Capítulo 17 - Ideias.
Os atordoantes sons dos martelos ecoavam nos ouvidos de Jonas.
Metal batendo em metal, moldando e sendo moldados através de incontáveis marteladas poderosas.
Poderosas e dolorosas.
Dezenas de homens e mulheres, vestidos de couro, peles e aço, caminhavam de um lado para o outro. Observando o trabalho dos ferreiros e vistoriando os estoques repletos de espadas, lanças e machados polidos. Decidindo se comprariam-nos. Ao menos aqueles que tinham algum dinheiro.
Jonas costumava observar as armas de longe, onde aqueles que claramente não tinham as moedas necessárias aguardavam. Fora das lojas.
Isso fora antes, quando se vestia com trapos e restos de tecido costurados. Quando tinha aparência um pouco melhor do que a de um mendigo aos padrões de seu mundo.
Naquela manhã, no entanto, ele estava trajado da forma mais rica e elegante que se lembrava. Uma camisa turquesa de seda fina sob um colete marrom cujo toque era tão liso que parecia deslizar sobre seus dedos. Uma calça marrom completava sua vestimenta, além do sapato de bico fino.
Embora tivesse certeza de as haver amarrotado quando ainda saiam dos aposentos do conde, Jonas não percebeu nenhum amassado no dia seguinte, ou quando as vestiu.
Perguntava-se o motivo.
Erik, vestido de forma mais simplória, porém não menos apresentável, com um gibão e uma calça curta, chamada por ele de braga, apontou para uma loja de um dos armeiros.
— Certo, agora vamos naquele — decidiu, desviando de um homem com o dobro de sua largura carregando um baú aberto cheio de setas de ferro, e avançou em direção à loja.
Jonas o seguiu, caminhando o mais rapidamente possível com os sapatos que usava. Parando ao lado do amigo na entrada da loja, onde estava o vendedor. Um homem da altura de seu ombro, com o corpo do formato de um abacate e um rosto de aparência rechonchuda com duas cabeludas costeletas ao lado de cada bochecha inflada. Vestia-se com uma camisa branca, coberta por um colete sedoso e escuras calças azuis.
Ignorando o falar de dezenas de bocas que se sobrepunham em seus ouvidos irritantemente sensíveis, ele concentrou-se na conversa entre ele e Erik.
Menos elegante do que as roupas do conde, mas infinitamente melhor do que os trapos que Jonas e Erik usavam até o dia anterior.
— Bem-vindos, meus senhores, me chamo Delmoro, posso saber o que desejam? — disse ele, esfregando as mãos.
Erik pôs a mão no bolso, tirando dele o seu conteúdo e estendendo-o na altura da vista do vendedor, cuja face dançou entre dúvida, compreensão e ansiedade nos meio segundo que Erik levou para começar a falar:
— Mostre-nos o que há de melhor em sua loja, senhor Delmoro — disse em tom imperativo.
O vendedor olhou para o brasão nas mãos de Erik, para ele, e então para Jonas, que controlou a vontade de passar as mãos nos cabelos incomodamente penteados, e então assentiu em passo apressado, adentrando o prédio repleto de armas.
Alguns jovens que Jonas julgou serem funcionários do vendedor vagavam de um lado para o outro conversando descontraidamente enquanto carregavam caixotes com peças de armadura.
Ele parou em frente a um baú da altura de seus joelhos com pelo menos um metro e meio de largura. Um cadeado prateado do tamanho da mão de um homem fechava a tampa.
O vendedor tirou um mó de chaves de sua cintura, segurou-o por uma delas e a enfiou no cadeado, destrancando-o.
Abriu a tampa revelando o conteúdo do baú.
Uma enorme espada cuja lâmina diamantada prateada parecia ser tão longa quanto os braços de Jonas, e pesada como seu corpo. Uma jóia verde brilhava com um brilho escuro na guarda-mão que separava o aço da empunhadura cinzenta espiralada.
— Meus senhores — Começou a falar o vendedor, limpando a garganta antes de continuar —, essa bela arma é o que tenho de mais precioso e elevado em meu humilde estabelecimento. Uma espada arcana. Foi forjada em Corino, uma das quatro cidades sábias, por um artífice alquimista instruído nas artes arcanas. Encomendei-a meio ano atrás e chegou a mim há não mais de um mês. A conservei limpa e bem cuidada. Sequer foi tocada por outra mão se não a minha.
— Disse que ela foi feita por um artífice alquimista? — indagou Jonas com sua voz mais solene.
— Sim, meu jovem senhor. Foi confeccionada a partir de um cristal retirado de uma áspide terrosa, tendo suas características particulares também.
— E que características seriam essas? — perguntou Erik.
O homem passou os dedos pela lâmina, que tornou-se cinzenta por um momento, expelindo um vapor fétido.
— Quando misturada a essência do portador com a da arma, ela exala seu perfume tóxico que debilita os que estão ao redor e torna-se tão erosiva quanto as presas da criatura da qual foi feita, capaz de deteriorar escudos, armaduras e armas comuns.
— Mas não afeta quem a empunha? — perguntou Jonas, assustado.
O vendedor soltou um pequeno riso.
— Não há com o que se preocupar, meu jovem senhor. Portador e arma são um só no momento em que suas essências se unem. Os riscos são os mesmos que qualquer arma arcana pode proporcionar — Ele olhou para Jonas, que notou uma cor diferente em seus olhos. Pareciam cinzentos em comparação com alguns momentos antes.
— Que são? — Jonas insistiu.
O vendedor ergueu uma sobrancelha. Abriu a boca mais de uma vez e virou o rosto de lado, sem deixar de olhá-lo.
— Perdoe minha ousadia, nobre senhor, mas por acaso nunca segurou uma arma arcana, ou fora instruído sobre elas antes?
Jonas engoliu em seco, sentindo um tremor tomar conta de seus pés e mãos.
— Quem a deseja sou eu. Meu primo nunca teve interesse por batalhas e eu o trouxe para saber se consigo despertá-lo — explicou rapidamente Erik.
— A marca cinzenta é um lugar bem estranho para alguém sem interesse em batalhas estar — observou Delmoro, retirando a mão da lâmina. Jonas notou que os olhos do homem voltaram à normalidade assim que ele o fez.
— Eu o arrastei até aqui como resultado de uma aposta, meu caro — retrucou Erik.
— Claro. Se é assim, não se importaria em testá-la, certo? — Delmoro afastou-se e fez para que Eric empunhasse a espada.
Erik a encarou por um momento e então se aproximou do baú, levando a mão até a empunhadura. Jonas viu os olhos do amigo se contraírem no momento em que ele fechou o punho na arma. O corpo alterou levemente seu equilíbrio e a mão livre se moveu envolvendo a que segurava a empunhadura.
Jonas viu a lâmina mudar mais uma vez de cor, do prata para o cinza, e então para o verde escuro. O mesmo vapor asqueroso saia da lâmina venenosa, como se esta ardesse em algum forno.
Com um perceptível grande esforço, Erik puxou a arma, seu corpo sendo puxado para baixo quando a lâmina deixou o apoio do baú, batendo contra o chão para desespero do vendedor.
— É pesada — disse Erik.
— Sim, sim, é uma espada de duas mãos, afinal. E creio ser demasiado pesada para o senhor, com o seu perdão — apressou-se em retirar a espada das mãos de Erik, que estendeu um braço o impedindo.
— Eu mesmo a ponho — afirmou Erik, erguendo a arma do chão com visível esforço antes de pô-la de volta no baú.
Delmoro rapidamente fechou a tampa e o trancou.
— Acredito que essa arma não seja apropriada para vós, posso mostrar-lhes outras se desejarem?
Erik pôs uma mão no queixo, e fez como se refletisse na proposta.
— Embora esteja curioso para saber o que mais há de valor por aqui, devemos declinar. Estamos atrasados para um compromisso e desejei vir aqui apenas por um capricho.
O rosto amigável do vendedor vacilou por um momento, revelando um resquício de aborrecimento.
— Oh, entendo, é uma pena, meus senhores. Desejo que Goorthr dê força ao teu braço e Mihern traga sorte a teu caminho — rogou ele, levando os dedos até o espaço entre os olhos, e baixando o rosto em uma saudação que parecia típica naquele lugar.
— A ti também — Erik acenou com a cabeça da mesma forma, assim como Jonas, assim despedindo-se.
Poucos passos após saírem da loja, Jonas prestou atenção nas conversas, identificando a voz do vendedor e sentindo-se aliviado de ele não parecer comentar nada demais sobre a identidade dos dois.
“Dois nobresinhos infantes” foi o que respondeu a um dos assistentes.
— Era uma arma e tanto — Ouviu Erik dizer ao seu lado. A voz súbita e próxima surpreendendo sua concentração distante. — Achei que minha mão fosse derreter.
— Foi tão ruim assim?
— Tive que me esforçar pra não gritar, mas acho que fiz bem.
— O vendedor pareceu desconfiado.
— De você, por que você fala demais.
Jonas bufou.
— Tu não fechava a matraca e quer me dizer eu falo demais?
— “Fala demais do que não deve”, é o que quero dizer — Erik sacudiu a mão, abrindo e fechando-a.
— Então vou pra casa, e deixar tudo para o profissional, já que tu sabe o que falar.
— Boa tentativa. Preciso de alguém que saiba ouvir conversas. E como nenhuma das meninas da sala veio para o nosso grupo, você é o melhor fofoqueiro disponível.
— Fofoqueiro o caralho — reclamou Jonas, dando um soco no ombro de Erik.
— Mas você sabe ouvir fofocas como ninguém? — retrucou Erik rindo, enquanto passava a mão no ombro golpeado.
— Vai tomar no cu — resmungou.
