Capítulo 28 - Como falamos.
O creme saltou da amurada, em direção ao chão. Andou por alguns centímetros, então parou para lamber as patas. O laranja o seguiu, esfregando seu peludo corpo na frente do primeiro gato, até a cauda enrolar-se na cabeça do companheiro. Então fez a volta, ao que recebeu uma sequência de lambidas na cabeça.
Esfregaram-se por algum tempo, então o laranja pôs uma pata sobre a cabeça do creme, que a retirou com um tapa, se pondo em pé sobre as patas traseiras, e caindo sobre o outro gato.
Um segundo depois os dois se embolaram sobre a grama, agarrando-se com suas patas e dentes.
Julia sorriu de forma inconsciente enquanto os assistia.
— Já sentes? — Ouviu Thierry perguntar, mas não para ela.
— Eu meio que não sei o que deveria sentir, mas não, acho que não — respondeu Leticia.
Thierry coçou seu queixo, soltou um longo e sonoro suspiro. Era estranho para Julia vê-lo dessa forma, tão incerto de algo. Ele pediu para que Leticia continuasse.
Como um monge, ela sentava de pernas cruzadas, fechando os olhos enquanto permanecia virada na direção em que os gatos estavam. Julia lembrava de ver Theo sentado da mesma maneira diversas vezes, mas nunca entendeu o motivo. No entanto, após sentir o cheiro das cinzas sopradas do grande círculo carbonizado pelo vento constante, ela o compreendeu.
Theo estava em pé diante do círculo negro marcado no verde quase constante da grama, olhando para a própria obra.
Parecia incrédulo, e tinha motivos para estar. Nunca em sua mente, Julia imaginou ver um homem fazer aquilo. Mas o viu. E se podiam fazer aquilo, o que mais era possível a eles? O que era possível a ela.
“Sou uma memória”, lembrou-se das palavras naquela voz tão familiar.
Mas não minha, certo?
Percebeu Thierry virando-se em sua direção e prendeu a respiração, engolindo em seco.
Era a sua vez. Mas de quê?
Thierry parou e estendeu um punho fechado. Julia entendeu o que ele queria sem sequer refletir. Pôs a mão aberta debaixo da dele e então sentiu algo pequeno tocar-lhe a pele.
O velho homem recolheu o braço e Julia viu o que ele havia lhe dado. Parecia um pingente no formato de quatro asas, estendidas para cima e para baixo, as pontas formando dois arcos contrários. Uma fina correntinha de ferro estava presa a ele.
— Ponha-o no pescoço, sente-se de uma forma que se sinta confortável, tente sentir a mana dentro de seu corpo e então repita as palavras que eu vou lhe falar — instruiu Thierry.
Julia olhou para o cordão, arqueou uma sobrancelha, então tornou a olhar para o velho homem.
— Como é que eu faço isso, quer dizer, como vou sentir a mana no meu corpo?
Thierry suspirou, e então respondeu.
— Saberá. Agora repita comigo: abençoado e sábio é aquele que ouve teu chamado. Não se perderá por veredas, não passará necessidades. Não padecerá de frio e nem temerá a morte, pois tu o protege.
Julia repetiu, vendo o rosto de Thierry demonstrar uma expressão de espanto.
— O que foi senhor Thierry?
— Como falas tão bem o Éldico? — perguntou ele, claramente incrédulo.
Julia franziu ainda mais as sobrancelhas, abriu a boca, sem dizer nada, lambeu os lábios e disse.
— Como assim? Eu disse o que tu pediu.
— De forma correta demais para alguém que o ouve pela primeira vez, como imagino que seja — argumentou Thierry, parecendo ainda mais incrédulo.
— Tá, não tô entendendo nada — coçou a cabeça — Era pra eu falar errado então, ou algo assim? — disse, e apenas quando fechou a boca percebeu o quão grosseira sua fala soou.
Thierry não pareceu interpretá-la assim, de forma que respondeu normalmente.
— De forma nenhuma, apenas imaginei que teria alguma dificuldade para pronunciá-la. Mas, pensando bem, sua pronúncia anterior da língua antiga também me pareceu correta.
A mente de Julia ferveu em confusão.
— Certo, eu de verdade não tô entendendo nada, mas só pra saber mesmo, é pra eu falar isso, ou não?
— Sim, fale-a — declarou Thierry. — Coloque o colar, sente-se de forma confortável, feche os olhos e recite à exaustão.
Julia suspirou de alívio e fez conforme o instruído.
Fechou os olhos e tentou sentir qualquer coisa que fosse dentro de si.
O vento soprou sobre seu rosto. Restos de grama, areia, orvalho fresco, a fumaça do círculo carbonizado, sentiu as pequenas coisas que ele carregava baterem contra sua pele.
Recitou.
Não sentiu nada, nem percebeu coisa alguma em seu corpo além do tremor causado pelo frio e do incômodo cheiro da fumaça próxima, que fazia seu nariz formigar.
Recitou. A garganta começava a ressecar enquanto repetia e repetia.
Ouviu o som das moscas voando ao seu redor. Abriu os olhos e espantou-as com as mãos.
Fora dos limites do pequeno muro que cercava a residência de Thierry, em frente ao círculo tocado pela bola de fogo, o velho homem explicava algo a Theo, que ouvia atentamente.
Julia não conseguia ouvir o que diziam. Gostaria de ter ouvidos super sensíveis naquele momento, da mesma forma que Caio tinha olhos aguçados.
