Capítulo 19 - Utilidade.
— O que é esse azul, o céu? Por quê ele está embaixo? — perguntou uma voz sua, inocente e infantil, admirando um desenho estranho e curioso.
Frustrou-se com a risada que recebeu como resposta.
— Não, o céu está acima dele — Seu pai apontou com o dedo para o desenho. — Vê que essas cores são diferentes? Esse aqui é o céu — passou-o pela parte dita, de um cinza azulado repleto de partes brancas e então para um azul mais escuro, nunca por ela visto —, e esse aqui é o mar.
Contraiu as sobrancelhas, intrigada.
— E o que é o mar? — Pôs o dedo minúsculo na parte misteriosa, pressionando contra o pergaminho.
Seu pai pareceu pensativo e então recomeçou a falar, respondendo com a calma serena que tanto irritava a sua mãe.
— É um lugar feito inteiramente de água. É tão azul como na imagem e vasto como o céu — explicou seu pai com um sorriso nos lábios.
Seus olhos se alargaram e ela abriu a boca. Não pode acreditar naquelas palavras.
— Tão grande quanto o céu?
— Sim, e com mais água do que qualquer outro lugar nesse mundo — Seu pai ergueu o braço para o auto, como se cobrisse algo com uma manta invisível.
— Mais do que nas fontes? — insistiu ela.
Seu pai confirmou com a cabeça. Ainda sim, ela desconfiou que estivesse pregando uma peça. Não cairia novamente.
Cruzou os braços.
— Não acredito — declarou, estreitando os olhos.
Seu pai riu novamente, o que só a aborreceu.
— É verdade, minha querida. Eu já estive lá muitas vezes.
— Se tem tanta, então porque não vamos morar lá? — questionou.
A risada seguinte foi-lhe o limite. Ela bufou e fez sua careta aborrecida, o que o fez se desculpar, ainda que continuasse a rir.
— É um lugar distante, minha querida. Onde os ancestrais de tua mãe não repousam, e que ela tem ir.
— Distante quanto?
— Muito — respondeu ele de forma resoluta.
— Mais do que a ponta do ferrão?
— Dezenas de vezes mais distante.
Um desenho triste se fez em seus lábios.
— Queria morar lá. Assim beberia toda a água que quisesse.
Outra risada de seu pai a fez bater com o pé no chão em revolta.
— Algum dia eu a levarei até lá. Assim vou poder ver a sua expressão quando beber dele.
— Promete? — perguntou com um sorriso esperançoso, agarrando o desenho em suas mãos.
Seu pai riu mais uma vez.
— Sim querida, algum dia — Ele levou a mão até o topo da cabeça dela e se aproximou para beijar sua testa.
Ela sorriu, abraçando-o. Sentindo o cheiro familiar de seu corpo.
Era tão forte. Tão quente. Apertou-o bem, como se soubesse que nunca mais o faria. Desejava que ele nunca a tivesse soltado. Desejava ouvir novamente sua voz a lhe chamar de querida. Ver mais uma vez aqueles olhos tão parecidos com os seus. Desejava estar ao lado dele e contemplar o mar.
Desejava que aquele portão negro nunca houvesse os separado.
Zaya despertou com um sopro de areia em seus olhos. Os braços e pernas doídos continuavam apertados pelos nós firmemente amarrados. Mal conseguia mover as mãos, podendo apenas apertar o que havia entre elas.
Notou que agarrava a manta que lhe fora dada na noite anterior pelo jovem covarde que a mantinha cativa.
Seu nome era Ítalo, lembrou.
Ao olhar para ela, lembrou-se do sonho, da memória. Jogou-a de lado, erguendo o tronco e observando o seu derredor.
Restos enegrecidos de uma fogueira apagada jaziam alguns metros à sua esquerda. Próxima a ela estava um homem tão enormemente gordo quanto simplório, o jovem que a dera a coberta, e uma garota mais nova do que Zaya, cuja sombra a perturbava cada vez que ela olhava.
Todos dormiam, como se estivessem seguros por detrás dos muros de pedra e dos portões negros de uma vila da passagem.
Olhou para a entrada da caverna, vendo que a luz da manhã já se fazia presente, e pasma que nada os tivesse acontecido. Fechou os olhos e viu além. As sombras que se moviam quando sua visão não recebia luz.
Não viu ninguém além deles a dezenas de metros de onde estavam. Como se todos os coletores houvessem desaparecido da passagem. Como se não houvesse vilas por perto.
