma vastidão escura pontilhada por centenas de milhares de estrelas. A luz azul da lua minguante surgiu no horizonte. Ao mesmo tempo, uma ordem passou a ser repetida entre os guardas.
— Parada — gritavam uns para os outros.
“Descanso”, pensou Pamela.
As colunas pararam, pondo os prisioneiros em uma roda cercada por guardas, enquanto outros montavam o acampamento.
Pamela, Tyler e Marcelo se encontraram separados da massa de presos formada de soluços e gemidos, amarrados ao lado da tenda de Saadi.
Uma grande fogueira foi acesa no centro do acampamento, iluminando os corpos e projetando sombras na imensa parede que os cercava de um lado. Era um caminho sinuoso o que a comitiva seguia, entre o precipício e um paredão de rochas, mas largo o suficiente para que dezenas de pessoas caminhassem lado a lado. Por algum motivo era estranho para Pamela que fosse assim. Talvez o garoto – Ítalo – pudesse explicar-lhe, mas ele não estava lá.
No dia em que foram capturados, Tyler fugira e o levara, mas logo fora preso também, sem Ítalo, e nada disse desde então. Pamela presumira o pior. Sentia-se triste em pensar nisso e pior ainda ao lembrar que sequer sabia o paradeiro de Daisy.
Um rosto em um cartaz escrito “Procura-se” apareceu em sua mente. “Ângela”. Pamela também nunca soube o que lhe acontecera. A terrível sensação de impotência lhe oprimia. No fim não pôde fazer nada, tanto naquele momento, quanto no atual.
A noite seguia com a lua minguante.
As vozes difusas dos captores se misturavam ao lamento dos capturados em uma cacofonia, que por algum motivo era menos incômoda que as queixas de Marcelo.
— Finalmente paramos. Eu não bebi nada o dia todo e estou com a barriga vazia. Quanto tempo mais esses filhos da puta vão demorar para nos dar algo pra comer?
Pamela desistira de lhe responder, esperando que se calasse em algum momento e Tyler seguia em seu silêncio melancólico, deixando o homem resmungão reclamando sozinho. Era algo que parecia incomodar até os guardas, embora eles não fizessem nada. O feiticeiro havia lhes ordenado que não os tocassem.
As reclamações aumentaram após o jantar ser entregue. Pão duro, cacto desidratado e água, como era toda a noite. As cordas em suas mãos foram afrouxadas para que comessem, apesar de seus pés permanecerem atados. Guardas estavam dispostos vigiá-los atentamente.
Pamela mastigou o pão com muito esforço e bebeu a água. Sentia mais o gosto da areia soprada pelo vento do que da comida em si. Marcelo comeu tudo, reclamando a cada mordida. Tyler sequer abriu a boca para comer sua parte, a qual ficou para Marcelo.
Além de se forçar a comer o que davam, podia sentir o cheiro do só poderia ser carne assando. O que tornava a refeição ainda pior.
Se lembrou de seu restaurante italiano favorito na quadragésima sexta com a Broadway. Do salmão grelhado e da sangria de lambrusco que pedia. De “Tom”, o garçom de ascendência alemã que sempre lhe falava respeitosamente sobre seu padrinho quando lhe atendia. Dos dias quentes no Central Park, e das noites frias quando passeava na quinta avenida.
Memórias queridas que se perderam quando Ângela desapareceu. Quando seu mundo mudou. Agora todas as suas noites eram solitárias, e os dias, sombrios. Mesmo antes do tiro acertar Pamela no peito enquanto a procurava. Uma morte anímica. Sem importância, como sentia que sua vida era naquele momento. Não conseguirá sequer encontrar sua irmã, de que adiantava continuar a viver? Isso, até “deus” lhe dar uma proposta.
Pamela suspirou encarando a silenciosa multidão nos céus que eram as estrelas. Desejando algo a que se apegar além das lembranças passadas e do tormentoso presente. Desejava voltar àqueles dias, ou esquecê-los. Infelizmente, nenhum dos dois lhe era possível.
Não podia voltar os dias, e não conseguia se forçar a esquecê-los. Desejava vivê-los mais uma vez. Desejava ter Ângela de volta. Por isso fora aquele mundo. Por isso continuava andando, por isso se forçava a sorrir, e se perguntava por quanto tempo poderia continuar assim.
Pamela então ouviu escutou um silêncio repentino. A voz dos guardas que os vigiavam cessou e Marcelo parou de falar. Ela olhou para eles notando suas posturas rígidas.
A compreensão a atingiu e antes que sua mente processasse o que ocorrera o medo se apoderou de seu corpo.
O feiticeiro acabara de sair da tenda e caminhava em sua direção.
Parou a poucos passos deles.
Pamela vislumbrou aquele olhar vazio e sem alma de um amarelo moribundo. Então sentiu uma dor que fez seu corpo estremecer. Ela caiu com a testa batendo no chão. Gorfou expelindo um líquido amargo pela boca. Sentiu que ia engasgar se tentasse respirar e desespero a tomou. Então o alívio veio. Ela tossiu violentamente quando o ar voltou a fluir pelo seu corpo.
Olhou para o lado percebendo que Tyler se encontrava na mesma situação, caído no chão.
Marcelo permanecia sentado, olhando para ambos com espanto.
— Fascinante — disse Saadi com um sorriso nos lábios.
Estendendo um braço, ele tocou no rosto de Marcelo, que mexeu sua cabeça violentamente para afastar-se, acabando por se desequilibrar e rolar pelo chão. Um guarda o prendeu sobre seus joelhos e o paralisou para que Saadi repetisse o gesto.
— Fascinante, sequer isso o afeta — murmurou o feiticeiro. — E quanto a ti? — Ele repetiu o gesto em Pamela, tocando-lhe na ponta do nariz.
Fora como se um relâmpago fizesse cada osso de seu corpo estalar. Ela viu a casa em que crescera. O jardim de sua mãe, o Pontiac verde de seu pai na garagem. O cheiro do ônibus escolar, o primeiro beijo que dera. Sua primeira vez. O sorriso de sua irmã e as últimas palavras que trocaram antes que ela desaparecesse. Assim como o arrependimento pelo que disse.
Quando voltou a si, estava no chão, chorando e com o corpo a tremer. O mago ria consigo mesmo e Marcelo e Tyler eram segurados pelos guardas enquanto se debatiam de forma violenta mandando que a soltasse.
Ela ergueu a cabeça, tentando levantar-se, mas seu corpo não respondia da forma que queria. Parecia dormente.
Saadi levou algo à boca e então virou-se para Tyler.
— Agora você — Tocou-lhe com o dedo esquelético.
Tyler convulsionou no mesmo instante, tal como Ítalo havia feito quando o feiticeiro o tocou. Durou apenas alguns segundos até que Saadi se afastasse para trás com um passe desequilibrado. Pôs a mão no rosto e se dobrou para frente.
— O que é você? — perguntou. Parecia perplexo. — Amarrem-nos novamente. — ordenou aos guardas com uma voz oscilante antes de se afastar lentamente.
Pamela foi posta de costas para os outros dois e atada a corda mais uma vez.
— Certifiquem-se de que eles cheguem à aldeia vivos. Terão grande utilidade para mim no futuro — Ele disse e se afastou.
Pamela sentia o corpo tremer, o gosto amargo em sua boca e o frio que lhe gelava a espinha cada vez que o vento batia em seu corpo. Ouvia a voz de Marcelo a gritar, e Tyler a tossir. Fechou os olhos, se perguntando por quanto tempo mais poderia aguentar aquilo. Se conseguiria sorrir como ela sorria.
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