Capítulo 18 - O que falar?
O vento rosnava por entre as escarpas cortantes e irregulares no alto da imensa formação rochosa que cortava o deserto ao meio como uma monumental muralha decaída.
Ítalo cobria o rosto com uma manta que usava como capa, cobrindo seu corpo da cabeça aos pés para protegê-lo do vento.
Fazia uma careta de dor a cada pisada. Os sapatos haviam se rasgado de forma irremediável noites antes, deixando os pés expostos a qualquer coisa que houvesse no solo.
Areia escorria por entre os dedos mal-tratados, pedras lascadas marcavam-no a pele e a simples ideia de animais rastejantes aterrorizava sua mente.
Podiam depender da sorte encontrar roupas puídas e velhas em alguma tumba antiga, ou nos restos esquecidos de uma caravana roubada. No entanto, calçados eram algo curiosamente raro – e valioso, segundo a nova opinião de Ítalo.
Sentia o peso da mochila improvisada, que na verdade era o amontoado de trouxas que fizera para levar o que fosse útil. Uma mão mantinha os panos firmes, a outra carregava galhos e ramos secos encontrados pelo caminho. Seriam úteis quando precisassem fazer uma fogueira.
Acabou tropeçando em uma pedra, quase caindo e soltando uma praga por conta da dor.
— Vamos logo ou o sol vai nascer — alertou Daisy, parada mais a frente, em cima de uma pedra com o dobro de seu tamanho.
Sua pequena figura desapareceu quando ela saltou para baixo de forma enérgica.
Com um gemido de dor, Ítalo continuou a andar.
Eles caminhavam à noite, seguindo por trilhas estranhas e de difícil acesso, em direção a lugares escondidos nas entranhas daquela estrutura geológica que parecia não ter fim.
Daisy guiava o caminho, sem o menor sinal de incerteza nas direções que seguia. Não falava nada, mas Ítalo sabia que isso tinha haver com quaisquer que fossem os poderes que a garota dizia ter. Poderes que alguns dias antes ele riria ao escutar, e que agora poderia apenas sentir medo ao pensar.
Lembrou-se do ar gelado em sua respiração quando a lâmina da espada cortou a barriga daquele jovem. A sensação de estar nú em uma geada a percorrer seu corpo. Uma memória que vez ou outra transpassava sua cabeça. Lembrou-se do momento após isso, quando o jovem caiu. Não havia sangue, apenas um cadáver frio no chão.
“Estrela, deserto, atravesse.”
— Está demorando — Uma voz ao seu lado o tirou de seus pensamentos. Ele não precisou se virar para saber quem era.
— Eu estou andando mais rápido que eu posso — respondeu olhando para Daisy, se perguntando quando a garota havia se aproximado tanto sem que ele percebesse.
— Não estou falando disso, idiota.
— Então de que?
Daisy fez um breve e significativo aceno com a cabeça em direção às outras duas pessoas presentes.
Ítalo olhou para o imenso homem que caminhava à sua frente. Para a roupa com camadas de tecido grosso empapada de suor, para as montanhas de trouxas sobre o ombro direito, mas mais precisamente, para quem ele carregava no ombro esquerdo feito uma saca de cimento.
Disso, percebeu.
— E o que eu deveria fazer? — resmungou, contendo um certo nível de constrangimento.
Daisy tomou uma golada de ar e suspirou profundamente enquanto revirava os olhos.
— Eu já lhe disse, não disse? — Sua voz era a mesma de uma mãe explicando algo a um filho pela quinquagésima vez.
— Sim, mas como eu deveria fazer isso, pelo amor de Deus?
Daisy começou a encará-lo sem dizer nada por alguns longos segundos. Quando Ítalo pensou em falar algo, o rosto da garota desabrochou em um sorriso trocista enquanto sua voz formava palavras estranhamente formais.
— Perdoe-me, meu caro senhor. Esqueci-me de que sua pessoa tem pífias habilidades sociais e que até hoje devo ter sido uma das muito poucas mulheres a querê-lo por perto por mais de cinco minutos.
Algo em sua voz lembrou Ítalo de um filme vitoriano. Era surpreendentemente culta e ao mesmo tempo altiva. Então o significado das palavras em si veio, e com ele constrangimento.
Deu uma resposta rude, que ela pareceu ignorar.
— Se pudesse — Daisy continuou, ignorando-o —, o ensinaria a ter mais traquejo social. Nunca tive dificuldade em fazer amigos, embora gastasse mais de criar inimigos para os outros.
Ítalo reprimiu um nó em sua garganta, engoliu um palavrão na ponta de sua língua e então a perguntou:
— Então por que você não faz amizade com ela?
— Por que não dá. Não agora. Eu vi — respondeu Daisy com um dar de ombros.
— Isso não explica o que eu quero saber — protestou ele.
— Claro, se eu quisesse explicar não falaria assim — Daisy fez uma firula, movendo-se como uma fada de um livro encantado, enquanto pulava entre algumas pedras no meio do caminho junto à escarpa.
Ítalo suspirou. Uma dor começou a espetar sua cabeça enquanto as palavras saiam de sua boca com cada vez mais rispidez.
— Se não me explicar, como eu vou fazer o que você pede? — retorquiu, sua boca se dobrando enquanto sentia o rosto se moldar em expressões de raiva.
— Então vamos morrer — Daisy falou prontamente, como se chegasse a uma conclusão óbvia.
Sua voz não tinha a menor implicação da zombaria ou crueldade com que Ítalo se habituara nos últimos dias. Fora o som monotônico que se esperaria de um GPS, de alguém que não se importava com o significado da resposta. De alguém que falava apenas a verdade neutra e sem intenções. E por isso fora aterrorizante.
Daisy parecia saber como ele se sentia, pois deu um de seus doces sorrisos enquanto o encarava. Ela parecia sempre saber.
— “Se” você não fizer o combinado — disse finalmente.
Ítalo apertou sua boca em uma carranca e virou sua cabeça para frente. Sua mente já fervilhava da quantidade de voltas que a conversa estava dando.
— Se quiser, posso te dar a melhor dica para se fazer uma amizade — Daisy comentou em seu tom infantil.
Ítalo não respondeu, o que deixou o silêncio se prolongar até que sua mente o atormentasse por algum motivo.
— Que dica? — perguntou finalmente.
— Algo que sempre funciona para mim — Daisy respondeu e então voltou a ficar calada. Um sorriso presunçoso estampava seus lábios.
Ítalo aguardou por meio minutos a continuação da resposta até perder a pouca paciência que lhe sobrara.
— E o que é? — exigiu, quase implorando.
Daisy o olhou de cima a baixo antes de responder:
— Fale de si mesmo.
Ítalo piscou os olhos e abriu a boca. Por um momento esqueceu de como respirar, até estar ciente disso e seus pulmões recomeçarem o trabalho.
— E isso funciona? — perguntou, deixando a incredulidade patente em sua voz.
— Para mim, sim — Daisy passou a mão em volta do corpo, como se estivesse tirando um pano que a encobria. — Para você, tenho minhas dúvidas — disse, e apressou o passo, se distanciando.
O grupo continuou andar até encontrar uma caverna que parecia a boca de um cachorro gigante. As estalactites eram as presas superiores e as estalagmites, as inferiores. Dentro, podiam ouvir um fraco gotejar, que só poderia indicar que havia água nas proximidades, ou assim Ítalo havia aprendido com Tyler. Sentiu vontade de ir atrás da possível fonte, mas sentia-se inseguro de encontrá-la sem o companheiro confiante.
Os três se acomodaram no interior da caverna. Daisy tomou alguns ramos secos que Ítalo carregara o dia inteiro, os aninhou e friccionou um galho mais resistente a outro até uma fumaça subir e uma luz aparecer. Após algum tempo, a fogueira ardia.
Poo deixou a prisioneira em um canto mais afastado da caverna e preparou a carne do pequeno roedor que haviam encontrado entre as ravinas. Marcelo – em meio a suas histórias sobre mulheres e puteiros – ensinara algo sobre sangrar a carne e como preparar o animal antes de levá-lo ao fogo, e Daisy, aparentemente, prestou alguma atenção.
Foi uma refeição longe do que se consideraria como decente. A carne tostou ao ponto de quase queimar. Não havia legumes ou vegetais, nem sal ou outros temperos. Algo que os ensopados da companhia pareciam ter em abundância devido aos mercadores que viajavam juntos a ela.
