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    Havia algo de errado com seus pés. Sabia, mas não conseguia entender o que era. Entendia apenas que esse era o motivo pelo qual a espada de madeira fora atirada de sua mão novamente.

    Thierry sempre preferia isso ao invés de um golpe direto. Algo que Eduardo poderia considerar humilhante, não fosse pela última vez que fora acertado. Demorara dois dias para conseguir se mover sem o joelho gemer de dor.

    Desde então ele vira essa preferência como uma pequena misericórdia de alguém que sabia a própria força – a qual Eduardo ainda mensurava o tamanho.

    Thierry o esperou pegar a espada do chão, então enumerou alguns de seus erros. Balanço de braços, postura, posição de mãos… nada sobre seus pés.

    — Lutemos mais uma vez — ordenou o homem e Eduardo prontamente obedeceu.

    Os dois atracaram-se em uma dança desarmoniosa.

    Thierry calmo e controlado. Balançando a espada como o ponteiro de um metrônomo. Os pés se movendo suavemente em perfeita ordem enquanto ele aparava os ataques e contra atacava.

    Eduardo, no entanto, sentia-se completamente fora de ritmo.

    A espada parecia-lhe curta. O que o fazia se aproximar demais de Thierry ao estocar, deixando-o aberto para os contragolpes. O cabo lhe era estreito, tendo de juntar mais as mãos do que o desejado, e mover os braços de forma desengonçada ao balanço da arma.

    E havia seus pés.

    Incertos, desengonçados, lentos. Curtos demais para alguns movimentos. Longos demais para outros. Não acompanhavam o restante de seu corpo. E o seu corpo não acompanhava os braços, que pareciam não se acostumar com o cabo da espada.

    E contra ele vinha Thierry, que não realizava nenhum movimento fora de nota.

    Passo e compasso. Recuo e investida. Bloqueio e estocada. Um arranjo de movimentos que fluíam com a naturalidade de uma tempestade.

    Logo, como se soprada longe por uma intensa rajada de vento, a espada de Eduardo rodopiava no ar, distanciando-se cada vez mais.

    Ofegante, Eduardo observou a arma cair no chão, e com ela desabou, sentando-se com o rosto na altura dos joelhos. Seus braços pareciam ter sido esticados quase ao ponto da ruptura e as pernas reclamavam do peso do próprio corpo.

    Thierry permanecera parado à sua frente.

    — Definitivamente, espada não é sua especialidade — disse ele com uma voz meditativa.

    Eduardo ergueu o rosto para o encarar. Um sorriso sarcástico abriu-se em seu rosto de forma inconsciente.

    — Fico feliz pelo senhor finalmente perceber isso — comentou, lembrando os dias de prática gastos com a espada.

    Thierry sorriu, a luz vespertina a traçar sombras amareladas no rosto envelhecido.

    — Descanse pelo tempo que hei de levar para voltar — Se afastou, caminhando com passos tranquilos, sem o menor sinal de cansaço.

    Eduardo se prestou a observar a vista. As árvores longínquas a soltar folhas ao vento que uivava continuamente. Os pássaros que enfeitavam os galhos e pontilhavam o horizonte. Dos gatos, que pareciam sempre estar por alí, se distraindo em seu próprio embate rente ao muro – o laranja perseguindo o creme.

    Uma bela tarde, concluiu. Bela demais para anteceder a véspera de sua partida.

    Como eu vou deixá-la?

    Thierry então retornou, trazendo com ele dois longos cabos de madeira. Tinham ao menos mais de um metro e meio, pela sua noção de medidas, e as pontas cobertas por trapos costurados. Aparentemente era para parecerem com lanças.

    — Prossigamos com isso — disse, parando a uma distância de ao menos dez metros de Eduardo e lançando-lhe um dos cabos.

    Eduardo estendeu a mão, pegou o objeto no ar, então o girou, acomodando ao longo do braço de forma que o cabo permanecesse grudado a sua pele em toda a extensão.

    Parecia-lhe natural.

    Thierry assumiu uma posição de guarda com sua lança de treino. As pernas abertas, o corpo levemente inclinado para frente, e o lado da ponta voltada para Eduardo, em posição descendente.

    Eduardo, deixando-se relaxar, começou a assimilar a estranha memória  corporal que o tomava sempre que segurava uma arma de cabo longo. Aparentemente, a única coisa dada a ele pelo deus ao conceder-lhe a dádiva.

    Assumiu sua postura; pernas abertas, corpo ereto e a ponta virada para cima, alinhada com a cabeça de Thierry.

