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    O bocejo pôde ser ouvido ecoando entre os corredores. Sons sempre pareciam se propagar mais em noites frias.

    Thierry olhou para a mesa em que se havia servido o jantar uma hora antes. Mesmo que já tivesse sido limpa, ainda se podia sentir o calor e o cheiro da comida no ambiente.

    Piscou.

    Não sabia se era pelo frio da noite, pelo estômago pesado pela comida, ou se pelo som do bocejo, mas sentiu seus olhos tomados pelo sono.

    Foi até a cozinha, onde uma jarra com melgrás aguardava para ser consumida, e despejou o líquido numa xícara, vendo o vapor subir. Continuava quente, mesmo após tanto tempo depois de ter sido tirado do fogo.

    Levou a xícara à boca e tocou com os lábios na bebida.

    Doce e forte. Um sabor conhecido por quase todos. Pelo menos por ele, desde a sua juventude. Lembrava-se de senti-lo em várias ocasiões. Em vários lugares.

    Entre as prateleiras repletas de livros do Oticomo. Nas vigílias noturnas entre as colunas de Arquidraer. Num pavilhão de acampamento, junto a uma mulher de cavelos negros e cheiro de limões, que o detestava.

    Você devia aprender a sorrir, costumava dizer ela. Por que ele ainda se lembrava?

    Esvaziou a xícara, sentindo o vapor sair por sua boca enquanto o calor revigorante se espalhava por seu corpo.

    A noite já entrava em sua hora mais escura. Thierry caminhou pela casa, passando por cada cômodo. Roque rezava em seu quarto para seu deus, sabia. Theo devia estar em seu quarto pelo que podia adivinhar, realizando o ritual dos magos pagãos do leste.

    Thierry nunca pensou um dia em permitir tal coisa dentro de sua casa. Também nunca pensou em adotar um rapaz cujo pai ele havia matado.

    Caminhou mais um pouco, ouvindo as animadas e melodiosas vozes vindas do quarto das garotas. Duas jovens alegres, e uma também jovem mãe amorosa desfrutando dessa companhia. Thierry sorriu levemente com os lábios, ao escutar o som por trás da porta.

    Núrya cumprira o que prometera e então um pouco mais. Jantara com eles e conversara mil assuntos mais um, então declarou que ali passaria a noite.

    — E o bom senhor seu esposo, o que disse ele? — perguntou-lhe Thierry .

    — Disso não disse nada, pois em casa não está. Meu bom senhor terá de ajudar a vigiar o velho moinho por essa noite. Por isso não me fará companhia — respondeu-lhe ela, acariciando a barriga inchada.

    E é uma indelicadeza deixar uma mulher grávida sem companhia… podia ouvi-la completar. E lá estava devido à tal solidão, preferindo passar a noite sob o mesmo teto de suas amigas — que, naquele momento, faziam-lhe uma animada companhia.

    Afastar a solidão, pensou. Então rumou ao seu escritório. Trancou a porta e sentou-se em sua cadeira. As luzes douradas das pedras sentinelas iluminavam os cantos.

    Respirou, aspirando o ar frio, então falou as palavras na aberrante língua do leste e a chama acendeu-se na vela à sua frente.

    Violeta. Laranja. Verde. Branca.

    Negra.

    — Estava à tua espera — disse a sombra branca que ela projetava na escuridão que se tornara o quarto.

    Thierry suspirou pesarosamente.

    — Diga-me o que achou — exigiu.

    — Onde está a cortesia e eloquência que usara com a jovem mãe? Devo eu ficar prenha também para ser bem tratada, meu caro cavaleiro? — perguntou ela em tom jocoso.

    — Não há em mim nenhum dos dois para dar a ti. Agora diga-me o que percebeu deles.

    A sombra balançou a cabeça de forma desaprovadora.

    — As garotinhas que cantam seus feitos ficariam desapontadas com tal tratamento a uma dama.

    Thierry estalou a língua.

    — Diga de uma vez, bruxa — rosnou em éldico, dobrando os lábios em amargura. Nunca pensou em sentir tal sentimento falando a língua sacra.

    A sombra respondeu em seu próprio dialeto profano. Uma das muitas línguas mestiças faladas entre os adoradores de Ash’hur, desde os reinos verdes dos xás nas planícies de Maieúka, a borda do mar, até a grandiosa passagem de pedra.

    Thierry nunca as aprendeu. Não julgava-as dignas de serem lembradas. Ainda assim, algo em ouvir a sombra falar o lembrava dela. Do cheiro dos limões.

    São parecidas de certo modo, percebeu.

    Amargou-se ainda mais.

    — Diga — tornou a falar o andriano, acalmando sua voz. Sabia que não conseguiria nada se ela se irritasse mais.

    — Sim, eu lhe direi, você ouvirá, e não falará mais nada — declarou ela de forma ríspida.

    Thierry assentiu com a cabeça, aguardando o veredito de olhos que haviam viajado pelo continente, vislumbrando tantas magias sombrias.

    — O rapaz tem talento — disse ela. — Nunca vi nenhum mago arcano deste lado ou do outro da cordilheira lançar um feitiço dessa forma, sem recitação ou uma pedra de mana. Ainda que simples, demonstrou grande poder. Peça uma pedra de mana para Jackelin, e faça-o recitar as seguintes palavras arcanas várias vezes durante o dia — recitou palavras estranhas, obscuras, que incomodaram os ouvidos de Thierry.

