capítulo 31 - Distante.
As vozes os mandavam caminhar, enquanto eram levados aos tropeços por um caminho que não viam.
Ítalo não entendia o porquê das vendas. Já estava tão escuro que ele não enxergava o chão onde pisava. E havia virado tantas vezes pelo caminho que duvidava poder decorá-lo, mesmo sem elas.
Todos haviam sido vendados e levados pelos encapuzados para dentro de sua aldeia.
Ítalo cobriu os olhos, incerto. Não conseguia confiar em Daisy. Po também resistiu a princípio, mas Daisy o acalmou para que se deixasse ser vendado. Era surpreendente o quanto aquele homem grande e violento obedecia a pequena garota. Surpreendente e assustador.
Caminharam por um longo e indeterminado tempo, tropeçando em degraus, escorregando em rampas e batendo com os pés em pedras, até que o ar ficou abafado, e o frio da noite tornou-se morno.
Um som seco de ferro rangendo pôde ser ouvido e uma baforada de ar quente soprou na face de Ítalo.
Sentiu-se ser empurrado e jogado para frente. Seus pés escorregaram nos degraus de uma escada, e ele caiu, bolando abaixo. A venda saiu de seus olhos em algum momento e quando parou, levantou a cabeça, percebendo que estava em frente a um grande pátio de pedra cercado por estalactites e estalagmites ligados do teto ao chão, como gigantescos pilares de rocha. Dezenas deles.
Pessoas transitavam entre elas, carregando carroças repletas de corpos de animais, grãos de algum tipo e jarros de barro.
Alguns o perceberam, encarando-o. Outros simplesmente o ignoraram.
Viu várias entradas espalhadas pelas paredes, embaixo e em cima, com rampas e escadas estreitas junto às paredes, levando até elas.
Pessoas fluíam através delas em um movimento contínuo que lembrava o de um formigueiro.
— Derinkuyu — O nome da antiga cidade subterrânea turca se formou de forma inconsciente em sua boca, enquanto observava hipnotizado, a vista a sua frente.
Ouviu passos às suas costas e olhou para trás, vendo Daisy, Po e Zaya descendo os degraus, já sem vendas, trazidos pelos homens encapuzados.
Eles o alcançaram e o puseram de volta na formação.
Alguns pararam para os ver passar, enquanto outros abriram caminho. Ítalo olhou para suas roupas, notando mantos de diferentes tons de marrom, laranja, amarelo, vermelho e púrpura. Cores tão quentes como o sol que sentira nos dias anteriores.
Daisy seguia indiferente aos olhares. Enquanto Po olhava para todos, movendo o pescoço em todas as direções, parecendo um tanto pertubado. Mas quem parecia mais nervosa era Zaya, que olhava para o chão enquanto andava dando passos curtos e lentos, e suava como uma latinha gelada de refrigerante fora da geladeira.
O próprio Ítalo se descobriu mais maravilhado com aquele lugar do que nervoso com o que os esperava. Não que não estivesse.
Subiram por uma das escadarias, passando por dezenas de mulheres carregando jarros em suas cabeças e braços. Um cheiro forte emanava no ar, toda vez que uma delas passava perto de Ítalo. Então entraram por uma das passagens, que revelou-se um corredor cavernoso iluminado por tochas e lamparinas.
Ítalo perguntou-se de onde as lamparinas haviam vindo. Questionou Zaya, que o mandou ficar quieto em um tom tão temeroso e gélido que ele não tornou mais a lhe dirigir a palavra.
Chegaram em frente a duas grandes portas de pedra, que talvez tivessem o dobro da altura do homem mais alto ali.
Um dos encapuzados tomou a frente do grupo e chamou por um nome.
— Almajíd — chamou.
Um momento depois, um som foi ouvido e as portas de pedra lentamente se abriram para dentro.
Os encapuzados os levaram para dentro, onde Ítalo viu, sentado sobre um tapete dourado e rubro, no fundo de um grande salão, um homem vestido com uma túnica branca e azul. Seus cabelos grisalhos bem aparados na cabeça branca com manchas marrons na pele. Os olhos azulados do homem fitaram Ítalo assim que ele entrou no salão. Algo neles o fez desviar os seus, evitando-os. Atrás dele havia cortinas púrpuras que cobriam toda a parede às suas costas.