Levantou-se, espreguiçando o corpo e então olhou para Leticia, que continuava sentada, porém Julia reparou nos gatos. Não estavam mais distantes. O creme jazia empoleirado em seus ombros, como o papagaio de um pirata. O laranja, deitado no colo da garota, enrolado sobre si mesmo.
O que estava sobre o ombro encarou Julia — os olhos claros na pelagem creme — e ela sentiu um desconforto tomá-la.
Num movimento repentino, o gato saltou do ombro de Letícia, alongando-se e disparando pelo jardim em direção às plantas. O segundo fez o mesmo, saltando e correndo tão rápido quanto podia.
Em tudo isso, Leticia não se moveu. Parecia ter adormecido. Julia alongou sua coluna e olhou despretensiosamente em volta. A casa de Thierry ficava a meia distância de tudo. Do bosque, da colheita, da vila. Ficando no meio de um grande campo aberto. E em pé nesse campo, como se observando-os, Julia viu uma distante silhueta encapuzada. Sentiu uma familiaridade nela.
Tremeu, lembrando-se da última vez que passou por algo semelhante, na quadra. Pensou em chamar por Thierry, mas uma voz lhe tirou a atenção daquela visão.
— Ah, Julia, finalmente a encontrei. Não sabes como é difícil caminhar por essas estradas quando se está em dois — comentou Núrya, sorrindo de frente para a amurada de pedra.
Julia virou o rosto para a jovem mãe, consternada de confusão por sua repentina aparição. Olhou mais uma vez em direção a pessoa parada no campo, e não a viu. Franziu o cenho, sentindo a mão tremer e a barriga se preencher de um frio inquietante.
— Estás bem, vim em uma hora ruim? — perguntou Núrya, com uma expressão preocupada no rosto.
Julian olhou para ela, forçando um sorriso.
— Não, não, só acho que me assustei um pouco.
— O que a Leticia faz sentada no chão dessa forma? E onde está sir… Thierry — Ela virou o rosto, procurando, até encontrar o velho homem junto com Theo, e a esfera negra de grama queimada sobre seus pés. — Por Ellday! Houve algum incêndio?
— Não, relaxa, está tudo bem — Julia apressou-se em despertar Leticia, sacudindo-a pelo ombro.
— Que foi, garota? Alguma emergência? — Letícia abriu os olhos, e, quando percebeu Núrya, saltou do chão, se pondo em pé. — Senhor Thierry — gritou.
O velho cavaleiro olhou para elas e se aproximou com rapidez, abrindo um sorriso quase natural. Julia surpreendeu-se por ser capaz de reparar nisso.
— A que devo essa visita, minha jovem senhorita? — perguntou ele.
— Jovem sim, senhorita não, estou casada, demasiado grávida para ser chamada assim — troçou ela.
Thierry riu, dessa vez de forma realmente sincera, percebeu Julia. Núrya tinha tal efeito sobre os outros.
— De fato, mas em minha não tão vasta experiência no que se diz respeito ao cortejo de damas, chamá-las de “senhoras” não parece agradá-las, principalmente quando são jovens como a… bem, a senhora — Thierry esfregou as mãos. Um gesto inconsciente, imaginou Julia.
Núrya dobrou os lábios, tocando-os com um dedo de forma pensativa.
— Aí está o equívoco, então — disse. — Não posso ser cortejada por outro a não ser meu marido. Mas não nego que ser chamada assim faz com que sinta as rugas crescerem em meus olhos — Parecia se divertir com o rumo inesperado da conversa. Ela não olhava fixamente para Thierry, mas alternava sua visão entre os presentes, como se estivesse reparando suas reações.
— Então, responda-me, como devo chamá-la? — insistiu Thierry.
— Pelo a qual foi abençoada por Ellday através de meus pais. Apenas Núrya.
Thierry riu novamente.
— Então, deixe-me perguntar novamente, o que a traz a minha casa, minha cara e espirituosa Núrya? — Ele também parecia se divertir com aquilo de certa forma.
— Caralho, isso tá cansativo — Julia ouviu Leticia sussurrar em seu ouvido e sorriu, sentindo-se deslocada.
Ao seu lado, Theo franzia as sobrancelhas, cruzando os braços enquanto observava. Núrya continuou a falar.
— Nada além de uma visita a algumas de minhas amigas, as quais não vejo desde o festival, e a quem eu devo repreender por fazer uma senhora grávida caminhar até aqui apenas para ter o prazer de suas companhias — declarou olhando para Leticia e Julia, cruzando os braços com encenada censura.
— Tá, foi mal, mas a gente nem sabia o de você morava — justificou-se Leticia.
Núrya sorriu.
— Por isso vim lhes dizer. Jantarei aqui essa noite — Virou-se para Thierry. — Sei bem que é rude convidar-se dessa forma, mas um cavalheiro como o senhor pode perdoar os caprichos de uma pobre mulher grávida atormentada pelos tornozelos inchados, não?
— Certamente, tolerarei os teus caprichos e os teus tornozelos inchados — comentou Thierry e ambos riram.
— Então, acabou a aula e tudo mais? — perguntou Theo.
Thierry mudou sua expressão, tornando-a mais severa por um momento.
— Sim, por hoje, sim. Agora entremos e falemos de coisas boas e agradáveis a uma jovem mãe.
Thao piscou em compreensão.
Os cinco vagaram em direção a entrada. O sol não havia cruzado completamente o céu, estando na metade de sua descida até o horizonte. O que significava que Roque acabara de começar a preparar o jantar.
Conversariam mais e mais.
Julia olhou mais uma vez para o campo, procurando, e então passou pela porta.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.