    — Ataque — O velho homem ordenou, porém Eduardo não o fez. Ao menos não abruptamente.

    Começou a descrever um círculo em volta do professor, que o acompanhou girando o corpo cuidadosamente. As duas pontas se projetavam entre ambos, como bicos de aves prestes a entrar em combate. Se aproximavam à medida que Eduardo fechava o giro ao redor de Thierry em um espiral de passos cautelosos, até que as lanças ficassem a centímetros uma da outra.

    Então Eduardo avançou.

    Deu uma estocada segura. A ponta de trapos perfurando o ar em direção ao ombro esquerdo de Thierry, o qual defletiu o golpe batendo com a sua própria lança no cabo da de Eduardo, deslocando-a e fazendo errar o ataque.

    Com um passo para o lado, Thierry afastou-se e atacou – também com uma estocada.

    Eduardo inclinou-se para trás, seus pés saltitando pelo chão em dois passos ágeis. Viu a ponta de trapos passar a centímetros do seu rosto. Ergueu o braço e a lança que carregava, batendo na de Thierry, em uma tentativa de tirá-la das mãos do homem, ou ao menos quebrar sua postura, antes de avançar.

    Não teve êxito em nenhum dos dois objetivos. Thierry rodou o cabo em sua mão e o acertou no ombro com a parte traseira, causando-lhe uma dor que queimaria seu braço até o dia seguinte.

    Eduardo cambaleou e se agachou, desviando de uma estocada que vinha em sua direção como o bote de uma serpente.

    Rolou pelo chão e se ergueu alguns metros longe de Thierry, que não o perseguiu.

    O velho cavaleiro o observou. Os olhos gentis refletindo a luz da tarde que já entrava em seu fim. Então ele se aproximou, acelerando os passos e Eduardo assumiu sua posição de guarda.

    Tal como os gatos que observara havia pouco, os dois se encontraram. Thierry o laranja. Eduardo o creme. Um perseguindo e o outro fugindo da melhor forma que conseguia.

    Em meio ao furor da investida do velho homem, Eduardo sentiu o próprio corpo levemente e ágil como as folhas do outono que eram sopradas pelo vento. Seus braços e pernas eram leves e o respondiam como as asas de um pardal levantando voo entre as árvores.

    Thierry era a mesma tempestade de antes, mas Eduardo viu-se entrando em seu ritmo, tomando sua parte naquela dança de brutalidade como uma pluma levada pela brisa suave no centro do furacão.

    Esquivava-se, defendia-se e contra atacava, até o fôlego lhe faltar.

    Então a tempestade o levou.

    Uma estocada no ombro direito tirou seu equilíbrio, e outra, na coxa esquerda, tirou sua agilidade. E após, Thierry fez girar a grande lança, acertando as costelas de Eduardo com a extensão do cabo e expulsando o ar de seus pulmões.

    Eduardo caiu de joelhos no chão, abraçando a própria barriga. Sua boca saboreou o gosto da bílis. Seu nariz pareceu esquecer a função para o qual foi feito. Os ouvidos se tornaram surdos ao mundo que o cercava.

    Gemeu de dor até sentir a garganta se rasgar e o ar tornar a entrar, arfando desesperadamente por um tempo indeterminado.

    Uma sombra tapou a luz do sol no horizonte e falou palavras em um tom calmo demais para que Eduardo entendesse, no estado em que estava. Uma mão tocou seu pescoço e costelas.

    — Creio ter me excedido, mesmo que um pouco — concluiu a voz, dessa vez compreensível a Eduardo.

    Sua respiração se normalizou lentamente e a dor excruciante que sentia na barriga passou a ser meramente incômoda.

    Um pouco? Não pode deixar de se assombrar.

    O que seria muito para aquele homem?

    Thierry permanecera parado – a lança de treinamento sobre os ombros, uma mão repousada na cintura e a face tão inexpressiva e dura como uma estátua de mármore. Os olhos, embora o encarassem, pareciam distantes.

    — Terminamos? — Eduardo perguntou, ainda no chão.

    Thierry sorriu novamente, transmutando seu rosto de novo para a figura do velho e bom senhor gentil que Eduardo conhecia.

    — Ainda há tempo para uma lição, meu cara Edwardo.

    — E qual seria? — Eduardo rolou pela grama e se pôs trabalhosamente em pé.

    Thierry estendeu a mão e o ajudou a se levantar.

    — Sei bem que tem preferência por lanças. São armas letais, sem sombra de dúvida, mas há cenários em que há de preferir ter em mãos algo menor e mais maleável. Por isso, insisti em treinar sua habilidade com a esgrima, embora também não seja meu dom mais louvável.

    — Acho que tenho que dizer obrigado, né? — respondeu Eduardo, com a sugestão de um sorriso desaparecendo em seus lábios ao não ver o menor sinal de humor nos de Thierry.

    Este prosseguiu com a voz que apenas um homem experiente poderia ter.

    — Não se importe com os ideais da cavalaria. Tu não és um cavaleiro, não lutes como um. Haverá lutas para se usar lanças, e lutas onde espadas ou adagas lhe serão mais úteis. Outras podem ser vencidas com pedras e porretes, ou mesmo as mãos nuas e os seus dentes, se necessário. E haverão lutas que não poderá fazer nada se não fugir. — As sombras do sol crepuscular se misturaram em seu rosto, dando-lhe uma aparência soturna. — Se uma espada se inflamar, se o inimigo não sangrar, ou se palavras desconhecidas forem ouvidas por ti, reze para qualquer deus que possa ouvir.

    O vento pareceu cessar por um momento, os pássaros se calaram, e até os gatos, tão ocupados em sua própria contenda, pareceram se conter em reverência aquele momento.

    — Partirás, meu caro — declarou o velho homem. — Verás a extensão de um pouco do muito que é esse mundo ao qual vieste. Não poderei protegê-lo, estando aqui junto aos outros. Tampouco o deixarei partir indefeso.

    Levou as mãos ao pescoço e tirou o medalhão que levava em seu peito, beijando o desenho das duas folhas espelhadas que jaziam na pedra negra. Então o estendeu.

    — Leve-o contigo. O protegerá enquanto eu não puder — disse, em um tom que mais parecia um comendo do que um pedido.

    Eduardo engoliu em seco. Se aproximou, claudicando lentamente, e aceitou o cordão. Alisou a pedra com os dedos e sentiu seu peso e aspereza.

    Olhou para Thierry, sem ter ideia do que dizer.

    — Obrigado — respondeu por fim, achando ser a palavra mais adequada àquele momento.

    Thierry presenteou-o com um sorriso gentil, tornando a falar em seguida:

    — Dito isso, amanhã ocorrerá o tão querido e aguardado festival de outono. Aproveite-o até que acabe — Deu um forte tapa no ombro dolorido de Eduardo.

    Afeto e dor se misturaram, e o corpo de Eduardo se retraiu, enquanto Thierry ria.

    Ouviram uma voz chamando na entrada. A figura de Letícia mostrou-se num vestido verde limão.

    — O jantar vai ficar pronto, já, já, e o Roque quer que os dois tomem banho o quanto antes — disse ela.

    Os dois gatos – que jaziam escondidos próximos às plantas próximas à amurada da casa – saltaram sobre Letícia, fazendo-a saltar de espanto. Relaxou ao vê-los brincar, rolando sobre seus pés. Os pelos aparentando estarem mais felpudos do que momentos antes. A própria Letícia parecia aproveitar. Agachada, acariciava-os desde a cabeça, passando a mão pela barriga e caudas.

    Eduardo sorriu contemplando a cena. Olhou para Thierry, que não parecia estar no mesmo estado de espírito.

    — O que foi? — perguntou.

    O vento soprou fazendo mais folhas baterem contra eles e caírem no chão.

    — Nada a se preocupar, apenas pensamentos — afirmou o velho homem, ainda olhando para os gatos e para Letícia. — Pensamentos de alguém que não consegue esvaziar a cabeça. Vamos entrar e nos banhar. Assim eu os lavo.

    Moveu-se em direção a entrada. Eduardo o seguiu.

    Os gatos, em uma rápida sucessão de rodopios, se afastaram dos pés de Letícia, antes que Thierry se aproximasse.

    Ele olhou os animais se afastarem e saltar o muro, desaparecendo da vista.

    — Gosta de gatos, minha cara, Letízia? — perguntou de repente, ainda olhando na direção em que os gatos fugiram.

    Letícia – erguendo-se do chão – deu de ombros.

    — Mais ou menos, quer dizer… nunca pensei muito nisso. São fofos, eu acho.

    — Esses especialmente, não?

    Letícia ergueu uma sobrancelha. Eduardo já abria a boca para perguntar algo, mas Thierry bateu palmas, tomando a atenção de ambos.

    — Não prestem atenção nisso. São apenas pensamentos que precisam de um belo e demorado banho — afirmou, entrando.

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