Temeroso, Ítalo se perguntava o que viria a seguir.
O encapuzado que liderava o grupo se pôs à frente do homem.
— Saúdo a ti, anfitrião Arsil.
— Seja bem vindo, Johrão. O que o trás aqui de forma tão repentina — O homem respondeu com uma voz calma e vibrante aos ouvidos. Olhou mais uma vez para Ítalo e os outros, voltando-se novamente para o encapuzado à sua frente, que prosseguiu em responder.
— Meu senhor, os encontrei acampados no topo da antiga torre sentinela do mar dourado. Quando fomos expulsá-los de lá, a pequena disse a nós algo que pode vir a ser de seu agrado.
O homem que devia ser o líder então se voltou para Ítalo e os outros, falando com uma voz imponente.
— Sou Arsil, anfitrião dessa aldeia e filho de Drishja, que foi anfitrião antes de mim. E vós, quem sois?
Po bocejou quase ao mesmo tempo em que ele falava, o que fez Daisy pedir para que ficasse quieto. Falando com ele como se fosse uma criança. Ela se pôs à frente de nosso grupo.
— Somos viajantes, caro senhor, se temos negócios contigo.
O anfitrião a encarou, com uma intensidade que fez Ítalo encolher-se ainda que não fosse o alvo de seu olhar.
— Teus olhos me vêem, pequena, mas não parecem enxergar a mim — disse ele. Ítalo franziu as sobrancelhas confuso, mas antes que conseguisse entender, Daisy abriu sua boca.
— Meus olhos vêem um velho homem, mas o que enxergo é o antigo general que ele foi, não estou certa?
O anfitrião coçou o queixo e prosseguiu:
— Pergunto-me o que seria tal coisa importante que tens a dizer, para meus leais homens permitirem estranhos adentrarem tão profundamente em nosso lar. Responda-me, criança com tão bons olhos.
— Apenas perguntei se eles conheciam a Baaz, meu caro senhor.
O velho homem estreitou os olhos.
— Conhecemos, sim, isso poderia ter sido respondido fora dos portões.
— E o odeiam, pelo que posso ver — concluiu Daisy.
— Seu próprio povo o odeia, pelo que sei. Capturamos vários dos seus para constatar isso — contou o Anfitrião
— Agora estou curiosa, caro Anfitrião. Se de fato o odeia, como creio que deve odiar, porquê não descobriu como destruí-lo através desses homens descontentes? Podia ter sabido muita coisa através deles. Caminhos secretos, fraquezas, ou qualquer outra coisa.
O anfitrião bufou em desdém.
— Pequena, vejo que não és deste lugar. Nem és parte de nenhuma aldeia. Se fosse saberia porquê nenhum dos homens que capturamos nada revelou sobre a sua aldeia.
Ítalo olhou para Zaya, que mantinha a cabeça abaixada, apertando as mãos. Desejava entender o significado daquilo.
— Talvez eu descubra hoje. De fato, não sou de nenhuma aldeia, e nem sei ou me importo com seus costumes. Mas tenho comigo alguém que talvez se importe — Daisy olhou para Zaya. — Trouxe a ti uma membra da aldeia de Baaz.
O anfitrião encarou Zaya.
— Um passo à frente, jovem — ordenou.
Zaya obedeceu, hesitante.
Ítalo podia vê-la tremer de uma forma que nunca vira antes. Afinal, o que significava para ela estar na presença de um anfitrião? Ele perguntou-se.
— É verdade o que a pequena disse? — perguntou o velho homem, dando uma pequena olhadela para Daisy.
Zaya abriu a boca para responder, mas os sons se embolaram em sua boca até as palavras serem ditas de fato.
— Sou Zaya, coletora da aldeia de Baaz — apresentou-se.
— E o que faz aqui, coletora de Baaz?
Zaya abriu a boca, mas não respondeu. O anfitrião suspirou.
