Índice de Capítulo

    Jonas virou seu pescoço na direção do som.

    Rochas nuas ao sol, folhas lançadas ao vento, Graça curvada em meio ao campo. Um grito a preencher o ar e os ouvidos.

    Com um salto ele disparou na direção da mulher de um braço que tinha idade para ser sua mãe. Estava longe, mas os passos que deu não pareceram mais do que dez. Surpreendentemente, viu Leandro a alcançando antes dele.

    Parou, se agachando ao lado dela, percebendo o brilho vermelho escorrendo por sua mão antes que Leandro a enfaixasse com um pedaço de sua camisa, amarrando de forma desajeitada.

    Olhou em volta e antes que perguntasse o que havia ocorrido viu uma criatura pequena rolando em meio às flores.

    Era marrom, peludo e do tamanho de um gato. Parecia agonizar.

    — Isso te mordeu? — perguntou, recebendo como resposta um misto entre gemido e afirmação.

    Jonas se aproximou com a espada na mão, se perguntando quando a tinha desembainhado. A criatura rolava de um lado para outro, guinchando como um rato envenenado. Sua cabeça tinha um formato de arredondado sem orelhas aparentes. Olhos grandes se projetavam nas laterais mexendo para ambos os lados ao mesmo tempo.

    O corpo peludo era sinuoso com patas finas sem pelos, e de dedos pontudos como os de uma ratazana.

    Jonas ergueu a lâmina quando ouviu outro grito.

    — Não — bradou Graça. — Não faça isso.

    — Que? Por quê? — aturdiu-se Jonas, alternando seu olhar entre ela e a criatura, que debateu-se por poucos e terríveis instantes até cessar seus movimentos.

    — Morreu? — perguntou Eric ao seu lado, o que fez Jonas se perguntar quando ele havia chegado ali.

    — Parece que s…

    — Não — Graça respondeu interrompendo a Jonas, e então se ergueu lentamente.

    — A senhora está bem? — perguntou Leandro, apoiando-a com o corpo.

    Graça fez que sim em um movimento contido com a cabeça.

    — Ela parece morta — disse Eric, se aproximando do corpo.

    — Não está — insistiu Graça —, eu sei disso — Olhou para a mão enfaixada.

    — Mesmo assim, é melhor matá-la — observou Jonas ainda com a espada em mãos quando viu os olhos da criatura girarem novamente nas órbitas e ela se debater como uma lacraia.

    O corpo alongado e peludo em pé sobre as patas traseiras de rato. Os olhos olhando para ambos os lados. Jonas percebeu mais sons vindos em meio às flores, movimentos. Então mais criaturas semelhantes surgiram, se pondo em pé da mesma forma.

    Jonas se pôs em guarda, notando que a espada sequer tremia em sua mão. Contou mais de vinte.

    — Parecem suricatos — comentou Eric, virando a cabeça para ambos os lados.

    A primeira criatura soltou um guincho fino e um instante depois os demais sumiram entre as flores. Os sons de suas patas distanciando-se cada vez mais. 

    — Que foi isso? — indagou Leandro, ainda segurava Graça, envolvendo-a com ambas as mãos.

    — Não vão nos atacar. Ele só me mordeu por medo — explicou Graça, olhando para a primeira criatura, que permanecia em pé a encarando. — Vá — disse, e a criatura sumiu.

    Jonas escutou os sons dela se afastando, notando o quão leves eram. Quando havia ficado com os ouvidos tão sensíveis a esse ponto?

    Os quatro decidiram retornar, em especial por insistência de Leandro para que Graça recebesse cuidados melhores, apesar da própria dizer que estava bem e da careta aborrecida de Eric em retornar – que embora a mostrasse não negou diretamente. Jonas também não se opôs.

    Assim, eles apanharam os sacos parcialmente cheios e voltaram pelo mesmo caminho.

    O céu cinzento acima parecia mais claro e o calor, crescente. O que dizia a Jonas que o meio-dia estava próximo, e o fim dele, distante. Talvez pudessem vender as tulípas antes da noite. E depois?

    Comprar suprimentos no mercado, armas nos armeiros, passar o resto da tarde na taverna bebendo com o conde rubro? Nenhuma dessas ideias parecia minimamente tentadora.

    Decidiu parar de pensar. Descobriria o que fazer quando voltasse de fato.

    A volta provou-se mais lenta do que a ida.

