Índice de Capítulo

    Amarelo, vermelho, azul.

    As coloridas cordas chacoalhavam ao vento, estendidas como fitas de festa junina nos postes que cercavam o lugar da festividade.

    Verde, laranja, violeta.

    Eram longas, entrançadas e finas.

    Preto, branco, dourado.

    Coloriam o nublado céu branco e pareciam vivas. Tão vivas quanto as pessoas sob elas.

    Palmas, vivas e risos se alastravam pela multidão como fogo em uma casa de madeira, enquanto tambores eram batidos, flautas sopradas e instrumentos de cordas vibravam. Mil cabeças se misturavam dentro do losango colorido. Muitas vindas de vilarejos próximos e distantes – parentes e amigos – para uma comemoração. Uma festa. O festival de outono.

    Um estrado fora feito no centro da formação losangular de postes, onde estavam reunidos, o prefeito Doniz, pier Rosei, sir Alóis e uma dezena de outros rostos pouco memoráveis a Julia.

    Uma grande mesa de pelo menos quinze metros, ricamente preenchida com tortas, assados, pernis, aves, pães, bolos e empadões, estava posta à frente do estrado. Criados cuidavam de reabastecê-la a todo momento.

    Outras quatro mesas as flanqueavam, onde pessoas de menos importância sentavam-se, observando a turba que se movia, dançando e pulando ao redor ao som dos instrumentos.

    Julia sentava em uma dessas mesas, sendo cercada de ambos os lados por conversas que necessitavam ser tão altas quanto a música para serem ouvidas. Thierry ao seu lado, embora estivesse mais preocupado em comer do que falar, atraia parte das atenções de todos da mesa, respondendo com moderada animação a cada pergunta e assuntos que lhe eram apresentados.

    Um dos mais falantes era Caio, que maravilhava os homens e assombrava mulheres com seu empolgado relato sobre a luta contra os ursos carmins.

    O assento, que antes estava ocupado por Eduardo, agora jazia uma senhora idosa que cheirava a sabão de sebo. Ele havia deixado a mesa momentos antes ao ser abordado sobre a luta.

    luta essa que parecia uma heróica história de eras passadas, ao menos da forma que todos a mencionavam. Como se não houvesse ocorrido há menos de um mês. Como se um acampamento medicante não tivesse sido armado não muito distante dali para tratar os feridos. Como se outro grande funeral não houvesse sido realizado para velar os mortos. Como se Eduardo não pudesse muito bem estar deitado entre eles, sendo enterrado.

    Lembrava das feições lúgubres no rosto de todos que haviam participado da cerimônia. Das roupas rasgadas e desbotadas que haviam usado. Do pier recitando um discurso sobre coragem e sacrifício para homenagear os mortos.

    Agora Julia observava essas pessoas, as mesmas pessoas enlutadas de um mês antes agora dançavam e festejavam ao som de tambores e flautas.

    Um estranho pensamento brotou em sua mente. Uma sensação que crescia de forma silenciosa, até tomar forma em palavras.

    Como meus pais reagiram?

    A pergunta pairou em sua mente, de forma que demorou para perceber Letícia a chamando, prestando atenção apenas quando a garota lhe sacudiu o ombro.

    — Ju, quer dar uma volta comigo? Quero ver se acho a Carmen — Leticia, sentada à sua esquerda, usava um vestido púrpura que descia um palmo abaixo dos joelhos.

    Julia acenou afirmativamente, sentindo de súbito a vontade de também procurar por Eduardo, e as duas se levantaram. Acenaram para Thierry e Caio e se afastaram em direção ao fluxo criado pela dança.

    As pessoas pulavam e giravam, alegrando-se umas com as outras. Ela os observava.

    Crianças corriam, brincando e pregando peças infantis. Cachorros ladravam e eram espantados por homens bêbados. Mulheres jogavam pétalas de flores, fitas coloridas e grãos para cima, em volta dos que dançavam.

    Viu a animada banda em seu ofício contínuo. Um homem de braços, pernas e barriga volumosos se agigantava diante de três tambores do tamanho de barris, espancando-o com tal violência que Julia temia vê-los se quebrarem.

    Um jovem de cabelos longos e rosto coberto por uma tintura facial – que o fazia parecer um felino – soprava uma flauta dourada composta por dois canos mesclados com dezenas de furos cada um, produzindo uma agitada e interminável melodia.

    Julia questionou-se sobre como o músico arranjava tempo para respirar entre os sopros.