— Se de fato é uma coletora, de certo conheces os caminhos para tua aldeia. Conheces as entradas, as palavras que falam uns aos outros, os nomes dos homens importantes, onde alguns ou até todos eles moram. Sabes o suficiente para me levar lá e erradicar a escória de Baaz deste solo sagrado. Estou certo? — Arsil perguntou.
Zaya olhou para ele com o rosto aflito e então e meneou a cabeça concordando.
— Mas não vai — O anfitrião afirmou por ela, que ficou em silêncio, olhando para baixo. Ele olhou para Daisy e continuou. — Aí está, menina dos olhos perspicazes. A ruína de tudo aquilo que arquitetas-te, por não saber nada sobre a passagem, sobre as aldeias em seu interior e sobre os que nela vivem. Por não saber o que significa, para um filho de Ash’hurr, ver a aldeia que protegeu seus antepassados nos dias de Eresh, ruir perante o inimigo.
Italo ficou desnorteado. Não sabia o que ocorreria e nem entendia ao certo aquelas palavras queriam dizer, mas percebeu que o plano de Daisy havia dado errado. Olhou para ela e ficou ainda mais confuso, pois viu que a garota não esboçou qualquer reação às palavras do anfitrião.
— Sim, eu não os conheço — confessou ela —, mas devo dizer que conheço os homens. Sei que eles fazem todo tipo de coisa pelo incentivo certo — Sorriu um sorriso infantil.
O anfitrião abriu a boca e jogou a cabeça para trás, soltando uma risada retumbante que ecoou pelo salão. Então elevou sua voz de forma agressiva.
— Tortura, é isso que me recomenda fazer a tua própria companheira?
Os homens encapuzados que os cercavam remexeram-se, como se incomodados.
— Tortura não. Não sugeriria algo tão vil a um homem tão nobre como o senhor — explicou-se Daisy. — Há muitos incentivos que o senhor poderia pensar, não? Basta escolher um.
— Diga-me então um incentivo que eu não tenha dito a todos os outros membros de aldeias que interroguei. Diga — exigiu o anfitrião.
Daisy olhou para Zaya, enquanto falava:
— Sei que ela tem uma irmã, não é Zaya. A qual deseja muito bem. Sei que ela deseja vê-la uma última vez. Sei, pelo estado que se encontra que odeia a Baaz, tanto quanto cada um de vocês que nos cercam. Eu sei algumas coisas sobre ela, e sobre o senhor também.
O anfitrião bufou e estreitou os olhos.
— O que sabe, diga-me.
— Sei, como já disse, que és nobre. E não o disse apenas por querer agradá-lo, mas porquê tu presa em agir dessa forma, tratando-nos com decência, ainda que sejamos estranhos a ti e a teu povo — Daisy olhou para os encapuzados — Sei, pelos teus homens, que não aprecia o sangue. Pois ao invés de nos matar no alto da torre, foram com a intenção de apenas nos afastar de lá com um aviso. Alguém assim nunca destruiria um lugar desnecessariamente, nem negaria a uma jovem que lhe ajudasse, um pedido que essa o fizesse — Ela olhou novamente para Zaya, que a encarava com olhos arregalados.
Arsil ouviu tudo em silêncio, e quando Daisy terminou, ele tomou a palavra.
— Olhos perspicazes e uma língua desenvolta — Virou-se para Zaya. — Diga-me, jovem de Baaz. Ama a tua aldeia?
Zaya não respondeu. Olhou para Arsil com o mesmo olhar aflito e então começou a chorar. Ítalo foi até o seu lado, perguntando se ela estava bem.
— Assim vejo. No entanto, ainda dúvido que me diga algo, não é mesmo? O que é uma pena.
Ítalo olhou para o homem.
— O que vai fazer com a gente? — perguntou.
— O que faço a cada estranho que invade nossa Aldeia. Deixo-os escolher entre a morte limpa e misericordiosa, ou a prisão nas tumbas.
Ítalo olhou para Daisy, vendo pela primeira vez desde o início daquela conversa um indício de dúvida e nervosismo em seu rosto.