Estavam distantes, percebeu. Da vila, da mesa em que sentava, do pente de sua mãe, de Aaliyah.
Então percebeu outra coisa. Havia apenas duas sombras na caverna.
Abriu os olhos novamente e tremeu.
Dois poços de um castanho claro a encaravam. Meigos. Doces. Enganosos, sabia.
— Como isso funciona? — perguntou a garota com um meio-sorriso quase inocente. Estava de cócoras, de modo que ambos os rostos estavam na mesma altura. As mãos estendidas para frente com os cotovelos apoiados nos joelhos.
Zaya engoliu, sentindo a garganta seca arranhar-se com o movimento.
Como não tinha visto sua sombra?
— O que? — disse com uma voz sufocada, afastando-se inconscientemente.
— Sua dádiva, ou seja lá como a chama.
Zaya ergueu uma sobrancelha e umedeceu os lábios mais de uma vez. Faria-lhe algum bem deixá-los saber? Sua mão tocou na coberta que Ítalo lhe dera. Sentiu a maciez do tecido em contraste com o chão rochoso.
— Com… — Tossiu. — Como sabe da minha benção?
— Benção — repetiu a garota num tom compreensivo. — Sim, isso, por favor diga-me.
Os olhos claros a fitaram e Zaya percebeu neles algo familiar. Algo que recebera sua vida inteira. Algo que estava acostumada a sentir desde que os portões negros fecharam naquele dia. Lembrou-se do Anfitrião e de todos os outros residentes. De Burak e de Saadi. Um olhar que lhe fazia sua pele arder em desgosto, mas que foi a única coisa que a manteve viva e Aaliyah até então.
— Eu… eu sou uma… buscadora — Zaya respondeu.
A garota continuou a olhá-la, como se esperasse ouvir mais explicações.
— Percebo a presença dos que estão próximos a mim — decidiu dizer isso e mais nada.
Uma sobrancelha se levantou no rosto infantil da garota, que passou a olhar para uma direção qualquer de forma vaga.
Zaya percebeu que ela não parecia ser muito mais velha do que Aaliyah.
— O… — Tossiu novamente. — O que pretendem… fazer comigo? — perguntou.
— No momento, lhe dar água. Depois… veremos — respondeu a garota. Seus ombros soerguendo por um momento antes de voltarem ao normal.
Se levantou e caminhou até os restos da fogueira.
— Aliás, eu me chamo Daisy Alisson da cidade de Birmingham. Não pergunte meu nome do meio, pois não o direi — comentou enquanto andava. Seu tom continha uma sonoridade relaxante que Zaya não conseguia explicar.
Zaya a observou sem entender. Daisy se agachou em meio a suas bolsas, tomou uma botija e trouxe-a até ela.
— Aqui — ofereceu, balançando-a.
Zaya ouviu o melodioso som do líquido no interior da botija. Olhou mais de uma vez para Daisy e para a botija, decidindo se a aceitava ou não. Até perceber a estupidez de sua demora, quando a garota virou o objeto derramando a água na terra seca.
Tomou e a verteu, enchendo a boca com a vida que lá havia, até que não houvesse mais nada. Respirou após esvaziá-la, sentindo um fresco saciado.
— Eu me apresentei, agora chegou sua vez de devolver o favor — declarou Daisy, em pé numa pose que parecia tão simples quanto elegante.
Zaya respirou mais de uma vez, sentindo mais ar entrar em seu nariz do que jamais sentira até aquele momento.
— Zaya. Meu pai me chamou de Zaya.
— Ótimo, agora estamos apresentadas — dobrou levemente os joelhos abaixando completamente o corpo uma fração de centímetros e voltando a mesma altura logo após.
Zaya não entendeu o que aquilo significava.
Ouviu um som pesado em outro lugar da caverna e virou-se na direção em que o homem gordo se levantava de forma vagarosa.
— Conversaremos mais em outro momento — declarou Daisy de forma amistosa.
Ítalo logo despertou juntamente com o gordo e os três juntaram as bolsas em seus ombros, preparando-se para a partida. Zaya se viu inclusa nisso ao ser novamente erguida nos ombros suados do gordo como um fardo de cactos.
Notou que os outros dois trocavam olhares, e voltavam-se para ela continuamente.
Ítalo, temeroso como o covarde que era, parecia ter medo de encará-la nos olhos, e de fato tinha. Daisy, no entanto, fitava-lhe de forma despretensiosa, com um sorriso convencido. Olhava-a da mesma forma que Zaya se acostumara a ser vista.
Como algo a se usar.
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