    A frente, dando corpo e voz a canção havia um casal de alaúdes, segurados por um casal de alaudistas.

    A mulher, sentada com as pernas cruzadas, usando calça e blusa masculinas que ressaltavam seu corpo formoso – embora cheio demais para em certos lugares indesejados para uma dama – e sapatos de bico pontudos cor de vinho, batia com a mão nas cordas, arrancando notas profundas e ritmadas, enquanto o homem, alto, de barriga saliente e desavergonhadamente animado, batia o pé, dedilhando notas que casavam e se misturavam junto a voz que saía de sua boca, coberta por uma barba não muito espessa.

    Pulavam de música em música, guiando a multidão.

    Julia continuou andando, rondando os rostos, cores e olhares.

    Havia também aqueles que se amontoavam em pequenos grupos mais afastados, criando rodas de conversa à parte do movimento maior.

    Encontrou Théo e Eduardo em um deles.

    Os olhos de Eduardo se focaram nelas quando se aproximaram. Sua boca se abriu em um sorriso, aquecendo o peito de Julia pelo breve momento que existiu.

    Théo as cumprimentou com um oi e as apresentou para o restante do grupo. Alguns dos quais Júlia já conhecia de vista.

    Piercy, um homem que aparentava estar no auge de seus vinte anos, cujo sorriso parecia esculpido no rosto jovial. E um senhor cuja cabeça era coberta de cinzentos cabelos grisalhos e o rosto era marcado pelo início da velhice chamado Debret.

    Sim, já os tinha visto antes. Estavam presentes do lado de fora da tenda médica de Eduardo, dando-o como morto.

    Havia também Darden, um idoso de olhar vazio que já aparentava todas as marcas da velhice, e a única mulher do grupo; Núrya. Uma mulher baixinha de cabelos escuros presos por duas tranças, que desciam pelos ombros até a parte mais chamativa de seu corpo; a barriga inchada de quem aguarda uma criança. Estava ao lado de Piercy, de forma a não deixar mistério sobre o pai da criança.

    Eles as cumprimentaram. Núrya sorriu, acariciando a barriga protuberante com uma das mãos.

    — Olha esse pequenino, quantos meses? — perguntou Letícia com um sorriso animado, se aproximando e baixando a cabeça na altura da barriga de Núrya.

    — Creio que nascerá no final do inverno, no mês de antono. Isso se não for tão apressado quanto é o pai — explicou a moça, com um sorriso em seus lábios pequenos e uma voz que só podia ser descrita como vívida.

    — E nos trará muita alegria se o for, não é mesmo? — Piercy envolvendo-a com os braços e a abraçando por trás.

    Ela tocou sua bochecha com o dedo indicador de forma enfática, como se exigisse algo. Algo que foi atendido quando o homem beijou-a no local indicado, fazendo surgir em seus lábios o mais belo sorriso que Julia já vira no rosto de uma mulher.

    Um sorriso que não lembrava ver em sua mãe.

    — Em certas partes, sim. Em outras nem tanto. Mas o amarei, assim como amo você quando faz o favor de me massagear os pés — afirmou Núrya, brincando com uma das longas tranças.

    — Um favor bem prazeroso, posso dizer — ressaltou Piercy, sendo chamado a atenção por um sonoro pigarrear de garganta do homem chamado Debret.

    — Por mais que me revigora os ossos ver tanto amor juvenil, devo pedir para que guardem-no para um momento mais íntimo — afirmou, não sem um sorriso amistoso.

    O casal respondeu com um dar de ombros, pondo-se lado a lado novamente.

    Letícia puxou-lhes conversa, perguntando sobre os preparativos para receber a criança. Ao que Núrya respondeu com boa vontade, sempre massageando a parte de baixo da barriga.

    Julia, para não permanecer em silêncio, tomava sua parte nas questões, admitindo para si mesma uma certa curiosidade nos costumes daquele mundo.

    Os homens conversavam despreocupadamente. Entrando e saindo de assuntos banais de forma ligeira. A exceção de Théo, que parecia hesitante em suas respostas, e Darden, que parecia ter pouca vontade de falar qualquer coisa.

    Em certo momento, Julia ficou tentada a se aproximar mais de Eduardo, mas a desavergonhada demonstração de afeto anterior entre o apaixonado casal a desencorajou.

    Mas não ao próprio Eduardo, que se aproximou, colando o braço ao dela e enroscando os dedos nos seus em um carinhoso aperto. Sua mão era grande, quente, firme e não parecia que iria soltá-la tão cedo, e nem ela desejava.

    Julia não o encarou nos olhos, temendo o que a visão daqueles prismas lhe faria.

    Ao invés disso deixou sua vista vagar até encontrar-se com Núrya a encarando. Um sorriso meigo se espalhava por seu rosto de menina, o que fez um rubor subir no de Julia.

    A  gestante se desvencilhou do sorridente esposo, segredando-lhe algo ao ouvido – o que este assentiu – e tomou o outro braço de Julia, puxando-a, como também a Letícia.

    — Espero que não tome por ofensa o rapto de sua dama — disse, olhando para Eduardo. Julia sentiu o rosto queimar. — Por mais que tal momento seja agradável, sinto vontade de caminhar junto a uma companhia exclusivamente feminina. E como a grávida que sou, peço o direito da desfeita — Pôs a mão na barriga, tamborilando-a com o nó dos dedos.

    — Como não? Todos sabem que traz azar recusar o pedido de uma mulher prestes a dar à luz — brincou Debret, fazendo a imitação de uma reverência.

    Eduardo riu e concordou. Théo coçou o rosto que estampava simulacro de um sorriso. Darden permaneceu indiferente, observando-as se afastarem enquanto eram praticamente rebocadas por Núrya. Que, após alguns passos, olhou para trás, o rosto de menina assumindo uma feição devassa ao dizer:

    — Aproveitem e conversem assuntos que não podem ser tratados na frente de damas, meus senhores — Virou-se novamente e continuou a andar com um sorriso satisfeito na boca de pequenos lábios.

    Julia a direita, Leticia a esquerda, e Núrya no centro. As três caminharam de braços dados para as partes mais calmas e menos ocupadas da celebração, onde idosos passeavam e crianças de peito eram amamentadas. A brisa, embebida pelo cheiro de vinho, carne e flores de todos os tipos, soprava em seus rostos, enquanto a visão do campo aberto se estendia ao longe, com a vila sendo uma pequena mancha marrom em meio a verde e dourado dos campos.

    Nessa vastidão, Julia sentiu o corpo pesado em meio a leveza das sensações.

    — Ali está bom — Núrya falou de repente apontando para alguns tocos e troncos de árvores caídos no chão de relva rasa. — Sentemo-nos para dar descanso aos meus pés, por favor.

    As três seguiram em um só passo até o local indicado. Julia e Letícia acomodaram Núrya cuidadosamente em uma tronco caído e sentaram nos que estavam ao seu lado.

    A gestante suspirou fundo, trazendo alívio a Julia com o simples som de sua respiração.

    — Ah, meu querido, espero eu que nasça com tanta saúde como me falta agora — disse, olhando para a barriga.

    Julia sentiu os lábios se dobrarem em um curto sorriso antes de começar a falar:

    — Quando crescer, provavelmente vai correr para todo canto, com senhora atrás, carregando uma colher de madeira.

    — Ou com uma sandália na mão — acrescentou Letícia, rindo.

    Núrya fez uma cara pensativa – o dedo indicador levado aos lábios, que se comprimiam em um bico.

    — Correr, não. Eu mandaria alguém – gentil o bastante para obedecer – cavar um buraco, tamparia-o com palha e poria tortas de maçã em cima. Quando o meu pequeno for tomá-las para si, cairá em minhas mãos.

    — Como sabe que ele vai ser atraído pelas tortas? — Julia objetou.

    — Por que, o senhor meu marido e orgulhoso pai de meu pequeno, foi atraído por tal isca e também caiu em minhas mãos — fechou o punho, sorrindo com triunfo.

    As três riram.

    — Preciso provar essa torta, então — comentou Letícia, e Julia concordou.

    — Avisem-me. Eu a farei em qualquer dia que desejarem me visitar — decidiu Núrya, erguendo os braços e se espreguiçando.

    Um silêncio se seguiu. Não um vácuo incômodo de quem não sabia o que se dizer. Era uma deleitável compreensão que não precisava de palavras naquele momento. Apenas de disposição para apreciar o mundo à sua volta.

    Os sons vibrantes da festa ao lado. O frescor do vento em suas peles. O apetitoso cheiro que fazia suas bocas salivarem. A vista de tudo que se apresentava em volta.

    Julia por um momento se viu imersa naquilo que a envolvia, como nos momentos em que fechava os olhos embaixo do chuveiro e sentia a água tocar todo o seu corpo. Quase a fazia esquecer de todo o resto. Quase.