— Sim, agora vamos para a próxima loja — Erik puxou o brasão de seu bolso. — Incrível o que um desenho de bode pode fazer por aqui.
Jonas fitou o bode branco sobre o negro. Último objeto deixado pelo cavaleiro que os guiara por entre pântanos sombrios nas terras desoladas.
Embora os vendedores não parecessem reconhecer o nome “Capro”, reconheciam o emblema como símbolo de nobreza, e, juntando ao vestuário “doado” pelo conde, não se importavam em contestar a identidade de dois potenciais clientes nobres, mostrando-lhes seus produtos da melhor forma possível, na esperança de lucrar enormes somas.
Somas que eles não tinham, contentando-se com as explicações elaboradas sobre as armas, escudos e armaduras. O que Erik desejava.
— Mas e aí, o que ouviu lá? — perguntou Erik.
Jonas suspirou, recordando-se das palavras. Era difícil ordenar os pensamentos com tantas vozes e sons ao seu redor.
Lembrou-se de algumas palavras trocadas entre os ajudantes do vendedor.
— Ouvi falarem de como as encomendas de malhas e alabardas estavam aumentando. E algo sobre um campo cheio de tulipas rozatas, acho que esse era o nome.
— Nada muito interessante, né?
Jonas deu de ombros.
— Tomara que a próxima loja seja melhor — Erik guardou o brasão.
— E qual vai ser? — perguntou Jonas, notando que eles começavam a sair da rua dos ferreiros.
— A gente já rodou muito vendo armas, vamos atrás de outra coisa agora.
Eles dobraram uma esquina, deixando o lamuriante martelar de aço e o cheiro do ferro e brasa para trás, sentindo um misto de aromas fortes e adocicados.
Um corredor repleto de ervas, flores e vidros se abriu à frente. Era menos barulhento do que a rua dos ferreiros, mas tão movimentado quanto.
Vendedores bem aparentados mostravam seus produtos aos clientes. Perfumes, ervas medicinais e flores ornamentais, como Jonas os ouvia anunciar.
— E o que viemos fazer aqui? — perguntou Jonas a Erik.
— Sentir cheiro de flores e ouvir algumas conversas.
Jonas revirou os olhos.
— Vamos pra aquela loja ali — disse Erik, apressando o passo.
Entraram em uma loja com estantes repletas de frascos e garrafas de todos os tamanhos. Um homem idoso de cabelos e barbicha brancos se encontrava atrás do balcão.
— Sejam bem-vindos, caros clientes. O que desejam? — saudou ele com uma voz branca.
— O senhor vende algum anestésico?
— Sim, sim, lógico que tenho, e em grande variedade — Ele caminhou de um lado para o outro, tomando meia dúzia de frascos em suas mãos e pondo-os um a um no balcão.
— Aqui estão, dispostos em ordem de qualidade.
— Explique-nos cada um — ordenou Erik, imperativo.
O vendedor deu um breve suspiro antes de começar uma apresentação detalhada de cada frasco e de seus efeitos.
Jonas ouvia as vozes abafadas ao redor da loja. A maioria de clientes e transeuntes na rua e nas laterais. Mas ouviu vozes mais próximas, como que dentro da loja. Notou uma porta atrás do homem, e também que de lá vinham as vozes. Prestou atenção às palavras, fazendo a difícil tarefa de separá-las das demais.
— …coloque oriécano e terrivano no pote, moa e misture-os até que vire uma pasta… — comentou uma voz feminina e envelhecida. — …continue moendo pois sinto o cheiro da tulipa fervendo.
Jonas ergueu uma sobrancelha a isso.
— Com sua licença — interrompeu o velho, que explicava o quarto frasco. — isso é cheiro de tulipa?
O homem ergueu o olhar, encontrando-se com o seu. Pareceu atordoado por um momento.
— Imagino que sim, minha esposa deve estar fervendo nesse momento.
— De que serve ela?
— Ora, para muitas coisas, a depender do tipo de tulipa.
— A rozata?
O vendedor pareceu demorar para perceber que era uma pergunta, ao que respondeu após pensar por algum tempo.
— Serve para poções, meu senhor, diversas a depender da receita. Desculpem-me, mas é uma indiscrição perguntar mais.
— Imagino, perdoe-me. Pode prosseguir.
O comerciante retomou sua explicação, decepcionando-se quando Erik decidiu comprar quatro frascos da mais barata.
Eles rumaram para mais três lojas, a qual Erik perguntou por uma poção diferente em cada uma, e Jonas ouviu uma porção de conversas diversas.
Ao fim de tudo, caminhavam os dois pela rua principal de Beuha em direção ao prédio da guilda, onde Leandro e Graça esperavam. Erik com um sorriso satisfeito. Jonas com uma enxaqueca aguda.
Havia ouvido muitas conversas, mas apenas duas o interessavam de fato.
“Um campo repleto de tulipas rozatas…”
“Para muitas poções a depender da receita…’’
Sorriu, com uma ideia que não era de Erik surgindo em sua mente.
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