    Descer a pequena elevação segurando sacos não muito leves de folhas, flores e principalmente terra, com uma senhora debilitada custou um tempo. Jonas levava o seu saco, o de Leandro e o de Graça, enquanto Leandro levava a própria Graça.

    Eric seguia na frente, assobiando.

    Eric se perdeu no caminho, o que os fez dar voltas até encontrarem com um amigável grupo de aventureiros decanos, o qual os redirecionaram de volta para Beuha. Eric deu duas moedas de cobre pelo favor. Gesto que deixou Jonas aborrecido pelo dinheiro a menos.

    Jonas notou que Graça constantemente olhava para trás, e perguntou diversas vezes com que se preocupava. Ao que não recebeu nenhuma resposta satisfatória.

    Ele mesmo, no entanto, não percebeu nenhum som estranho próximo. Apenas aqueles a quem já estava familiarizado. Notou, porém, que Graça sussurrava algo, baixo o bastante para que apenas o ar em sua boca fosse ouvido. Imaginou ser uma prece, mas uma estranha sensação não saia de sua mente.

    Passou o tempo da caminhada de volta à cidade entretendo-se em conversas banais junto a Eric e Leandro, que parecia menos espirituoso do que de costume, constantemente olhando para a mão ferida de Graça.

    Após voltarem ao movimento da cidade, o grupo dirigiu-se ao corredor verde que era a rua dos farmos por motivos diferentes. Leandro para que Graça tivesse algum tratamento, Eric, para vender as tulipas a um alquimista. Jonas seguiu o segundo para ajudá-lo a carregar os sacos. E assim se separaram.

    Entraram em uma loja com o desenho de uma rosa púrpura pintado com tinta resplandecente ao sol em uma placa de madeira negra.

    Eric e Jonas haviam se informado bem acerca de quais lojas pagavam melhor por cada tipo de insumo. Jonas imaginava o porquê. Eric teorizara que seria por conta das diversas receitas artesanais que podiam usar diferentes ingredientes. Talvez fosse, talvez não.

    A loja era um vão com pelo menos cinco metros entre a entrada e o balcão. O chão era de madeira quase rubra marcada por uma fina camada de pó, a qual desenhava uma pequena trilha de passos até a bancada. Nas laterais havia prateleiras repletas de rosas e outras flores mergulhadas em frascos fechados com líquidos das mais diversas cores. Um cheiro refrescante de menta perfumava o lugar.

    Uma bela jovem de cabelos cor de cobre, presos em um rabo de cavalo, jazia do outro lado do balcão.

    Não era especialmente bela, e só se podia ver a parte superior de seu corpo, mas algo em seus gestos, aliado ao decote em seu busto, chamava a atenção da parte mais masculina de Jonas.

    Sorriu-lhe, ao que falou com um timbre de voz que lembrava o som de um garfo arranhando um prato de vidro.

    — Sejam bem-vindos, em que posso servi-los?

    Os ouvidos de Jonas pareceram se mexer como os de um gato após um susto, e ele coçou-os com o dedo mindinho.

    Eric se pôs a frente para respondê-la:

    — Temos algo para ti. Algo bem precioso, aliás — Avançou até o balcão e depositou um dos sacos em cima da madeira polida.

    A atendente observou com uma sobrancelha erguida, e abriu o saco com a ponta dos dedos. Os olhos se arregalaram e retornaram ao normal em menos de um segundo.

    — São flores bonitas — disse ela deixando o saco de lado.

    — “Tulipas bonitas”, você quer dizer. E garanto que não são apenas isso. — corrigiu Eric.

    A atendente inclinou de leve o pescoço, como se com desdém, e tornou a falar. 

    — Onde as encontraram? — A voz aguda e desafinada soou de forma mais desinteressada do que antes.

    — Por aí. Então, vai querer? — ofereceu Eric.

    A atendente fez uma expressão pensativa antes de dizer:

    — Se quiserem vendê-las, pago cinco cobre por quilo. Considerando que há mais terra e folhas do que flores na saco — Enfiou a mão de novo e tirou uma porção de folhas, flores misturado a terra presa às raízes — é um preço alto.

    — Mas são tulipas rozatas. Devem valer pelo menos doze cobres o quilo — Jonas observou. De acordo com o valor médio que havia ouvido enquanto espiavam mercadores vendendo insumos a lojistas, era um preço costumeiro para uma flor usada em poções.