    Ouviu a voz de Núrya e saiu desse estado de estupor.

    — Conhece-o há muito tempo? — perguntou ela.

    Julia virou bruscamente o rosto em sua direção.

    — Desculpa, mas como é? — arfou debilmente.

    A troça parecia brincar nos olhos de Núrya, muito embora sua voz fosse delicada.

    — Aquele distinto jovem conhecido por “Matador de ursos”, e que o senhor meu marido tem alegria em chamar de amigo. O caro Edwardo, de quem todos comentam.

    Julia sentiu o corpo desconfortável e mudou de posição no toco em que se sentara. Lambeu os lábios ao menos duas vezes ao tentar responder, com o ar lhe faltando e a língua seca. Até que parou ao refletir na resposta.

    — Três — disse —, três ou quatro meses, eu acho — franziu levemente o cenho. Fazia mesmo tão pouco tempo que se conheciam?

    E ele morreu para me proteger quando não tínhamos sequer duas semanas inteiras juntos, refletiu desconcertada.

    — Ah, algo tão recente. É comum se mostrar afoita com pensamentos tão novos — refletiu Núrya. Parecia se comprazer pelo que dizia.

    Letícia antecipou-se ao entrar na conversa antes que a grávida prosseguisse.

    — Ei amiga, e vocês dois hein. A quanto tempo os pombinhos estão voando juntos? — Fez um gesto, unindo os dois indicadores em direção a Núrya, que pareceu demorar para entender o significado. A que sorriu e seguiu em dizer:

    — Um tempo pequeno demais para que eu tome tudo o que ele pode me dar.

    — E o que seria? — perguntou Julia.

    — Todo o amor que ele tem — A rubra feição da jovem mãe se tornou um misto de afetuosidade e expectativa.

    — Mas, pelo que a gente viu, ele já te dá todo o amor do mundo — Letícia fez uma careta, como uma criança enjoada com algo doce.

    — Há diferenças na porção de amor que se oferece a alguém — alegou Núrya em um tom professoral. — A um pai se oferece o amor em forma de obediência. A uma mãe, em forma de carinho. A um irmão velho, respeito, a um mais novo, tolerância. A um amigo, confiança. A uma amiga, confidencialidade.

    Seus olhos negros fixaram-se nos de Julia. O rosto de menina assumindo o mesmo sorriso devasso que tinha mostrado aos rapazes antes.

    — A um amante, tudo o que seu corpo dispõe. Àquele com que se compartilha uma vida, a sua própria. E a alguém com quem se criou outra vida — Passou a mão novamente na barriga, dessa vez de forma mais afetuosa do que das demais —, tudo que a alma dessa pessoa exige. Pois desse amor vem a certeza de que ambos existirão para sempre dentro daquela pequena semente. É isso que os piers chamam de amor eterno, dado por Ellday. E minha alma ainda não está saciada, e espero jamais me saciar de meu querido e amado senhor meu marido.

    As lágrimas transbordaram em seus olhos redondos e meigos, escorrendo pela face macia e rosada. Letícia limpou o nariz, fungando enquanto escondia o rosto tomado por lágrimas. Só então Julia percebeu que também chorava.

    Pensou em seu pai, que a muito não via com respeito, em sua mãe, cujo carinho se tornara tão reservado. Pensou nos primos, os quais via como irmãos que não teve. Nas amigas cuja confidencialidade era parcelada e desajeitada. Em Eduardo, imaginando como o via, e que tipo de amor lhe proporcionava.

    Então veio a sua mente um rosto que não pensava a tempos.

    Um amigo. E ela ficou aliviada de pensar nele como tal. Aliviada, e levemente triste por ser assim.

    — Por que vocês estão chorando — Uma voz conhecida questionou.

    As três se viraram para ver Carmen, vestida numa roupa delineada de corte bem ajustado e coberta de enfeites brilhantes, parada ao seu lado com uma face de incompreensão.

    — Por nada — respondeu Letícia, secando as lágrimas. — Procuramos por você.

    — E fui eu que encontrei vocês. Ah, oi — cumprimentou Núrya, como se só naquele momento a houvesse reparado.

    Núrya acenou com a cabeça, então voltou a falar.

    — Melhor voltarmos. Logo será noite e desejo estar com o senhor meu marido quando a fogueira noturna for acendida — Estendeu as mãos e Julia e Letícia a ajudaram a ficar em pé.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota