Índice de Capítulo

    Era um dia dourado e sem sol. As ruas jaziam barulhentas e vazias. Sons como o bater de asas de mil pássaros podiam ser ouvidos ecoando por todas as vielas, mas não se via uma pena flutuando no ar. Não havia ninguém. E havia Ele a encarando.

    — Olá, portadora — saudou-a com a voz e o rosto familiares de sua mãe.

    Julia não respondeu. Aguardou, sabendo que Ele continuaria. E Ele continuou.

    — Vejo que está mais paciente do que em nosso último encontro. Isso fará lhe fará bem — Um sorriso distorcido surgiu no rosto materno.

    Júlia aguardou. O sorriso sumiu e Ele voltou a falar:

    — Há algo que devo lhe dizer, se estiver pronta para ouvir.

    — Eu tenho escolha?

    — Você já escolheu.

    Um tremor perpassou o corpo de Julia.

    Calma, disse a si mesma. E estava. Não sabia como ou o porquê, mas sentia uma calma que não parecia sua. Uma que a impedia de gritar e chorar frente a presença da coisa.

    “Quando”, ela desejou perguntar, mas já sabia.

    O templo, a estátua, a dádiva. Ele.

    — Então fale logo.

    Ele inclinou levemente sua cabeça e curvou a linha de seus lábios em uma expressão inquisidora.

    Então um sorriso se abriu.

    — Vejo que o pequeno pardal está aprendendo a saltar.

    Julia ouviu assobios nas suas costas. Virou-se e viu meia dezena de serpentes rastejando até seus pés.

    — Embora ainda não tenha aprendido a voar — A voz soou seca e desagradável.

    Julia prendeu a respiração.

    Vermelho, preto, amarelo, verde, castanho. As finas criaturas pararam a um palmo de distância de suas pernas. Os olhos afiados a encará-la.

    — Agora escute, pois pouco tempo temos a perder — A cabeça retornou à posição normal enquanto Ele falava. — Tu escolheu-me, e no entanto pouco sabe sobre mim. Eu também tenho pouco interesse em lhe dizer qualquer coisa a meu respeito.

    — Por que tá me dizendo isso do nada?

    — Pois para que o objetivo pelo qual estamos unidos seja cumprido, sou obrigado a cooperar com alguém como tu.

    — As chaves?

    — O deus — Ele respondeu em tom profundo, atípico do que se esperava de uma mulher.

    Os prédios pareceram se contorcer e aumentar em tamanho de forma desproporcional. Uma sombra cobriu a rua ao mesmo tempo que um vento gélido bateu contra seu rosto. As serpentes sacudiram as cabeças, silvando como aptos de chaleira.

    Julia olhou para cima, notando uma única nuvem escura no céu. Uma mancha sombria em meio ao dourado mesclado de branco. Ouviu um som familiar e ao mesmo tempo incomum. Familiar para ela, incomum naquele lugar.

    Chuva.

    Gotas negras caíram nas ruas e sobre ela. Eram quentes, pesadas e de sabor adocicado. Julia o reconheceu. Passara metade da noite se acostumando a ele.

    A chuva tornou-se cada vez mais forte, de forma que um pequeno afluente roxo escuro corria pelo meio fio.

    As serpentes se dirigiram a pequena correnteza, adentrando-na por inteiras.

    — É uma surpresa, devo dizer — disse a voz de sua mãe. — E pensar que um dia sentiria o poder daqueles contra quem lutei por tanto tempo.

    — O que, como assim? — perguntou Julia, tirando sua visão das serpentes banhando-se no rio de vinho.

    — Entende o que sou? — Os olhos de sua mãe a encaravam.

    Julia tremeu sem resposta.

    — Já lhe disse tantas vezes — disse Ele, balançando a cabeça.

    Julia compreendeu.

    — Uma memória — falou em um sobressalto.

    — Sim. “De que?” e “De quem?” Pode me responder isso?

    Julia ficou em silêncio novamente.

    Ele sorriu.

    — Não está pronta para saber — declarou.

    — Como assim, se eu nem entendo o que você diz?

    — Exatamente por não entender, você não está pronta. Agora, faça o favor de permanecer em silêncio e pronta atenção.

    Julia sentiu o corpo enrijecer.

    — Embora esteja preso a ti, ainda sou algo diferente – tanto de você, quanto daquilo que um dia fui. Sou um outro, não eu. Embora o tempo que isso perdurará ainda foge ao meu conhecimento.

    Julia franziu as sobrancelhas. Ele riu de forma desagradável.

    — Viu? Aborrece-me ter de explicar algo a quem não entende o que digo. Agora, prosseguindo: sendo outra coisa, sinto o mundo de forma diferente. Sei de coisas que tu nem imaginas ou entendas. E digo-te isso para que se lembre.

     Julia sentiu algo enrolar-se ao redor de suas pernas. Não conseguia mexer a cabeça para ver o que era.

    — O mundo para sempre irá se mover e mudar. Aqueles que ignoram seu movimento não tem escolha a não ser serem por ele mudados. Aqueles que o aguardam, se antecipam para não serem esmagados por suas rodas — Julia sentiu as criaturas se enrolarem por seus braços e pernas. — Então, meu caro pardal, não ignore os movimentos, antecipe-os.

    Sentiu uma das serpentes enrolar-se em seu ombro e pescoço, apertando-os levemente. A calma que a tranquilizava pareceu esvair-se como o ar de um balão.

    — Busque o poder que estiver disponível e aceite aquilo que lhe for oferecido. Tal como fez ao me escolher, tal como fez ao beber o vinho.

    Sentiu as serpentes abocanhando seus membros – os dentes finos como agulhas adentrando na carne, aspergindo seu veneno.

    Movendo apenas os olhos, notou veias rubras se espalharem por seu corpo a partir das mordidas, junto a dormência que entorpecia seus músculos.

    Julia caiu sobre a rasa torrente escura, sentindo o vinho lhe molhar o rosto. Não havia dor, apenas dormência. Não conseguia se mover ou falar, apenas escutar o fino silvo das serpentes a se moverem sobre seu corpo, o qual começou a afundar no vinho.

    — Recebe hoje tal poder e o usa, pois mui breve é o tempo que se fará necessário — disse a voz de sua mãe, como um eco distante, antes de ela ser coberta pelo negrume espesso.

    Abriu os olhos em seu quarto, com as luzes do dia adentrando por entre as frestas do telhado. Um confortável silêncio se fazia no quarto morno. A cama jazia desarrumada com cobertas e lençóis enrolados em suas pernas e corpo.

    Estava ensopada em suor.

    Usava a mesma roupa do dia anterior. O mesmo vestido, as mesmas saias, a mesma calçola. Apenas não usava o mesmo sapato, e se recusava a se lembrar de como o havia perdido.

    Pensou na noite anterior – à exceção da volta para casa, que fingia não ter ocorrido. O festival, as fogueiras, o banquete, a música, as pessoas. Núrya e Piercy. Decidiu que gostaria de vê-los novamente. Núrya em específico.

    Lembrou-se das majestosas fogueiras. Pareciam mágicas. Eram vivas e ao mesmo tempo pareciam ter surgido de uma pintura antiga.

    Recordou a própria fogueira. Ela tomou leite, comeu pão, carne, queijo e bebeu vinho. Foi então que sua mente devaneou, flutuando pelo fluxo de memórias e ações.

    Havia beijado Eduardo, xingado Theo e batido em Carmen. E estranhamente, sabia o motivo de tais comportamentos – além do álcool ingerido.

    Se irritara com o olhar nada discreto de Théo para com Carmen. Batera em Carmen por pensar que ela estava olhando demasiadamente para Eduardo de uma forma que em nada lhe agradava. E beijara Eduardo por que suas bocas jaziam próximas e livres.

    Lembrava de tudo, até do que não desejava, e lembrava do sonho após dormir. De cada palavra dita por Ele.

    O vinho, a nuvem, as serpentes.

    Lembrava, e não entendia.

    “Exatamente por não entender, você não está pronta”, a voz ecoou em sua cabeça, causando um aperto em seu peito.

    Ficou parada e quieta por um tempo, observando se outra voz diferente não lhe falaria aos ouvidos. O confortável silêncio prevaleceu. O que fez sua respiração e ombros suavizarem-se.

