Capítulo 27 - Simples e estranha.
— Aqui está, este é um mapa de Andrias — Thierry desenrolou um pergaminho na perfumada mesa de madeira. Rasgos apareciam nas extremidades do papel amarelado de aparência antiga.
Julia, Letícia e Theo se aproximaram para olhá-lo com mais atenção.
Viram os desenhos detalhados de rios, montanhas e florestas, espremidos de forma harmoniosa em espaços curtos. Não havia fronteiras no mapa. Ainda assim, parecia possível dizer onde elas existiam.
— Esse é o corredor rochoso das montanhas Morryath, que compõem parte dos corredores rochosos que cortam o grande continente de Ádamos — Apontou no papel uma emaranhada fila pontiaguda.
Julia notou que a cordilheira seguia em formato de “y” que marcava o mapa. A parte oeste sendo maior.
— Estamos aqui — apontou para uma área a sul da cordilheira, próxima na borda de várias pequenas árvores aglomeradas. — E essa é a floresta de Gauss — circulou as árvores com os dedos.
— Não parece tão grande — comentou Leticia não aparentando grande interesse naquilo.
— Como as montanhas também não são, e no entanto seu topo é muitas vezes maior que o aqui representado — corrigiu Thierry.
— A vila não aparece aqui, talvez porque o mapa é antigo, né? — Julia concluiu.
Thierry concordou com a cabeça.
— Essa é a capital real, Alleran, onde a família real, Andrien, reside — Marcou-a com o dedo, e então para outra cidade, desenhada junto a cordilheira. — Essa é Caen, a fortaleza nevada, lar dos Troimont. Essa é Archem, ancestral fortaleza dos Archambault. Essa é Fien Aime, a morada dos Freive.
Thierry recitou mais uma dezena de lugares que pareciam ter alguma relevância e então encarou os três que o escutavam.
— Essas são as casas nobres deste tão nobre reino. Sabe por que lhes disse isso?
Julia negou com a cabeça, assim como Leticia. Theo pareceu pensativo por um momento, porém também o negou.
— Disse-lhes os nomes deles, pois todos estão prestes a derramar o sangue uns dos outros — Deslizou a palma da mão pelo mapa.
— Como assim? — perguntou Leticia.
— O primeiro príncipe Aaron e a princesa Désirée disputam o trono do pai.
— E mulheres podem herdar o trono aqui — indagou Theo com o cenho franzido.
Thierry negou com a cabeça.
— Não, e por tal coisa, os senhores que a apoiam hão de derramar sangue do reino para coroá-la.
Todos pareceram prender a respiração.
— Mas por quê? — perguntou Julia deixando escapar o ar.
— Ambição, luxúria, orgulho, inveja. Todos os desejos ocultos nos corações dos homens. Levados por eles, os homens estão marchando neste momento. Ainda que não saibam exatamente o destino que os espera — respondeu Thierry.
— Marchando — repetiu Leticia.
— Conde Wallis Fréive apoia o primeiro príncipe, assim como os Troimont, os Caspen e os Murat. E como vassalo dos Fréive, sir Alóis está envolvido em tais tramas.
Julia engoliu em seco. A primeira vez que viu o cavaleiro lhe veio à mente, assim como a expressão sombria de Thierry quando ambos saíram do escritório. Uma expressão que antecedeu a luta contra os ursos e basiliscos. Que antecedeu a quase morte de Eduardo.
Lembrava claramente da tenda, do cheiro da morte e de sua sombra espalhada pelo ambiente, envolvendo Eduardo como uma teia de aranha. Como também lembrava do quão subserviente ela era para com Thierry.
— E porquê está nos contando isso? — perguntou ela.
Thierry a encarou, soltando um longo suspiro.
— Para que saibam que caminhos trilham e para onde. Tanto vocês que ficaram, como também Edwardo e Caio que partiram.
Julia sentiu seu estômago se revirar ante a seriedade na voz de Thierry.
— Os garotos? — disse Letícia, com uma expressão confusa. — Mas eles saíram para um baile, não pra uma guerra.
— Um baile envolvendo homens que desejam a guerra — retrucou Thierry, enrolando o mapa novamente. — Não digo isso para que desesperem, mas para que entendam o que ocorre ao nosso redor — caminhou até uma das estantes repletas de livros e pergaminhos e o guardou lá.
Julia mediu as palavras e o tom de cada uma — sua mente lembrando de todos os tons comumente usados pelo cavaleiro. Não entendia como conseguiu lembrar-se, discerni-los ou reconhecê-los, apenas o fez e percebeu que o cavaleiro não alertava de um destino certo, mas de uma possibilidade.
— Temo já ter tomado muito tempo dizendo tais coisas. Sentem-se e aprendam algo, por favor.
Os três o fizeram, sentando-se junto à mesa e tomando folhas em branco. Thierry se aproximou com um maciço livro, penas e mais folhas em branco.
Assim, naquela manhã do dia duodécimo do mês de ésono, que marcava metade do outono, começaram a aprender mais sobre aquele mundo. Ou mais precisamente, seu dialeto.
Ele escrevia uma letra, dizia seu nome, som e usos, então mandava-os repeti-la, depois escrevia a seguinte e repetia o processo.
Já tinham repassado boa parte do alfabeto eulita; a língua a qual os habitantes daquele mundo falavam e escreviam. E Julia havia achado a fala incrivelmente fácil, uma vez que não parecia haver diferenças entre o eulita e o português. O que causava certa incredulidade em Theo.
Thierry, porém, havia alertado que haviam outras línguas além do eulita, as quais eram faladas em terras distantes. Como o “palatino” falado ao leste do corredor rochoso, as línguas mestiças dos adoradores de Ash’hurr, e o behothês, o dialeto do império Behemoth. As quais ele alegava não ter bom domínio.
Julia imaginava o quão diferentes eram do português e do eulita.
A pronúncia era simples. A escrita e a leitura, no entanto, eram penosas. Algo difícil de se entender, dada a facilidade que tinham na pronúncia. Theo, novamente, era o que mais se mostrava pertubado com tal coisa.
Ainda assim, ele era o que mais progrediu no aprendizado, compreendendo os usos e regras específicas do idioma. Leticia aprendia lentamente, pedindo que Thierry explicasse cada assunto de pelo menos duas formas diferentes. Julia julgava seu próprio progresso como satisfatório. Compreendia perfeitamente o mais básico na ortografia, e de algum jeito memorizava as regras específicas de cada letra, apenas encontrando certa dificuldade na construção de frases básicas através delas.
Idêntico ao português na pronúncia e completamente diferente na escrita e leitura.
Era um estranho e curioso idioma.
Próximo ao horário do almoço, Thierry encerrou a aula, liberando-os para comer.
Roque esperava na sala de jantar com uma farta mesa a dispor. Uma galinha tetrasa — os estranhos pássaros de quatro asas —, lombo de boi defumado e legumes cozidos com duas jarras de vinho doce. Uma visão bela para olhos e estômagos.
Todos sentaram à mesa. Leticia ao lado de Roque e Theo ao lado de Julia. Não havia momento em que sentisse mais falta de Eduardo do que aquele. Thierry juntou as mãos e fechou os olhos para realizar sua habitual prece.
As palavras foram ditas, como tantas vezes antes. Porém Julia notava algo diferente a cada dia. Algo que parecia cada vez menor a cada repetição. Mas não tinha certeza do que era.
Ao fim do momento de agradecimento, os alimentos pouco a pouco desapareceram da mesa.
Julia comeu parte do peito, junto aos legumes. Theo arrebatou duas das quatro asas disponíveis, além de várias tiras de boi defumado. Ele sequer tocou nos vegetais. Leticia comeu uma parte do lombo e uma dúzia de legumes cozidos, e passou o resto da refeição petiscando os frangos. Roque serviu-se de tudo em porções semelhantes. Thierry comeu a maior parte do frango e do lombo, parecendo decepcionado ao perceber que os vegetais haviam acabado.
Após a refeição, Thierry mandou que fossem até o jardim.
Ao longe podiam ver os campos sendo ceifados pelas dezenas de aldeões dedicados em seu trabalho. Mais ao longe, as árvores quase nuas davam sinais da chegada do inverno iminente.
Thierry parou em pé de frente aos três, olhando-os de forma avaliativa.
— É momento de aprenderem algo além das letras — declarou.
Julia franziu as sobrancelhas, confusa.
— Vamos aprender a lutar? — perguntou Theo.
Leticia pareceu animada, estalando os dedos.
— Receio que não.
Julia suspirou em alívio e percebeu Theo fazendo o mesmo. Apenas Leticia pareceu desanimar.
— Os instruirei em algo diferente — Thierry retirou uma bolsinha de dentro de sua roupa e derramou o conteúdo na palma da mão.
Júlia viu três pedrinhas transparentes e opacas, da aparência de uma pedra de sal. Tinham formatos arredondados, como pedras de rio. Thierry as distribuiu entre os três.
— Irão repetir a palavra que eu disser e então segurar as gemas até não ser mais possível — Thierry disse uma palavra simples e, ao mesmo tempo, estranha. Todos a repetiram.
Julia conhecia aquela palavra, de forma que recitá-la parecia-lhe algo quase banal. No entanto, percebeu seus lábios se movendo de forma a qual não estava acostumada. Apesar do som ser o mesmo, não sentia tê-la dito de fato. Não parecia ter dito qualquer palavra que conhecesse.
A pedra em suas mãos brilhou, e pareceu aquecer quanto mais segurasse.
