Capítulo 22 - Sendo sincero.
Ventos frios sopravam por entre as árvores cobertas de musgo e neblina, fazendo as folhas chacoalhar e caírem.
Jonas podia ouvir o coaxar dos sapos, o canto das cigarras, e mais além.
Ouvia os passos das lebres, o uivo distante dos lobos de skoll, o som de um galho quando uma ave nele pousava e levantava voo. Ouvia a sinfonia que era mundo com seus inúmeros e caóticos instrumentos.
E ouvia também os outros sons, mais próximos e conhecidos.
— Lembrei de quando ia na casa das minhas primas, e colhia flores no jardim pra ter alguma chance com as amigas delas — lembrou-se Leandro em tom vago.
— Conseguiu? — Jonas perguntou já sabendo a resposta. Sentiu os lábios se contraindo em um sorriso enquanto falava
Um momento de silêncio do amigo se seguiu, junto a uma torção de sua boca em indignação.
— Tá aí a resposta — observou Eric, apontando com o dedo e unindo sua risada a de Jonas, que sentiu prazer com o som unido de ambas.
— Foi um gesto lindo, meu amor. Aquelas garotas devem ter achado o mesmo — consolou-o Graça, que segurava-se nele com o braço que restava, enquanto tentava não tropeçar nas raízes e pedras.
— Sim, mas me conta aí a reação delas, só pra eu saber — pediu-lhe Eric, recebendo um grunhido como resposta.
— Aí está, foi assim que elas reagiram — disse Jonas, estalando os dedos e mostrando seu melhor sorriso zombeteiro.
Sentia que precisava rir de alguma coisa, e tentou, ao menos junto dos outros.
Continuaram rindo enquanto seguiam pelo caminho íngreme, subindo um aclive repleto de vegetação rasteira e árvores tortas.
Ficava a oeste de Beuha, fora dos limites das ruínas, onde a floresta de fato começava. Um lugar pouco comentado e não muito movimentado, segundo o que se falava, e o que não. Jonas ouvira e percebera ambas as coisas e fez seus planos.
“Colher flores?”, as reações para sua ideia foram distintas.
Leandro o encarou com estranheza, e resignada aceitação. Graça, com confusão, seguida de breve compreensão. E Eric aguardou-o explicar enquanto olhava pensativo, e então abriu-lhe um sorriso animado exclamando de forma irritante “Até que enfim usou essa cabeça grande”.
E ali estavam eles. Colhendo tulípas rozatas para vendê-las a farmos. Algo simples, que até criancinhas podiam fazer, segundo os comentários pouco animados de Leandro, mas parecia melhor a Jonas do que caçar ratos, além do preço compensar a caminhada mais longa. E Graça poderia acompanhá-los nisso.
A mulher tinha o temperamento teimoso da avó de Jonas, não aceitando ficar parada sem nada para fazer enquanto outros trabalhavam. O que trouxe memórias afetuosas à sua cabeça, ainda que misturadas com outras menos desejáveis.
A silhueta de uma idosa mancando enquanto carregava uma panela fervente, dizendo que já estava bem de seu joelho. Um sorriso surgiu em seus lábios, ao menos até lembrar do motivo de ela mancar.
A imagem de outra mulher, mais jovem, de olheiras negras visíveis no rosto pesadamente maquiado, a derrubando no chão e correndo pela porta em direção a rua com algo em suas mãos. Não lembrava o que fora carregado, apenas da visão de sua avó gemendo de dor enquanto tentava se levantar.
Lembrava de suas palavras. E as das de seu avô ao saber daquilo.
“Ela não é nossa filha”, ele disse.
Jonas lembrava disso e também do olhar que o homem lhe dera após, como se lembrasse que ele estava ali, ouvindo.
Se lembrava de se perguntar “E eu? Não sou seu neto?”.
Seu avô nunca o disse, e talvez tenha negado, mas naquele momento ele sentiu a rejeição. Tal como sentiu de sua mãe. E a de Julia.
“Ah, pára com isso”, se repreendeu.
Não devia lembrar, embora não conseguisse esquecer. Então esvaziou a mente e reprimiu o pensamento, como se nunca o houvesse vivido. Focou-se no momento, na caminhada. Em dar mais um passo.
O peito subia e descia, a testa suava. Ele levava uma das mãos continuamente à cintura para endireitar o incômodo que lá estava.
Haviam comprado uma bainha para a espada, embora o tamanho não parecesse adequado a lâmina. Jonas imaginava o quão incomum era comprar apenas isso. Mesmo o vendedor havia olhado com estranheza ao vendê-lo. E só o fez pois a espada original havia se provado de pouca qualidade, quebrando quando outro cliente a testara.
