Capítulo 13 - Pão e leite. Queijo e vinho.
Um acorde ressoou e então veio o dedilhar das cordas. O murmúrio melódico da flauta flutuou pela noite, enquanto a marcha dos tambores ditava o ritmo da balada. Duas vozes se ergueram. Uma grave, porém suave. A outra, aguda e selvagem. Ambas se entrelaçaram como amantes apaixonados na noite de núpcias.
Cantavam uma música sobre as estações, sobre as folhas que caem, sobre o sol que aquece, a flor que brota e a neve que derrete. Sobre a mudança, sobre a permanência. Sobre o amor e sobre o desejo.
Os quatro músicos tocavam em uma folia sem igual frente à chama refulgente que queimava intensa no centro do animado campo, repleto de pessoas que momentos antes recitavam versos em uma cerimônia solene.
As quatro sombras causadas pela chama pareciam se projetar como extensões de seus corpos, como pinturas escuras em um quadro branco.
Julia os observava, e os admirava. Sentia as notas vibrarem por seu corpo, o bater do tambor ressoar como um coração vivo, a melodia da flauta tirar sua respiração, e as vozes afastarem as preocupações de sua mente.
Havia apenas a paz e o riso.
Resquícios do momento anterior, que encerrou-se quando as belas vozes se extinguiram – como as brasas que ascendiam cada vez mais alto – deixando apenas o eco no silêncio contemplativo que veio após. O qual foi seguido pela alegria que agora se espalhava pela multidão que se dispersava, separando-se em pequenos grupos, rodeando fogueiras menores, em volta da principal.
Julia sentou-se junto a Eduardo em uma roda ao redor de uma das fogueiras. Núrya e Piercy, Letícia e Carmen, Théo, Debret e Darden. Todos se reuniram em uma roda ao redor do fogo.
Conversaram como velhos conhecidos, e como novos companheiros. Falaram sobre dias passados e aqueles vindouros. Lamentaram sobre o filho de Darden, e comentaram sobre o nascimento do de Núrya e Piercy.
Em certo ponto, Debret se aproximou de Eduardo, falando em voz baixa ao seu ouvido.
— Não, não me importo — respondeu ele.
Debret voltou ao seu lugar e Julia se inclinou aos ouvidos do namorado.
— O que foi? — perguntou.
— Ele me perguntou se eu me importava que ele e o Darden fizessem a partilha.
— O que isso significa?
Eduardo deu de ombros e disse:
— Acho que já, já vamos saber.
Sem que percebesse, Júlia viu pães e queijos distribuídos pela roda. E copos e jarras de pedra.
Debret e Darden, os dois mais velhos, as seguravam, como também os pães e os queijos.
Repartiram o pão e o queijo, distribuíram os copos, e verteram o conteúdo das jarras. Julia viu um líquido branco ser derramado de uma jarra e outro, mais escuro, de outra.
Debret deu-lhe um copo e ergueu um pouco a garrafa que segurava, em um gesto que Julia tomou por uma pergunta silenciosa – Darden fez o mesmo.
Ela apontou para uma e observou enquanto a fina linha branca escorria da jarra para seu copo, enchendo-o até a borda.
Provou, sentindo o gosto reconhecível do leite.
A música recomeçou. Um harmonioso remendo de sons que davam som a noite iluminada, encorpando as conversas da fogueira.
A comida continuava a surgir através de serviçais que atravessavam o campo repleto de fogueiras levando bandejas sortidas com os mais variados tipos de pratos de aves, pernis, frutas, vegetais e bebidas.
Julia entretia-se alternando assuntos entre Núrya e Letícia, trocando olhares com Eduardo e abocanhando partes cada vez maiores de pão, queijo e pedaços finos de carne defumada, os quais engolia com a ajuda do leite servido.
Debret e Darden sentavam-se e levantavam-se com frequência, distribuindo a comida sem qualquer tipo de descanso.
— Por que eles não sentam e só repassam a comida de mão em mão? — perguntou, a ninguém em específico enquanto olhava para os homens.
— Do que está falando? Essa é a partilha. Sempre foi assim — explicou Piercy.
— Sim, sim, verdade — Leticia cutucou o braço de Julia com o cotovelo. — O que está tomando, querida? — perguntou a Núrya, se inclinando para espiar o conteúdo de seu copo.
— Estou alternando, afinal quero expressar tanto a devida gratidão para com Ellday, quanto desejo sentir a doce alegria desse vinho e transmiti-la ao meu pequeno.
Julia piscou os olhos, se perturbando ao pensar na criança.
— Não vai fazer mal beber álcool estando grávida?
Núrya franziu as sobrancelhas. Debret, que estava próximo das duas naquele momento, riu ruidosamente.
— Como pode o vinho de Ellday fazer algum mal, garota? — Ofereceu-lhe a jarra. — Ainda não a servi.
Julia encolheu a mão de forma inconsciente.
— Talvez depois. Ainda não terminei — disse.
Debret levantou uma sobrancelha e se pôs a servir Piercy, retornando ao seu lugar logo após.
Uma dor atingiu seu braço no mesmo lugar do cutucão anterior e um sussurro ríspido lhe soou o ouvido.
— Garota, para de dar tanto vacilo. Eles nem sabem o que é álcool direito.
Julia esfregou o copo.
— Foi mal, eu esqueço.
Tentou acalmar sua mente, passando os olhos ao redor da fogueira e viu Caio sentado junto a Theo e Carmen. Dos três, apenas ele parecia animado com a conversa. Reparou Carmen a olhando de forma aborrecida, e se perguntou o motivo de tal coisa.
Percebeu também que Darden havia sumido em algum momento, e – sentado em seu lugar – Thierry segurava a jarra de leite. Servia os outros com sorrisos gentis e gracejos agradáveis, preenchendo o silêncio do homem enlutado com sua voz animada.
Mais de uma vez ele a serviu e ela notou o cansaço em seu olhar, lembrando-se da expressão educada que a mãe fazia ao atender clientes problemáticos. Eduardo se reposicionou, sentando-se mais próximo a ele e a Debret.
— Bom e abençoado senhor sir Thierry, poderia conceder a honra de lavar meu pequeno quando chegar o tempo? — Núrya perguntou, estendendo o copo para que o homem o enchesse.
Julia olhou para Thierry com curiosidade, enquanto o homem se aproximava com a jarra de leite.
— Embora tal pedido me encha de lisonja, devo recusar pois apenas os piers podem lavar pecados — respondeu, enchendo o copo da grávida.
Núrya posicionou o copo acima da barriga, segurando-o com ambas as mãos. Observando o conteúdo enquanto um sorriso nascia em seus lábios.
— Os piers lavam os pecados sim, mas não somente eles têm permissão para fazê-lo, não estou certa? — disse, levando o copo à boca.
Thierry ergueu uma sobrancelha, assim como Julia que ouvia a conversa, ignorando a sua própria. Núrya tornou a falar.
— Todo homem santo ungido pelo sumo pier também pode fazê-lo. E segundo as histórias que por tantos anos ouvi a vosso respeito, meu senhor, tu fostes ungido na manhã de tua partida para Hazabarca, não? — Núrya abriu seus lábios de forma meiga, mostrando o branco dos dentes – tão brancos quanto a fogueira que ardia no centro de todo aquele mundo de luzes.
A música cessou.
Um momento de silêncio se fez quando Núrya terminou de falar. Não apenas Julia, mas todas as pessoas próximas pareciam ter esquecido seus assuntos para prestar atenção no que se dizia entre os dois.
Um silêncio que fez o sorriso de Núrya recuar, restando apenas uma expressão que parecia oscilar entre a confusão e a expectativa.
— A senhorita teve uma boa educação — elogiou Thierry.
Um rubor subiu ao rosto da jovem mãe.
— Prestei muita atenção aos ensinamentos dos piers desde meus dias como uma moça pequena.
— Uma atenção que é raro ver mesmo entre as altas castas das raparigas de Pérgamo.
A respiração de todos os demais pareceu prender-se quando Thierry pronunciou a última palavra. Julia notou Piercy se aproximar mais da esposa, segurando-lhe a mão de forma carinhosa. Os olhos parecendo refletir mais brilho do que antes.
— Meu senhor, não sabe quanto me alegra ouvir isso — afirmou Núrya com certo tremor na voz sempre tão meiga.
— Núrya, não é? — Thierry abriu um sorriso, mas Julia não reconheceu nele a habitual gentileza de sempre. Havia algo mais.
— Sim — Núrya fez um gesto reverente com a cabeça, tornando a olhar para Thierry com um olhar temeroso.
— Ainda assim, devo declinar seu pedido. E eis o porquê.
Um acorde distante soou alto, cortando o silêncio próximo que se fazia. Um som melódico, agudo, duradouro e mutável, que em segundos parecia tanto um gemido de prazer quanto de dor.
Quando as notas soaram por tempo suficiente, outras tomaram forma em rápida sucessão, em uma euforia tão mutável quanto o vento.
Julia surpreendeu-de, olhando na direção dos músicos. Então escutou a voz de Thierry novamente e virou o rosto, assustando-se com o dele.
— É verdade — Ouviu-o dizer com uma expressão que parecia esculpida em aço. — Homens santos, de boa reputação, ungidos pelo sumo pier podem lavar pecados.
As vozes dos músicos se ergueram ao longe, cantando uma música sobre afronta e justiça.
— É verdade que tenho boa reputação, dada a mim mesmo que não a deseje.
Sobre guerra e remissão.
— É verdade que fui ungido pelo sumo pier Degoriey anos atrás, na partida das legiões Ellditas para a tomada das cidades qe’litas.
Sobre uma cidade e um cerco.
— Apenas uma coisa não é verdadeira, minha cara Núrya.
Sobre uma bruxa e um santo.
— Eu não sou um homem santo.
Sobre uma lenda. Sobre um homem.
— Perdão, minha senhora — Olhou para os rostos na roda. — Com a licença e permissão de todos, eu me afasto — Ele entregou a jarra a Eduardo e partiu.
Era uma música sobre Thierry.
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