    Ele as memorizou e a sombra continuou a falar.

    — A garota de pele acobreada possuí bastante essência em seu interior, embora eu não tenha certeza de seus dons. Continue a prestar atenção naqueles gatos.

    — Então, como eu, você também sente algo vindo deles — comentou.

    — Cale-se, disse para não mais falar palavra alguma — repreendeu ela.

    Thierry engoliu um soneto de maldições que acabara de ser composto em sua mente e se calou. Precisava ouvir.

    A sombra continuou.

    — Não tenho certeza sobre o que são, mas suas formas não parecem ser a sua verdadeira natureza. Dê a ela uma gema refinada para que aumente sua mana e desperte seus dons. Agora, quanto a outra garota — Thierry prendeu a respiração engolindo em seco —, não há nada nela. A essência de mana que ela absorveu dos cristais desapareceu de seu corpo muito antes do colar de Ellden ser posto em seu pescoço.

    Thierry franziu o cenho. O que isso deveria significar?

    O colar dado por ele a Julia era um objeto sacro usado por sacerdotes e cavaleiros de Ellday, para se livrarem da influência causada pela essência de mana usada pelos bruxos pagãos.

    Magos usavam pedras e cristais de mana em suas magias, sugando sua essência para realizar feitiços profanos. Os ritualistas de Ellday a purificavam-na através dos pingentes dos Ellden, e assim realizavam seus milagres.

    Julia não ter mana logo após absorver uma pedra de mana não fazia sentido. 

    Lembrou-se do que Julia havia dito. Sobre o ser que a chamava em seus sonhos. Que a deu poder para que realizasse um milagre. Seria Ellday? Seria outra coisa?

    Não se atrevia a falar dele para a sombra. Não tinha certeza de que desejava ouvir sua resposta.

    — Não pude perceber nada além disso. Tu disse a mim que ela era capaz de trazer alguém dos portões do mundo escuro, mas não percebi nela nenhuma bênção de Ash’hur.

    — Como pode uma benção ser dada por um demônio? — rosnou Thierry.

    — Um demônio? — perguntou a sombra. — Diga-me, “Thierry o abençoado”, foi o tal demônio que ordenou a morte de dois mil prisioneiros em uma noite? Foi ele que cercou uma cidade; homens, mulheres, crianças e idosos. Cercou todos e deixou que passassem fome, até que as mulheres tivessem que cozinhar seus filhos mortos para alimentar os estômagos, os velhos se matassem em desgosto, e os homens se tornassem fracos demais para proteger os portões? Foi ele quem matou minha irmã? — perguntou, fazendo a nuca de Thierry arrepiar-se. — Diga, sir Thierry “Apóstolo de Ellden”, quem o fez?

    — Eu não a matei — respondeu, a voz embebida de rancor. Lembrou-se daquele dia. De seu rosto, do sorriso em seus lábios antes de fechar os olhos. — Ela própria tirou sua vida — Thierry bradou.

    Eu não conseguiria. Não após ver que era ela.

    — A matou, sim. Não segurou a lâmina que matou minha irmã mas a carregou consigo até o derradeiro momento.

    — Que lâmina? — Thierry perguntou confuso.

    — A do destino. O destino que ela viu muito antes que nossos sultões navegassem com seus exércitos até vossas terras, ignorando seus avisos e atraindo a ira de vós e vossos monstros até nossas terras. Destino esse que se cumpriu quando tu a encontrou naquela noite. E que continuou quando as estrelas caíram.

    A sombra calou-se, deixando o silêncio imperar na escuridão. Thierry não respondeu, não sabia o que responder.

    Desejava não estar ali. Retornar aos dias tranquilos em Oticomo, as vigílias longas em Arquidraer. Para a tenda no acampamento, sentindo o cheiro de limão.

    Desejava estar mais uma vez ao lado de Nadyr. Quando ela fingia não o odiar, quando ela o ensinava sorrir. Antes de descobrir que era ela quem caçava.

    Antes que ela tomasse o veneno.

    — Eu não a matei — negou novamente, de forma mais enfática.

    — A mim não importa — a sombra respondeu. — Faça o que eu disse, cavaleiro. E me chame quando se esquecer de seus pecados

    A sombra começou a desvanecer, indicando que a chama em breve apagaria.

    — Espere, Yarin — pediu Thierry, falando o nome daquela do outro lado.

    Após tanto tempo, o som era-lhe estranho aos lábios.

    — O que ainda queres, Elldita? — Yaren indagou, a voz transbordando desprezo.

    — Ambos sabemos o que sentimos um pelo outro, e ainda assim, permaneces aqui. Por quê?

    Yarin riu, sua sombra erguendo a cabeça para cima enquanto o som reverberava nos ouvidos de Thierry.

    — Não sabes? Pelo mesmo mesmo motivo que deixaste teu assento sangrento como apóstolo. Pelo mesmo motivo que tomaste uma criança de Hazabarca como protegido. Pelo mesmo motivo que encontrou aqueles seis. Não o faço porque desejo, mas porquê é o meu destino. Porquê minha irmã o viu.

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