Além da bainha, eles haviam comprado também adagas para Leandro e Graça, e algo que Eric insistia que precisavam. Uma pedra de mana que custara um terço de suas economias.
Estava junto a Eric, em algum bolso da esfarrapada roupa. Jonas se perguntava como ele planejava fazer aquilo. Imaginou qual ideia estaria passando por sua cabeça, sabendo que sempre havia uma.
Seu pé pressionou contra o chão mais algumas vezes e ele se viu no alto do aclive. Olhou para trás por impulso. Estava na frente do grupo. Viu Leandro bocejando com uma mão sobre a boca e Graça agarrada a ele para não tropeçar. Viu Eric dando passos cuidadosos enquanto olhava para o chão. Viu a paisagem que os cobria e o céu acima dela. Um tapete de retalhos verdes, cinzas e marrons, das árvores e ruínas antigas cobertas por cipós e raízes envelhecidas.
Viu o que era Beuha por inteiro. Um amontoado de restos.
Eric passou por ele, assim como Leandro e Graça. Que pararam ao seu lado para admirar a vista por um momento e então continuaram.
Jonas permaneceu.
Uma lufada de vento soprou derrubando meia centena de folhas espalhando o verde e o marrom pelo cinzento e nublado céu. Elas dançaram por um segundo antes de voltar ao chão e desaparecerem de vista.
Jonas respirou o vento de forma lenta e suave, sentindo os membros do corpo amolecerem e as juntas se soltarem. Apreciando o chiar que era o som produzido pelo vento.
Por um momento as lembranças, seu objetivo ali e todo o mais sumiram. Havia apenas aquele momento, aquele mundo em que estava.
Um mundo sem elas.
— Ei, vamo logo — Ouviu a voz de Leandro e virou-se para onde ele, Eric e Graça estavam, distantes.
Acenou para que se acalmassem, olhou mais uma vez para aquela vista e voltou a andar, deixando aquele momento para trás.
Continuaram em silêncios entrecortados por suspiros e bocejos até a vista se abrir em uma bacia púrpura que sacudia ao vento. A agradável fragrância invadindo seus narizes.
Era uma clareira cercada por árvores que descia com uma leve depressão até o centro do campo, formando algo parecido com uma cunha arroxeada.
— Que lindo. Tudo isso são rosas? — perguntou Graça, ainda se recompondo da caminhada.
— Tulípas rozatas, na verdade — corrigiu Eric, se adiantando e adentrando o campo púrpuro.
— Como sabe que são isso mesmo? Vai que é qualquer outra flor — avisou Leandro de forma especulativa.
— Esse é o lugar que os outros disseram. “Na subida próxima a estrada para Sirkhen, antes da garganta do ogro”, eu acho — relembrou Jonas.
— E disseram tudo isso mesmo?
— Várias pessoas disseram uma parte ou outra. Eu só juntei tudo.
— E desde quando é tão inteligente? — provocou Leandro, franzindo as sobrancelhas e com os braços cruzados.
— Desde o dia em que você achou que a África fosse um país — Jonas retrucou.
— Ah, cala a boca — Leandro desfez sua postura e seguiu Eric pelo campo de tulipas.
Jonas olhou para Graça, que os encarava com um sorriso agradável. Eles seguiram os outros dois e começaram o trabalho.
— Ei, cuidado com isso. Tu quebrou o caule pela metade — reclamou Eric.
— E faz alguma diferença? — Leandro perguntou pondo a flor no saco que carregava.
Jonas suspirou.
— É que não sabemos ao certo que parte é usada, então é melhor tirar tudo da raiz — explicou ele, pondo um amontoado de flores arrancadas no próprio saco.
— A raiz? Ela também serve pra algo?
— Tudo pode servir para alguma coisa. A raíz, o caule, as pétalas. Tudo nesse mundo foi feito por Deus para servir a algo — disse Graça enquanto puxava algumas flores pela raíz.
— Mas esse mundo não é o mesmo em que estávamos — apontou Eric batendo a mão cheia de terra em suas roupas.
— Ele foi criado por Alguém, não?
— Talvez — Eric deu de ombros.
— Ué, tu viu aquele deus no templo e ainda duvido desse tipo de coisa? — perguntou Leandro com uma sobrancelha erguida.
— Aquilo pode ter nos mandado pra cá, mas dizer que ele era o deus criador desse mundo por conta disso é um pulo muito grande — explicou Eric, abrindo os braços e mexendo a cabeça de forma desdenhosa enquanto falava.