Viu Leticia gemer e soltar a sua, mas continuou segurando. Até estar quente demais e uma dor aguda subir por seu braço.
A soltou, abanando a mão dolorida, que pareceu ficar dormente logo depois.
Theo continuou com a sua pelo que pareceram alguns minutos, até que a soltasse. Sua testa suava e seu peito oscilava de forma irregular. Ele se deixou cair, sentando na grama.
Leticia e Julia se aproximaram dele, preocupadas com sua condição, o que ele respondeu com “melhor do que nunca”. Julia percebeu uma mancha cinzenta rapidamente espalhar-se por seus olhos e então sumir.
— Agora, toquem nas suas pedras e repitam a seguinte palavra — Mais uma vez Julia ouviu um som banal e ao mesmo tempo esquisito de alguma forma.
Eles o fizeram.
Julia sentiu a dor se espalhar por seu dedo enquanto pronunciava uma palavra estranha que nada se parecia com o familiar som que ouviu sair de sua boca. Então as pedras perderam o brilho e a dor cessou.
Thierry apanhou as três pedras e as devolveu ao pequeno saco.
— Então, tipo, pode nos dizer o que foi isso? — pediu Leticia.
— Evidentemente — respondeu Thierry. — Ocorre que suas aptidões me parecem diferentes das de seus amigos, Edwardo e Caio. Não marciais como os jovens guerreiros, mas mágicas. Não sou o mais apto para explicar isso, no entanto posso dizer que o que pus em vossas mãos foram gemas de mana refinadas. Elas responderam as palavras arcanas e então liberaram sua mana através dos seus corpos.
Julia piscou em surpresa.
— Mágica? Tipo truques com cartas e coisas assim? — Leticia inclinou o pescoço para um lado.
— Não, sequer imagino o que que seja isso. Falo de mágica como a feita por magos e feiticeiros.
Leticia lançou um olhar de incredulidade, que então tornou-se em um de compreensão.
— Ei, Theo, ele quer dizer aquilo que tu fez naquele dia? Com a bola de fogo? — perguntou ela, virando-se para Theo que continuava no chão.
— Se não for isso, então não sei — respondeu ele.
Leticia e Julia olharam para Thierry que confirmou com a cabeça.
— Crê que podes lançar outra nesse momento — Thierry perguntou para Theo.
Theo deu de ombros.
— Não sei, preciso me concentrar um pouco.
Se levantou de forma abrupta, quase caindo para o lado devido a rapidez. Fechou os olhos, e inspirou.
— Espere! — clamou Thierry. — Vá para lá e aponte para aquela direção — Apontou para um espaço distante de grama além das cercas onde não havia nada. — Assim haverá de queimar nem a casa, nem as plantas.
Theo obedeceu, caminhando até o espaço aberto, e ergueu os braços como se estivesse segurando uma bola. Fechou os olhos e voltou a respirar suavemente.
Após alguns momentos uma esfera amarela surgiu entre suas mãos. Tinha o tamanho de uma uva, mas cresceu lentamente até ser maior que a cabeça do garoto. Julia parecia ter esquecido de respirar enquanto olhava-o.
Theo abriu os braços e a esfera disparou, tocando o chão antes que Julia completasse uma respiração.
Uma forte onda de calor as atingiu no momento em que uma labareda subiu vários metros aos céus no lugar atingido. As chamas pareceram saltar para os lados logo após, se espalhando pelo capim verde, rapidamente se consumindo após.
Em pouco tempo, nada havia ali além de um grande círculo de dez metros carbonizados de diâmetro.
Magia, pensou Julia perplexa. Diferente do que via em seus sonhos. Diferente do que sentira quando a coisa tocara Eduardo.
Útil, percebeu. Útil e assustadora.
— Caralho, que porra! Pareceu maior do que da outra vez.
Theo permaneceu parado.
— Estás bem — perguntou Thierry. Algo em sua voz pareceu estranho a Julia. Percebeu-a perplexa de algum modo.
— Essa não — alarmou-se Leticia. — Da outra vez a gente teve que carregar ele depois disso.
Julia tentou se lembrar, mas logo percebeu que era inútil. Ela própria estava inconsciente naquele momento. A memória trouxe um desconforto em seu peito.
— Estou bem — disse Theo. — Acho até que posso soltar outro.
— Não será necessário. Volte. — Thierry virou para a Julia e Letícia. — As senhoritas serão as próximas.
Leticia riu.
Julia olhou para a amiga, notando um movimento além dela, nas amuradas de pedra.
— O senhor não espera que eu também faça aquilo, né? — zombou Leticia.
Julia percebeu que Thierry também havia reparado no mesmo que ela. E encarava-os com certo interesse em seus olhos.
— Seu dom parece-me outro — disse ele enquanto olhava para os dois gatos que se espreguiçavam em cima do muro.
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