    A jovem atendente franziu o cenho.

    — Como eu disse, tem muita terra e folha nesse saco. Quase não deve dar cinco quilos de flor que seja. Cinco está bom — Cruzou o braço sobre os seios, o que fez o decote se acentuar.

    — Que tal dez? — sugeriu Eric assim que ela terminou de falar.

    A atendente virou o rosto para ele. Os olhos fitando-o de forma séria. Jonas notou que eram cinzentos, o que dava uma estranha combinação no rosto da jovem, junto ao cabelo acobreado.

    — Sete!

    Eric puxou os lábios de lado, pensativo.

    — Nove — propôs Jonas.

    A atendente alternou novamente seu olhar entre os dois. Abriu a boca, como se fosse falar algo, mas fechou-a e espiou novamente pelo saco. No que finalmente prosseguiu em dizer.

    — Oito, e darei um perfume para os dois se livrarem desse mau cheiro.

    O comentário fez Jonas ficar ciente do próprio corpo completamente sujo de terra e folhas.

    — Dispenso o perfume por um beijo, que tal? — sugeriu Eric.

    A atendente riu com mais escárnio do que se podia esperar.

    — Aceite o perfume e talvez algum dia uma garota queira beijá-lo.

    Eric dobrou os lábios e rolou os olhos.

    — A gente aceita — disse Jonas, por fim.

    A jovem conduziu os dois até os fundos, onde viram uma grande balança de medidas. Pôs um dos sacos de um lado, e empilhou pesos de ferro correspondentes a um quilo no outro, até que ambos os lados estivessem equilibrados.

    Assim também fez com os outros sacos, de modo que a soma total foi de dezessete quilos. Deixando-os cento e trinta e seis moedas de cobre – e um perfume – mais ricos.

    Um sorriso se desenhou nos lábios de Jonas ao ver as moedas sendo contadas.

    Cem moedas de cobre equivaliam a dez de prata. Quanto tempo eles demorariam para juntar essa quantia caçando ratos em meio a ruínas sujas e lamacentas?

    “Bem mais do que apenas um dia”, respondeu-se.

    Jonas tomou a bolsa em que as moedas haviam sido depositadas, e Eric o perfume, e assim se despediram da acobreada atendente, que pareceu-se lembrar de seus bons modos de repente.

    — Até mais. É tarde para dizer isso, mas meu nome é Vrikta. Venham novamente caso queiram me vender mais flores dessas ou se desejarem perfumes, óleos e poções do amor — A voz se tornou mais afável, embora o timbre ainda incomodasse os ouvidos de Jonas.

    — E elas funcionam? — perguntou Eric com visível curiosidade.

    — Não comigo — respondeu Vrikta, piscando um de seus olhos cinzas.

    Jonas julgou-a satisfeita com o negócio, e assim a deixaram.

    Os dois, mais leves e mais ricos do que minutos antes, caminharam pelas ruas de Beuha, se dirigindo até o prédio da guilda. Planejaram um jantar mais abastado que o usual. Talvez uma das peças de pernil que viam o cozinheiro costumeiramente servir ao grupo de decanos que habitualmente comia lá toda noite.

    Eric falava sobre conseguir outra pedra de mana ou até um livro sobre magia. Jonas não se sentia atraído por tais coisas. Mas tão pouco imaginava o que podiam comprar além de armas. Na verdade, não se importava realmente. Afinal bastaria eles colherem mais flores rozatas e continuariam arrecadando mais dinheiro de forma fácil.

    Ao se aproximarem do prédio, Jonas ouviu de longe o eco de dezenas de murmúrios, e então se depararam com uma aglomeração na entrada. No que ambos correram para ver.

    Aventureiros, mercadores, lavadeiras e todo tipo de curioso. Todos pareciam parar para ver.

    A multidão se concentrava ao redor de uma carroça levada por dois jumentos, cuja traseira estava coberta por um grande pano. Jonas reconheceu o homem que a guiava.

    Não lembrava seu nome, apenas do chapéu de uma pena que usava e do arco pousado em suas costas. A aljava carecia de flechas e era possível ver um rasgo em sua camisa. Sua face despreocupadamente entediada encarava a multidão, sem foco aparente. Ao seu lado estava uma garota concentrada em um grande livro apoiado no colo. Lia movendo os lábios, sem emitir qualquer som que os ouvidos de Jonas captassem. O vestido jazia sujo e o cabelo ruivo, despenteado.