— Então, o que escolhem? — perguntou o Anfitrião.
— Não será necessário — outra voz surgiu, madura e feminina.
Ítalo olhou para o lado do anfitrião, onde uma mulher vestida de um manto verde escuro saía de trás da cortina. Seu rosto amendoado possuía as marcas da idade avançada, envolto por cachos cinzentos de seu longo cabelo. Mas possuía olhos de um vívido verde intenso, a qual podia-se ver o brilho mesmo à distância.
Ela ajoelhou-se ao lado do anfitrião e beijou sua mão, permanecendo sentada ao seu lado.
Arsil virou seu rosto, olhando-a.
— O que queres dizer com isso, Nefetys? — perguntou ele.
— Deveria ter me chamado, meu vento forte, pois tenho muito interesse nesses que estão à tua frente.
O anfitrião suspirou pesadamente.
— Sei que tens tido problemas para meditar, por isso não quis incomodá-la, minha fonte refrescante. Ainda mais com assuntos desagradáveis, como este — o velho homem pôs sua mão em cima da mão da mulher, que apenas sorriu de forma meiga.
— Pedi que me chamasse, caso algo anormal ocorresse. E aqui está o anormal à nossa frente.
Ítalo olhou de um para outro, desconcertado pelos apelidos que julgou serem carinhosos, e confuso pelo tom que a conversa tinha.
A mulher o encarou, e algo em seus olhos verdes o relaxou.
— Diga-me, jovem, de onde és?
— Somos viajantes, senhora — Daisy respondeu por ele.
A mulher lhe deu um olhar de censura.
— Isso sei, menina da língua afiada, todo homem que não está em sua terra é um viajante. Mas o que desejo é saber de qual terra os viajantes pertencem — olhou novamente para Ítalo.
— Sou de um lugar distante, er, senhora — respondeu ele. Sentindo o corpo mole quanto mais olhava para aquelas esmeraldas.
— Além da passagem de pedra? — perguntou ela.
— Sim.
— Além do mar dourado?
— O deserto? Ah, sim.
A mulher se levantou.
— Além do mar azul?
— O mar? Não sei dizer com certeza, mas…
— Sim?
— Pode-se dizer que sim.
Italo percebeu Zaya o encarar, com uma expressão de surpresa que nunca tinha visto em seu rosto antes. Notou também Daisy preocupada.
Nefetys se aproximou.
— Além dos céus? — perguntou, encarando-o a apenas três passos dele.
— Como?
— A jovem pertence à passagem, mas vocês três. Meu vento forte acerta em afirmar que vós não. E sinto que não pertencem nem à passagem, nem ao mar dourado, o azul ou as terras sempre verdes do outro lado. Sequer ao céu para onde Eresh pretende voltar e de onde Ash’hurr nos observa.
Ítalo engoliu em seco. Nefetys continuou.
— Sinto em vós algo que não pertence a lugar nenhum. Por isso pergunto-o mais uma vez. De onde é?
Sem pensar muito, Ítalo abriu sua boca e estranhou falar o nome da cidade em que nasceu pela primeira vez em tanto tempo. Um nome que já julgava ter se esquecido até precisar se lembrar.
— Um nome estranho a mim, que nunca saí deste lugar. É estranho para ti também, que já viu tantas estrelas diferentes no céu, anfitrião meu?
— Sim — O velho homem concordou, balançando lentamente a cabeça.
A mulher de cabelos cinzentos olhou para Daisy, que suspirou.
— Manchester.
Ítalo olhou para ela, incrédulo. Daisy sempre pareceu falar português muito bem para uma estrangeira.
Nefetys então olhou para Poo.
— Ele é de Bruxelas, ao que me lembro — respondeu Daisy por ele.
— Outros dois lugares estranhos a mim — observou Nefetys. — Ouvistes falar deles, meu vento forte?
— Não, fonte refrescante, nunca os ouvi — respondeu o anfitrião.
Nefetys olhou para Ítalo novamente.
— Sim, nunca os ouvimos. Por isso desejo ouvi-los mais. Por isso devemos mantê-los aqui.
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