Capítulo 2 - Silêncio insuportável.
A luz do sol nascente adentrava as aberturas e passagens de ar nas paredes. Os feixes desciam lentamente, riscando a escuridão do quarto vazio com um resplandecer quase celeste.
Novamente não conseguira dormir. Suas mãos e pés estavam amarrados, suas costas doíam e o sua cabeça latejava.
Zaya respirou fundo e fechou os olhos. Sentia-as. Todas elas. De alguma forma percebia sua benção mais poderosa do que antes.
Via mais do que sombras brancas e suas emoções. Enxergava suas formas – as verdadeiras formas. Também conseguia enxergá-las a uma distância maior. Quando seus olhos se fechavam o mundo a sua volta aumentava de forma exponencial. Naquele momento sentia várias sombras nas proximidades, os coletores de outras vilas procurando por espólios, imaginou. Percebia suas características e particularidades que as distinguiam. Não lhe parecia mais difícil distinguir uma da outra. Ela então concentrou-se nas três mais próximas. Seus captores.
A sombra vermelha, grande e disforme, que oscilava como uma nuvem de areia entre a ingenuidade e a confusão. A sombra fraca, rasa e amarronzada, que parecia a Zaya tremer de temor e animosidade. E a pequena e densa, que não lhe revelava nada, sequer tinha uma cor. Parecendo a Zaya um vazio imaterial pairando na escuridão.
Podia sentir as três no andar de baixo. A grande movia-se inquietamente de um lado para o outro enquanto as duas menores jaziam paradas, próximas uma da outra.
A sombra marrom começou a emitir uma sensação de confusão e temor enquanto a pequena permanecia inalterada, sem qualquer ondulação em sua forma.
O que conversavam? Zaya perguntou-se. O que planejavam fazer com ela? Saberiam eles de seu dom? Talvez, por que outro motivo a manteriam presa ao invés de a matar? Como planejavam usá-la? Não sabia. Sequer diziam qualquer coisa com ela. Falavam a língua dos que habitavam as aldeias, mas não lhe falavam coisa alguma. Zaya por sua vez permanecia quieta. Sabia que nada do que fizesse mudaria sua situação. Mesmo se escapasse não conseguiria sobreviver sozinha no deserto. Afinal, estavam próximos da época de tempestades, e nenhum homem sobrevivia no exterior na época de tempestades. Ela morreria, tal como seus pais.
O rosto de sua Aaliyah lhe veio à mente. Perguntou-se com um aperto no coração como a irmã sobreviveria sem ela. De certo iria para os cultivos de cactos ou viraria serva na casa de algum hóspede, onde uma órfã sem parentes seria o mesmo que uma escrava sujeita a qualquer demanda, por pior que fosse. Sua vida seria miserável em ambas as situações.
Zaya sentiu algo sair de seu olho esquerdo e escorrer por sua bochecha. Tocou com a língua, sentindo o salgado gosto da tristeza. Há muito não desperdiçava água daquela forma. Tentou parar, mas percebeu que era impossível. Não tinha porque reter o líquido da vida para si. Afinal não lhe restaria vida a partir dali. Assim ela deixou sua angústia fluir por seu rosto até que tudo secasse.
Ela abriu os olhos, as sombras sumiram e o mundo como ele era retornou a sua vista. O quarto iluminado pelos feixes de luz do amanhecer.
Pouco depois ouviu o som de passos do outro lado da porta de madeira, que se abriu com um rangido estridente, revelando aquele que possuía a sombra marrom. “O rapaz covarde”. Coisa que surpreendeu Zaya. Quando deixavam um esconderijo, sempre quem a carregava era o homem da sombra grande. Ela duvidava que aqueles braços desprovidos de carne ou força poderiam erguê-la do chão.
Com passos lentos e pouco firmes ele adentrou o quarto. Parecia ter entrado no covil de alguma jispar venenosa.
Parou a poucos passos de Zaya, encarando-a com uma expressão receosa. Não carregava nada nas mãos trêmulas, que denunciavam seu medo. Zaya então estudou seu rosto. Um nariz pontudo, flanqueando por bochechas planas e olhos escuros que fugiam do contato com os seus lábios, que se entreabriam e fechavam sem emitir qualquer som. Mais novo que ela, percebeu.
Não parecia estar ali para levá-la – na verdade, nem parecia querer estar ali.
Para um lado, para o outro e então para baixo, sua cabeça se movia. A boca mexia e remexia, torcendo seus lábios e seu rosto. Ele então respirou fundo, olhou para e a abriu novamente, sem falar nada.
Zaya permanecia encolhida, amarrada, ciente de sua situação. Preparava-se para aceitar o que lhe podia acontecer, lembrando da cabeça de Luqa e Touma fincadas em estacas. Tentava reunir suas forças restantes para suportar qualquer dor que lhe viesse. Mas então se descobriu aborrecida pela demora de seu captor quanto ao que faria. Desejava apenas o fim daquela situação insuportavelmente patética.
Zaya abriu a boca para falar, mas sentiu a garganta a arranhar e comprimir, o que lhe causou um surto de tosse.
Após alguns segundos, sua garganta parou de lhe incomodar, e Zaya olhou novamente para o rapaz, ainda parado com um olhar confuso. O encarou. Seus olhos negros contra os olhos castanho-claros dele. Viu toda a relutância transbordando em seu interior.
“O que você quer?” Queria gritar, mas sua garganta falhara com sua voz.
— Meu nome é Ítalo — disse o rapaz finalmente.
Zaya franziu as sobrancelhas.
“Que espécie de tolo é esse?”, perguntou-se.
— Pod… pode me dizer o seu? — disse o rapaz, mudando sua postura. Parecia respirar com dificuldade.
Zaya não respondeu. Sua mente confusa tentava entender o que se passava.
O rapaz – Ítalo – olhou para os lados, para baixo e então novamente para ela. Seus lábios, olhos e mãos inquietos.
Zaya forçou a garganta e a voz finalmente saiu através de sua boca.
— Deixe… me… em paz — disse em um chiado sufocado.
Italo piscou os olhos. Lambeu os lábios e coçou o rosto. Abriu a boca, mas novamente nada saiu dela.
— Desculpe, eu… — Ele virou-se e saiu com passos apressados.
A porta permaneceu aberta.
Zaya sentiu as sombras. Viu a de Ítalo se encolhendo mais e mais, como se retorcida por mãos invisíveis. A grande, antes inquieta, jazia calma e resoluta. A pequena, notou Zaya, estava mudada. Continuava um vazio translúcido, mas emitia um macabro sentimento de felicidade. Como se o próprio Eresh sorrisse em seu trono de ossos. E então desapareceu.
Por um momento Zaya sentiu um tremular no mundo. As sombras se tornaram vazias e disformes, então tremularam como chamas sopradas por um vento impetuoso. Um zumbido ressoou nos seus ouvidos de Zaya enquanto ela sentiu o chão desaparecer abaixo de si. Parecia estar no mundo de Eresh, em que os sentidos humanos desapareciam e apenas a confusão reinava. Então a pequena sombra reapareceu e tudo voltou à normalidade. Mas havia algo estranho. Algo pequeno e diferente misturado entre aquela harmonia de cores. Como se as pedras de um caminho mudassem de posição.
Zaya percebeu a sombra grande seguir em direção ao seu quarto. Abriu os olhos ouvindo os sons pesados de seus passos e o enorme homem surgiu em sua visão.
Colocando-a rudemente por sobre o ombro, ele a carregou escada abaixo. Zaya viu restos de fogueira e ossos enegrecidos próximos. Então viu Ítalo, que fugiu de seu olhar se afastando com passos nervosos, e a garota a qual pertencia a sombra pequena. Havia algo estranho nela além da sombra. Percebia naquele rosto jovem e infantil algo parecido que sentia na presença de Saadi. A jovem encarou Zaya. Duas esferas cristalinas que brilhavam em seu tom de azul claro mesmo a pouca luz. Sangue escorreu pelo seu nariz e então ela sorriu.
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