    O terceiro homem estava em pé, próximo a traseira da carroça, apoiando-se com as duas mãos no martelo fincado a sua frente. A expressão endurecida em seu rosto parecia querer provocar alguém. Ou ao menos Jonas se sentiu assim. Sua armadura tinha cortes e amassados visíveis. Ainda assim, se fazia uma visão temerosa.

    — O que houve?

    — Mataram algo, venha ver.

    — Ah, o que é?

    — Não sei, não mostraram ainda.

    — Aquela garota é bonita, será que aceita uma bebida?

    Vozes e vozes se amontoavam em seus ouvidos, a ponto de doer-lhe a cabeça.

    — São eles, né? — Ouviu a inconfundível voz de Eric dizer, no que Jonas confirmou com a cabeça.

    Os murmúrios continuaram até o membro que faltava naquele grupo surgir usando um elmo redondo, amassado e a mesma armadura de couro que Jonas se lembrava, ainda que em farrapos. Junto dele, seguia outra figura também conhecida.

    O homem que o havia interrogado quando ele chegou em Beuha; Raggin.

    Os murmúrios cessaram enquanto os dois seguiram até a parte de trás da carroça, no que o arqueiro e a maga se colocaram em pé, e o gigante armadurado deu um passo para trás, dando-lhes espaço.

    O homem de elmo redondo o retirou, revelando uma cabeleira dourada e começou a conversar com Raggin.

    — Ouve o que estão falando? — perguntou Eric em voz baixa.

    — Sim — respondeu Jonas no mesmo tom.

    — Então traduz pra mim.

    Jonas bufou, mas o fez.

    — “É uma bela forma de caçar sua promoção”, disse o cara da guilda. “É a única forma, creio eu”, o outro cara respondeu. “Isso veremos, agora mostre-me”.

    O louro pegou a lona que cobria a carroça e a jogou de lado, revelando presas negras do tamanho de marfins de elefante grudados em uma cabeça que parecia a de uma formiga. O corpo era uma enorme trilha de coluna vertebral e patas que parecia cortada ao meio no limite do que cabia dentro da carroça. Os murmúrios tomaram forma novamente, de modo que Jonas teve dificuldade para escutar o restante.

    Os dois voltaram a conversar.

    — O cara loiro falou “Isso é só um terço da lagremsça. O resto está no novo abatedouro”. O cara da guilda perguntou “que novo abatedouro é esse?”, e o loiro está falando que é “O que vai ser criado assim que os monstros disputarem o território dela”.

    — Abatedouro, o que ele quer dizer com isso? — indagou Eric. Jonas chiou para que se calasse e continuou a ouvir.

    — “E que território seria esse?” — Jonas parou ao ouvir a resposta.

    — O que eles disseram? — perguntou Eric.

    — A Oeste — respondeu Jonas, franzindo o cenho enquanto ouvia o loiro dizer a localização do covil da criatura —, o pedaço de floresta junto a estrada que leva para Colina do pastor. Eles mataram esse bicho em uma caverna que havia lá.

    — Pera, isso é bem próximo de onde a gente estava — compreendeu Eric.

    — Sim. Como não topamos com esses caras na volta? — perguntou Jonas, perturbado.

    — Provavelmente não é tão próximo. Eles parecem ter demorado um bocado pra chegar aqui, olhando pra essa carroça aí — observou Eric.

    — Então é uma sorte que a gente teve.

    — Nem tanto.

    — O que quer dizer?

    Eric lambeu os lábios e respirou fundo antes de responder.

    — Sabe, ele disse que – segundo o que entendi – que o território dessa coisa vai virar um abatedouro. Eu ainda não sei o que significa isso, mas…

    Jonas ouviu e compreendeu antes que fosse dito.

    — Se o campo fizer parte do território…

    Eric fez que sim, como se soubesse o que ele estava pensando.

    Ao mesmo tempo, Raggin -o funcionário da guilda – ergueu uma mão convocando palmas e vivas da multidão para a morte da lagremsça.

     Ao mesmo tempo Jonas cuspiu no chão e praguejou tudo que conhecia com todos os fartos xingamentos que já havia aprendido em toda a sua vida, dando conta de inventar alguns novos.

    Então entrou, caminhando com raiva direto para seu quarto.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota