Índice de Capítulo

    Os ecos dos moribundos reverberaram pelos antigos paredões da garganta do camelo. Ossos à vista, carne rasgada de cortes feitos por  lâminas cegas, grandes hematomas e nódulos negros. Duas dezenas de homens estendidos como galhos secos de um sarça. Burak sabia que a maioria não viveria para além de algumas noites. Faria melhor coisa por eles dar-lhes a honra de serem oferendas ao deserto do que deixá-los viver um dia que fosse na miséria de um aleijado.

    E foi o que fez.

    Ordenou a meia dúzia de seus homens mais leais que limpassem o acampamento daqueles que eram indignos de segurar uma espada.

    Os mais fracos de espírito imploravam, sem entender a misericórdia que lhes era dada, enquanto os mais fortes aceitavam as lâminas de bom grado. Ambos tinham o mesmo destino de repousar junto às areias em constante estado de mudança.

    Burak gostava desses tais. Sempre dispostos a dar suas vidas em prol da vila. Em prol dele. Se lembraria de seus nomes, tanto quanto conseguisse.

    Enquanto o coral lamentoso era silenciado, ele se dirigiu com as passadas mais largas que já dera em sua vida até a tenda no centro do mutirão. 

    Era grande, quase tanto quanto a sua. De modo que cobria toda a largura do corredor.

    Burak decidira não armar a sua, preocupando-se com o movimento e a agilidade dos homens no caso de um ataque – preocupação que se mostrou válida naquela noite. Saadi não se importava com tais coisas, isolando-se dos outros em suas práticas dignas de Eresh.

    Os homens que ainda se mantinham em pé abriram caminho a sua passagem. Alguns olhavam para a espada embainhada em sua cintura, outros para a armadura de vó

    Ronze em seu peito. Quase nenhum encarava os seus olhos, e isso dava-lhe uma satisfação inexplicável.

    Uma rajada soprou a fumaça afunilada no corredor rochoso, levando-a para longe. Burak contraiu os lábios para ela.

    O vento incessante o lembrava do pouco tempo que tinham para voltar à aldeia. Já erguia cortinas e redemoinhos de areia à vista. Logo levantaria enormes paredões que preencheriam a passagem como vermes a um cadáver. Tinham pouco tempo para voltar à aldeia e menos ainda para os caprichos do feiticeiro.

    Adentrou a tenda, afastando os homens que a aguardavam apenas com o som de seus passos, ou assim entendeu quando eles recuaram.

    Sorriu a isso.

    Lá dentro viu um homem de túnica cinzenta sentado frente a pequeno círculo de pedras com cinzas em seu interior, encarando a fumaça esbranquiçada que dele saía. Não pareceu se importar de nenhuma forma com a intromissão de Burak no ambiente.

    Burak percebeu que, embora a fumaça de sua espada enchesse a garganta do camelo, não se comparava a essência fulminante que era expelida por aqueles poucos restos enegrecidos do que pareciam ser ossos e galhos queimados.

    Por um momento sentiu algo parecido com vertigem e quase deu um passo para trás. Seu pé, no entanto, não o traiu, permanecendo firme onde o tinha posto.

    Inconscientemente, ele passou o olhar pela tenda. Peles grossas formavam o chão, de forma que um homem poderia se deitar sobre ela para dormir. Viu baús enfileirados, jarros contendo partes de corpos do que julgou como sendo de animais e até homens. Em meio a tudo isso, o feiticeiro parecia confortável em olhar para os ossos.

    — Veio em péssimo momento, guerreiro — disse Saadi de repente.

    A boca de Burak pareceu se mover da forma mais desagradável e repulsiva que já sentiu quando respondeu ao feiticeiro:

    — Não há bons momentos quando estou ante tua presença, feiticeiro.

    Saadi abriu um sorriso, mostrando os dentes cinzentos. Ergueu o doentio olhar amarelo que esmorecia a mente dos fracos e encarou Burak através da fumaça branca que subia dos ossos queimados.

    — E esse é o pior — disse com uma voz melodiosa.

    — Não importa a mim. Fomos atacados por um bando de uma aldeia inimiga, perdemos homens e com certeza armas. E tu nada fez — bradou com a fúria subindo em sua cabeça.

    — É tu quem deve lidar com tais problemas. Afinal és um guerreiro, não? 

    — Ficamos enfraquecidos pois tu insististe em mandar homens atrás de algo sem valor e agora isso. Não vês o motivo da minha raiva? — bravejou Burak cuspindo cada palavra. 

    — Nada tem valor para aqueles que não conseguem vê-lo. Tudo isso foi para buscarmos pelos pergaminhos. Teria sido um esforço em vão não buscá-los após descobrir onde estão — Lançou algo no círculo, o que resultou em uma coluna de fumaça subindo até o topo da tenda.

    Um estranho som de eco pareceu sair dos ossos fumegantes enquanto o cheiro pútrido se espalhava cada vez mais forte.

    — O Anfitrião saberá disso e de certo não se mostrará satisfeito — advertiu Burak, portando-se como indiferente àquela visão.

    Saadi não pareceu se importar. Fechou os olhos e respirou sonoramente a fumaça que saía dos ossos. Burak pensou ver algo nela. Formas. Rostos. Levou a mão, desfazendo o véu branco que subia à sua frente.

    — Ah, não faça tal coisa, pois quem está do outro lado não tolera ofensas — advertiu o feiticeiro ainda de olhos fechados, com um tom branco demais para uma reprimenda.

    Burak ergueu uma sobrancelha.

    — E porventura, quem seria esse “quem”?

    Saadi deu-lhe um sorriso tosco.

    — Logo saberá, ainda não é tempo — A voz de Saadi tornou-se mais melodiosa e repugnante aos ouvidos de Burak, que bufou e grunhiu.

    — Basta, não tenho tempo para suas tolices — bradou, dando as costas para Saadi.

    — Vejo-te, guerreiro — Ouviu-o dizer antes de sair da tenda.

    Burak prosseguiu com passos pesados e atravessou novamente o acampamento, conferindo se estava tudo em ordem. O cheiro ruim da fumaça continuava em seu nariz, assim como em sua boca, que parecia sentir o gosto dos ossos carbonizados no centro do círculo.

    Seus punhos se contraíam em um aperto pesado. A respiração cerrava suas narinas. Podia ouvir seus passos altos mesmo em meio a todos os outros.

    Arrancaria a cabeça dele, prometeu a si mesmo. Quebraria seus ossos e os usaria para alimentar a fogueira central.

    Desejou isso até lembrar-se do que lhe aconteceria se o fizesse.

    O Anfitrião me faria o mesmo.

    Parou, olhou para baixo e praguejou.

    Percebeu ao seu lado duas dezenas de escravos cativos amontoados em uma das paredes. A maioria era composta por mulheres e crianças. Os homens ou haviam fugido, ou morreram na batalha. Nenhum dos capturados era um guerreiro, Burak podia dizer.

    Olhou mais adiante e viu os cativos exclusivos do feiticeiro. Contou um a menos e deu de ombros, decidindo não se importar com algo que não era seu.

    Continuou a andar até que tudo estivesse em ordem novamente.

    Os mortos foram postos empilhados na retaguarda da comitiva, de modo que formassem uma trincheira de corpos contra quem os atacasse daquele lado.

    A garganta do camelo era longa e sinuosa, e não tinha passagens laterais ou caminhos que levassem ao seu topo. Além das paredes lisas impedirem uma escalada.

    Era um caminho de difícil acesso, escondido entre os rochedos. Só conhecido pela aldeia de Burak, e apenas porque fora descoberto pelo estrangeiro. Pelo menos até aquele momento.

    Burak se perguntou como os inimigos os haviam encontrado. Traição? De quem? Quais cabeças deveria cortar.

    Ele perguntava-se isso sentado entre seus homens quando um caminho de pessoas se abriu a sua frente, revelando a figura encapuzada do feiticeiro. Pareceu-lhe magro e enfermiço se comparado a normalmente.

    Os homens se espremeram uns contra os outros para deixá-lo passar, mantendo uma distância considerável.

    — Um dos meus cativos fugiu — disse ele com a voz rouca e áspera.

    Burak nada respondeu, se limitando a encará-lo. O feiticeiro continuou.

    — Encontre-o — ordenou.

    Burak levantou-se e apontou em direção à pilha de mortos no limite do acampamento.

    — Procure-o lá. É onde deve estar.

    A face normalmente trocista do feiticeiro se tornou em uma carranca.

    — Não, não está. Sei bem que ele fugiu na confusão.

    — Se fugiu, então que assim seja. É a vontade de Ash’hurr — Após dizer isso, Burak observou a cabeça de todos os homens ao seu redor se inclinar em reverência ao nome de seu deus.

    Saadi deu-lhe uma expressão enojada e abriu a boca como se fosse cuspir em sua face.

    Ao invés disso falou:

    — É minha vontade que aquele cativo seja recuperado. Necessito dele.

    Burak sorriu com os lábios, divertido com a ideia que passou em sua cabeça.

    — Se é esse tipo de escravo que precisa, posso lhe oferecer um dos homens que capturamos para servi-lo em sua cama.

    Uma tímida trilha de risadas surgiu entre os espectadores.

    — O valor de tal prisioneiro é algo além de suas troças ignorantes, guerreiro. Mande seus homens atrás dele nesse momento e então poderemos recuperá-lo ainda hoje.

    Burak cruzou os braços.

    — Não enviarei mais ninguém em busca de seus desejos profanos, feiticeiro.

    A expressão de Saadi amargou-se em um rosto digno de um espírito negro do deserto.

    — Que assim seja então — disse de forma arisca e se afastou.

    Os homens de Burak sussurraram uma centena de palavras entre si até que o momento fosse esquecido no silêncio da noite.

    O próprio Burak refletiu em uma simples pergunta.

    “Porque ele não sufocou ninguém como sempre o faz?”

    Saadi a seus olhos parecia menor, menos disposto a andar. Mais fraco.

    Então percebeu ali a resposta, e sorriu.

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