    Julia inspirou, inflando o peito, então soltou todo o ar em um suspiro profundo.

    Não adiantava pensar sobre o que não entendia. Ela deixaria que outras pessoas fizessem isso. E assim o fez.

    Contou para Thierry, que reagiu a tudo com sua calma habitual, respondendo com “Algo mais?”, dizendo que pensaria no significado. Resposta parecida e ao mesmo tempo diferente da de Théo, que ao contrário do silencioso senhor, pensava em voz alta no assunto, levantando uma dezena de hipóteses. Leticia estava mais preocupada com o bem estar de Julia após o sonho, assim como Eduardo.

    Caio pareceu não forçar sua mente em pensar no assunto. E Carmen sequer deu opinião ou falou com Julia. Ainda estava com raiva do tapa recebido.

    Logo os dias se passaram, sem que ela percebesse, e o sonho pareceu deixar de importar tanto para todos, pois era chegado o momento em que todos esperavam e temiam. O momento da partida.

    Centenas de pessoas se amontoavam ao redor do caminho para o portão da vila. Camadas de nuvens escuras, cinzentas e brancas se mesclavam no céu outonal. Bandeiras hasteadas flamulavam ao vento enquanto seus portadores marcavam a frente da comitiva.

    Thierry, Théo, Letícia e Julia aguardavam a frente da multidão por sua passagem. Não viram Carmen.

    Julia viu os machados coroados do cavaleiro, se perguntando o motivo da coroa estar invertida. Perguntaria a Thierry depois. A outra ostentava uma serpe com uma lança atravessada – essa ela sabia. O símbolo do Freive. Representando a morte da grande serpente de Cains nas mãos do fundador da casa monárquica durante os dias púrpuros, segundo a história que Thierry os contou, além da meia centena de músicas que ela ouvira durante o festival.

    Após ela, vinha sir Alóis montado em um garanhão negro. Vestia com um gibão marrom com os machados cozidos no peito. Erguia o queixo como se com ele apontasse a direção a seguir.

    Junto a ele, montado em um palafrém marrom e branco, estava o jovem de cabelos loiros que Julia encontrará na noite do festival – memória que ela preferia fingir ter sido outro de seus sonhos. Ele usava uma camisa verde de tecido leve e aparência fresca que combinava com seus olhos. Botões vermelhos formavam uma linha em seu peito.

    Ele acenou em direção a uma garota na multidão, a mesma da outra noite. Julia não poderia afirmar, mas o rosto do escudeiro lhe parecia o de alguém satisfeito.

    A comitiva seguiu. Homens montados a cavalo, carroças de carga, e então a infantaria com suas lanças e armaduras.

    Prestou atenção até que um deles ergueu a mão olhando em sua direção e ela gritou em resposta.

    Não ouviu a voz, nem viu seu rosto, mas esperava que ele a tivesse ouvido e visto o dela. Seria o último vislumbre que ambos se lembrariam em muito tempo. Ao menos Julia se consolava na ideia de que ele se lembraria. Pois ela iria.

    Continuou a olhar, notando outra pessoa a levantar a mão em sua direção quando os besteiros passaram por eles.

    Caio gritou tão alto que eles ouviram sua voz, e Théo respondeu na mesma altura, levando a um suspiro exasperado de Leticia devido a vergonha alheia da troca de gestos.

    A comitiva continuou com mais carroças seguindo após os soldados. Apesar da variedade, eram poucas pessoas se comparado a que se formou na caça aos ursos e logo as últimas carroças da fila surgiram.

    Então Julia  viu, sentada na parte de trás de uma das carroças.

    Vestia um vestido cinza de tecido com detalhes floridos nas mangas, identificáveis cada vez que ela ajeitava os cabelos escuros.

    Carmen olhou para ela quando no ponto mais próximo em que poderiam estar uma da outra –  olhos de ambas se encontrando – e então sorriu. Um sorriso que fez brotar no peito de Julia um sentimento que lhe corroía a carne.

    Não viu naquele olhar a sua amiga. Viu a pessoa que estapeou no festival. De repente percebeu que não se lembraria do vislumbre de Eduardo, mas sim daquele olhar. Daquela pessoa que fora embora junto da comitiva, e junto de Eduardo.

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