— E o que tu acha que era aquilo? — Jonas perguntou dessa vez.
Eric deu de ombros.
— Qualquer coisa que a gente ainda não conheça.
— Mas isso não é resposta — reclamou Leandro.
Outro dar de ombros.
— Tem muito que a gente ainda não conhece. Isso tudo — Apontou para cima em direção ao céu e então para os lados —, é uma delas. Quem diria que ao invés de um paraíso com anjos, veriamos um deus “pisca-pisca”.
Um sopro de vento sacudiu os sacos e derrubou o saco de Leandro.
— Tá, então o que você acha que ele era? Deus, uma alucinação, ou o que? — perguntou Jonas.
Antes que Eric respondesse, Graça o interrompeu.
— Aquilo não poderia ser Deus, menino. Só existe um, e Ele não é daquele jeito.
Os olhos de Eric rolaram em suas órbitas.
— Sim, sim, até porque ninguém o viu para dizer o contrário — zombou ele.
— Tá bom Eric, já deu — pediu Jonas quando Graça levantou-se de rompante e se afastou com um semblante aborrecido.
No mesmo instante Leandro marchou contra Eric, parando apenas ao ser agarrado por Jonas.
— Que merda foi essa? Pra que falar aquilo? — gritou.
— Só falei a verdade. Morremos e não vimos anjos, demônios ou a minha avó segurando uma vela. E sim aquela coisa azul. Não tem motivo pra acreditar mais nisso.
Leandro fez uma carranca, mas se afastou.
Jonas olhou para Eric, pensando no que falar e decidindo por dizer algo que considerou óbvio.
— Mesmo assim, não fala mais disso. A gente não precisa desse tipo de discussão — pediu.
Eric revirou os olhos e deu de ombros mais uma vez.
— Vamos terminar logo isso e tomar um banho — Acelerou suas mãos, arrancando as flores de forma indiscriminada e colocou-as no saco, caminhando então para longe.
O barulhento silêncio mais uma vez tomou conta de seus ouvidos.
“Deus… “
Se perguntou no que acreditava, não se surpreendendo em não saber uma resposta, e tão pouco por não se importar em se esforçar de procurar uma.
Não fazia diferença.
Deus, Alá, Buda ou Shiva. Conhecia todos esses, mas não vira nenhum depois que fora baleado por Fernando naquele dia. O único deus que ele encontrara sequer lhe falou seu nome. E ainda assim lhe dera uma missão, que também pouco entendia, e muito duvidava de poder cumprir.
“Caçar ratos, catar flores e depois libertar um deus. Bons passos.”
Jonas suspirou e continuou seu trabalho.
Melhor do que caçar ratos, julgou, sentindo as unhas sujas, enquanto retirava a terra das raízes. Descobriu o quão relaxante era o som delas desgrudando do solo.
Concentrou-se nisso para esquecer tudo.
As memórias antigas, as incertezas atuais, as expectativas futuras. O incômodo gerado por Eric e Graça que viria mais tarde. Buscou esvaziar a mente de tudo, prestando atenção inteiramente naquele som.
Então percebeu outros, diferentes dos que ouvira desde que haviam começado a subida.
Não era ruidoso ou estridente. Muito menos tinha a intenção de ser ouvido como o canto dos pássaros ou som das cigarras.
Era o som resignado, que parecia teimar em existir, de algo que se esforçava para fazer silêncio. Galhos sendo lentamente partidos, pedras se friccionando ante passos cautelosos, uma respiração que lembrava o ronco de algum motor em ponto morto.
Jonas não sabia como podia discernir esses sons tão delicados, tão naturais. Mas os escutava, como escutava o som das raízes desgrudando do solo.
Olhou em volta, percebendo que o ruído estranho havia cessado, e então levantou-se transtornado quando o percebeu em outra direção.
Se era um animal, não havia apenas um.
Ergueu-se, procurando os outros.
Eric estava a menos de dez metros dele, amarrando o saco já cheio. Leandro era uma miniatura, tendo descido ainda mais a depressão que era o campo. Assim como Graça, que jazia no limite de sua visão, do outro lado do campo, próxima às árvores.
O som parou por meio segundo e Jonas pôde ouvir apenas o vento a sussurrar pelo campo. Pensou estar sendo paranóico por um segundo.
Um único segundo.
Então ouviu outro som alto e estridente, destoante dos sutis e naturais ruídos que prestara atenção.
Um grito.
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