As memórias trouxeram uma vez mais o sabor da única bebida alcoólica que Ítalo tomara, e então ele sentiu a consciência de não ter nada para molhar a garganta, fosse vinho, suco ou água.
Mas o que mais lhe fazia falta era algo que Ítalo sequer participava.
A alegria de uma conversa animada ocorrendo à volta. Marcelo e Tyler contando piadas obscenas e soltando piadas imorais, Pamela protestando com gestos e olhares, enquanto tentava tornar a conversa mais amena. E ele no meio daquilo, observando, ainda que não participando realmente. Como um espectador de uma peça a se desenrolar.
Não lhe era um sentimento novo. Na escola, Ítalo falava quando falavam com ele, boiando no fluxo das conversas que os grupos das salas iniciavam sem realmente participar delas de fato. Ele era um corpo celeste vagando pelo sistema estelar que era aquela sala. Sempre próximo dos planetas e do sol. Visitando-os, interagindo, mas nunca sendo realmente pertencente a nenhum.
Mesmo em casa. As palavras sempre tão evasivas de seu pai. As provocações de seu irmão mais novo. Os comentários de sua madrasta. Sempre tão cruéis. Cruéis e verdadeiros, ao menos para ela.
Vivia ali, mas não era parte daquela família. Ele sabia disso, eles também e assim conviviam.
Não, não lhe era um sentimento incomum, na verdade era o único que conhecia.
Naquele momento, no entanto, não havia conversas, não havia piadas, comentários, e, apesar da fogueira, não havia calor. Apenas o desolador e sufocante silêncio envolvendo a todos, embora apenas Ítalo parecesse senti-lo.
Ao fim da refeição, Ítalo percebeu que Daisy o encarava. Quando seus olhos se encontraram, ela gesticulou com aceno de cabeça na direção em que estava a garota amarrada.
Ítalo espremeu seus lábios e inspirou fundo, julgando não haver ar suficiente quando seus pulmões se encheram e ele acabou por expirar.
Se levantou hesitante, e da mesma forma percorreu os poucos metros até a garota. Sua mente tentando a todo custo pensar em qualquer coisa para dizer quando chegasse em frente a ela. Um eco confuso e vazio foi-lhe entregue em resposta.
Ítalo ficou parado, encarando-a em silêncio sem nada para dizer. Consciente do quão estranho parecia. Do quão estranho era.
Ela estava acordada, deitada e com a cabeça apoiada no chão de pedra áspera. Um chão desconfortável com toda certeza.
Um pensamento cruzou sua mente. Algo simples e completamente banal. O tipo de coisa que qualquer um pode pensar.
Ele voltou até seu amontoado de trouxas e retirou um tecido entre os mais volumosos que tinha, retornou a garota e com resignação, e até um certo medo inconsciente, a entregou.
A garota o olhou em silêncio enquanto ele o fazia. Sua boca não estava tapada, ainda assim não dizia-lhes palavra alguma, exceto por aquela vez. Seu corpo se moveu, os braços amarrados tatearam o tecido com os dedos.
Olhou para ele. Ítalo não conseguia ver seus olhos, então não podia dizer ao certo sua expressão.
— Para que… você… fique mais confortável, sabe? — Ele disse. A voz embalada pelo nervosismo.
O silêncio prevaleceu novamente, até que uma voz arranhada e fraca alcançou os ouvidos de Ítalo.
— Você é um tolo? — A pergunta veio, coberta de incredulidade.
“Fale de si mesmo.”
Ítalo engoliu em seco.
— Todo mundo diz que sim — respondeu.
Mais um momento ao som dos ecos de um gotejar e do fraco crepitar da fogueira se seguiu.
— O que querem de mim? — A voz falha e rouca da garota se tornou audível novamente.
Ítalo cessou sua respiração. Seus olhos encaravam a forma escura que era o rosto da garota, enquanto percebia que não fazia ideia de como respondê-la.
— Agora, só conversar… eu acho — Ele respondeu, consciente do quão idiota aquilo parecia.
— Você é mesmo um tolo — afirmou ela.
Ítalo sorriu, engolindo em seco. Tantas vezes ouvira a mesma coisa em palavras diferentes.
— Sim, eu sou — sorriu, desajeitado. — E meu nome é Ítalo.
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