Capítulo 20 - Palavras sem importância.
“Vento”. Sempre ventava naquele lugar.
Não uma brisa agradável, carregada da fragrância de perfumes sobrepostos e aromas de doces e comidas da qual fora acostumada. Sequer era o hálito quente dos esgotos abaixo das avenidas principais e ruas sujas dos bairros mais sujos a qual já pisara, ou do suor fresco de um metrô no final do dia. Não tinha cheiro de nada além de areia.
As migalhas batiam contra seu rosto, alojando-se no nariz, boca e junto a suas pálpebras. Incomodava-a cada vez que mexia uma dessas partes.
Incomodava-a ainda mais não mexe-las.
Mexeu os braços atados, encontrando neles apoio para se erguer e sentar-se no chão duro e arenoso.
Ficou contra o vento, sentindo os cabelos serem lançados à sua frente. Um pontilhado de estrelas podia ser visto acima da ondulada fresta, que dava pouca vista ao céu noturno em meio aos sólidos paredões de rocha do estreito corredor em que estavam.
Pamela calculou que talvez dois carros médios poderiam trafegar lado a lado sem qualquer problema, porém, mais de cem pessoas ficariam apertadas, como de fato estavam, prensadas e estendidas pelo longo corredor de rochas.
Sentiu os membros tremerem com o cansaço.
Faziam um dia e meio que andavam por aquele caminho, parando apenas para dormir e comer, e não pareciam chegar a lugar algum.
Tentou se recostar em algum lugar que não fosse a parede de pedra rústica, mas estava tão desprovida de conforto, quanto de higiene. Não se lembrava da última vez que havia tomado banho ou feito as próprias necessidades de forma apropriada. As camadas de poeira e dejetos aderiram a sua pele de forma que já não se agonizava ou se importava com isso. Se preocupava apenas de não se lembrar da sensação de estar limpa.
Ao menos havia algum espaço. O feiticeiro ordenara que Pamela, Tyler e Marcelo fossem separados dos outros cativos e do resto da imunda comitiva, assim como que não fossem tocados por ninguém se não ele, sendo vigiados noite e dia.
Por isso ela sentiu-se aliviada. Haviam mulheres na caravana de ladrões – ela sabia – entre membros e cativas, e nenhuma dessas parecia recusar quando algum dos homens segurando armas as chamava para um lugar particular. Não com expressões alegres em seus rostos.
Ao mesmo tempo em que sentia pena das garotas, no fundo sentia um alívio em seu peito em não ser ela a escolhida. Ao menos disso fora poupada.
Sentiu o sopro mais uma vez – uma onda de areia a percorrer o acampamento improvisado. Alguns dos que dormiam pareceram acordar após isso, retornando a seus colchões de pedra logo após.
Pamela não sentia a menor intenção de fazê-lo.
Permaneceu quieta ouvindo os sons da noite. Ou ao menos os sons que aquela noite proporcionava: roncos e ecos abafados de gemidos distantes. Não demorou muito até se ver entediada.
Então escutou um sussurro.
Não lhe pareceu distante, nem vindo de qualquer guarda próximo. Assim como a voz lhe soava familiar.
Olhou para o lado, baixando a cabeça até onde Marcelo e Tyler estavam deitados.
O velho homem dormia com a barriga virada para cima, roncando baixo o suficiente para que não fosse incômodo. Tyler, no entanto, estava encolhido como um bebê de colo em posição fetal. Sua boca movia-se de forma ligeira, formando sons estranhos aos ouvidos de Pamela.
Assustou-se quando tremores o tomaram, como se estivesse convulsionando. Ela estendeu sua mão, se aproximando para despertá-lo, mas então Tyler ergueu o torso, ficando sentado.
Podia-se ver o quão terrível fora o pesadelo pelo vazio de seus olhos, além da respiração pesada, que inflava e encolhia seu peito pausadamente.
Ela umedeceu os lábios, sentindo-os mais secos do que já estiveram em toda a sua vida, e tentou inspirar para formar as palavras que queria dizer. Mas, antes que fizesse a pergunta óbvia, Tyler resmungou:
— Bastardo, filho da puta — A voz parecia arranhar a garganta para sair.
Cuspiu e olhou para o lado. Os olhos, revelados pela luz da distante tocha, encontram-se com os de Pamela. Ela nunca os tinha encarado tão de perto. Pareciam de um tom castanho comum num primeiro momento, mas ela notou linhas douradas incomuns, como se a retina tivesse sido riscada por lápis de colorir.
— O que foi? — perguntou ele de repente.
Pamela piscou os olhos voltando a si.
— Nada — Balançou a cabeça e olhou para baixo. — É que você parecia… não parecia ser um sonho bom — Juntou os braços em volta dos joelhos.
— Não foi. Nunca é — Tyler respondeu secamente, cruzando as pernas e passando a mão na testa, onde gotículas de suor se formavam.
Pamela umedeceu os lábios mais uma vez. Notou que havia uma rachadura no inferior.
— Quer me contar? Tive uma vizinha que sabia ler sonhos. Talvez tenha aprendido algo com ela — Fez o possível para que sua voz soasse agradável e animada. O que não foi o suficiente.
Tyler a olhou como se olhasse para um idiota que acabara de dizer a coisa mais idiota já dita. Ao menos assim Pamela se sentiu.
— Deixa pra lá — Ela se virou em uma posição onde os dois não poderiam se olhar e se recostou na parede.
Por um momento, sons de tosse e roncos foi tudo que conseguiu ouvir, além do vento uivante. Os gemidos haviam acabado. “Um precoce”, julgou ela, divertida. Então outro gemido se iniciou logo após.
— Sonhei com minha casa.
Pamela virou o rosto, encarando um pensativo Tyler, que brincava com dois pedregulhos do tamanho de bolinhas de gude entre seus dedos.
— Onde é? — Lentamente ela endireitou seu corpo para escutá-lo falar.
— “Era”, você quer dizer — corrigiu ele.
Um murmúrio de vento atravessou o corredor, levantando poeira sobre todos. Pamela segurou os cabelos e fechou os olhos para protegê-los da areia.
“Era.”
Como era a sua vida antes? Se pegou pensando. Alegre? Feliz? Não. Melhor, com certeza, mas qualquer coisa lhe parecia melhor do que aquele corredor.
— Foi um sonho. Só isso — disse Tyler de repente, coçando a cabeça.
Ambos permaneceram sentados, ouvindo o que tinham para ouvir. Pamela olhava-o de soslaio, procurando algo para se olhar.
De repente sentiu falta de ouvir a própria voz e percebeu que tinha o que dizer.
— O que houve com o Ítalo? — A pergunta lhe saiu de forma despretensiosa no início e temerosa no fim.
Tyler a encarou e baixou os olhos para o chão, o que fez a respiração de Pamela descompassar-se com o aguardo da resposta.
— Estava comigo até me pegarem, então houve uma confusão e ele sumiu.
— Como assim confusão?
Tyler deu de ombros.
— Eu estava no chão, cercado de pés. Acho que você também não ia poder ver nada se ficasse assim — disse revirando os olhos e balançando a cabeça de forma irritante. A voz carregada de cinismo.
Pamela bufou.
— Sabe, nesse momento eu sinto muita inveja desses guardas que te chutaram — resmungou.
— Não vai sentir quando eu der o troco neles — Tyler falou de maneira soturna e grave, causando um calafrio em Pamela. Ele arremessou uma das pedras, que ricocheteou distante em uma das paredes do corredor, causando um eco alto demais para uma madrugada.
Ainda assim, ninguém acordou. Pamela voltou a ouvir o silêncio.
— O que acha que vão fazer com a gente? — perguntou, insistindo em dizer algo.
— O que acha que fazem com escravos? — respondeu Tyler em um tom incisivo.
Pamela ouviu novamente os gemidos e tremeu.
“Por favor, meu Pai, não seja isso.”
Tyler levantou o rosto em uma direção, como um cão após ouvir um barulho.
— Mas eu não vou estar aqui para descobrir.
Pamela ouviu ecos dissonantes vindos do escuro corredor. O vento soprou um cheiro terroso e do qual não estava acostumada.
— O que é isso? — perguntou.
— Isso é o que vai me tirar daqui — Tyler respondeu com um sorriso gélido no rosto.
Os sons aumentaram, de forma que foi possível distingui-los entre gritos e rangidos de metal. Aqueles ao seu redor que dormiam acordaram atordoados, se pondo em pé com armas nas mãos, e seguindo aos tropeços não direção que vinham os sons. Então entendeu o que estava acontecendo. O mesmo ocorreu antes com a Companhia do Elefante Branco.
— Como sabe que isso é para nos salvar? — perguntou ela, sem conseguir tirar os olhos do corredor e dos cultos que nele se moviam.
— Nunca disse isso — Tyler começou a se remexer, as mãos se contorcendo de forma a quase se desarticularem. Até que o fizeram.
Como se fossem cobras, os braços de Tyler escorregaram para fora do aperto da corda, então as pernas e ele de repente estava livre.
Pamela não ouviu de fato o som do punho se torcendo, mas o imaginou apenas com a visão pavorosa do movimento ocorrendo à sua frente. Fechou os olhos a tempo de não ver ele o pondo de volta no lugar.
Quando os abriu, Tyler havia desaparecido na confusão de vultos.
— Que porra é essa? — Marcelo acordara atordoado, adicionando sua voz a histeria coletiva que se tornara aquele lugar.
Pamela não respondeu. Não sabia o que responder. O clamor da batalha e dos gritos parecia cada vez mais próximo, estavam ambos presos e fracos, e Tyler sumira.
Um grito sobrepujou todos os outros e então uma luz distante resplandeceu no corredor, iluminando o que antes era apenas trevas confusas. Ela rodopiou, e cada vez que o fazia um coro de gritos animalescos era ouvido. Ao mesmo tempo, os que estavam próximos a Pamela e Marcelo gritavam de êxtase.
Um cheiro atroz de carne queimada encheu o corredor, que parecia ter ficado mais quente à medida que aquela luz rodopiava.
Pamela prestou atenção à luz, notando que tinha o formato de um bastão. Quando cortou um homem, separando o braço do restante do corpo, percebeu que era uma espada. Quando viu que uma fumaça negra saia da arma, percebeu de onde vinham o calor e o mal cheiro.
Assistiu as sombras dançarem em volta dela. Desaparecendo uma a uma. A luz parecia ser sobrepujada pelo negrume da fumaça a sair sempre que a espada as atingia. Os gritos se misturavam às aclamações dos aliados.
De repente tudo pareceu acabar. Os gritos cessaram, as sombras dos atacantes se foram e tudo que sobrou foram os gemidos dos feridos e o som dos vivas. Além da luz que se movia na mão de seu portador.
Ele se moveu aproximando-se de Pamela e Marcelo com a espada ainda em mão. Ela pôde ver sua armadura bronzeada e seu rosto rígido feito para carrancas. Passou sem dar-lhes qualquer atenção. O que lhe foi um alívio.
Aos poucos, o corredor se acalmou, até tudo se resumir a murmúrios dos sobreviventes e gemidos dos feridos. A fumaça foi lentamente soprada pelo vento, se espalhando e desaparecendo. A luz distante se apagou, então tudo novamente tornou-se escuro.
Marcelo se inquietava mais e mais ao seu lado, ainda perguntando o que ocorreu.
Pamela olhou para o espaço agora vazio ao seu lado, e então para cima, vendo a fileira de estrelas no pouco céu que tinha visão, e respondeu.
— Tyler se foi, foi isso que aconteceu.
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