Capítulo 33 - Ligados.
Uma névoa dançava entre as pedras cobertas de vinhas, hera e outras plantas trepadeiras. O sol mais uma vez se escondia por detrás das nuvens cinzentas, que reinavam acima dos galhos nús que se erguiam aos céus como milhares de dedos esqueléticos.
Jonas estava sentado em um obelisco caído, vestido de uma cota de malha, comprada com o dinheiro das tulípas. Ele esperava, junto aos demais.
Graça cantava em voz baixa o décimo hino do dia. Vestia um manto grosso, que pensavam poder protegê-la dos insetos e mordidas superficiais de outros animais. Leandro limpava suas adagas, que a muito não estavam sujas. Usava a mesma malha que Jonas para proteção. Todos os três usavam, incluindo Erik, que caminhava de um lado para o outro, impaciente.
— Esses bichos tão demorando demais — reclamou. A queixa perdeu-se em meio ao som dos grilos e o chiar das cigarras.
— Será que aconteceu alguma coisa? — especulou Leandro, embainhando a adaga que tanto limpava.
— Eles estão chegando. Apenas espere e relaxe — informou Graça, com sua voz calma.
Jonas inspirou, enchendo o pulmão de ar, e então o liberando em meio ao frio nevoeiro. Não ouvia nada além de ecos de sons.
— Acho que só dá pra esperar, né? — falou.
Fazia mais de uma semana desde a morte da lamgremsça, e desde então tudo o que Jonas e Erik haviam especulado sobre o que ocorreria naquela área começou a se tornar verdade. Cinco dias após isso, monstros como grandes aves de rapina, do tamanho de avestruzes, lobos Hatti e lagartos gigantes, com duas fileiras de dentes em suas mandíbulas, foram avistados no antigo território do monstro morto, que mais parecia uma centopéia gigante.
E com isso, dezenas de aventureiros avançaram com armas em mãos para o mesmo lugar, em busca de boas caçadas. O lugar em que as tulipas rozatas estavam.
Jonas ouvia todos os dias relatos de lutas intensas entre os membros mais veteranos da guilda e monstros que disputavam territórios. Desde então não era incomum ouvir ou ver grupos de aventureiros retornando com alguns membros a menos.
Um caso, no entanto, não saía de sua mente.
Dois dias antes, ouviu rumores sobre um homem sendo levado para a rua dos fármos. Falavam sobre como suas veias podiam ser vistas, roxas e inchadas sob a pele pálida. Aparentemente seu grupo tinha lutado com um basilisco, cuja saliva era venenosa. O homem espumou uma saliva rosada e mal cheirosa, antes de sufocar até morrer. Nenhum fármo se atreveu a tocá-lo enquanto vivo.
Jonas soube por outras bocas no dia seguinte que um mago havia comprado seu corpo de seus antigos companheiros. Não queria imaginar o que alguém poderia querer com um cadáver repleto de veneno.
Tudo isso significava para eles apenas uma coisa: não podiam voltar para o campo de tulípas.
Jonas todas as noites amaldiçoava e maldizia o grupo que os matara a lamgremsça. O mesmo grupo que os havia esnobado antes, no encontro com o urso.
Remoeu-se por dentro durante aquela noite com que sonhou sonhos terríveis. Então acordou, e viu algo que o fez duvidar de estar acordado. Graça com um fanzo em seu colo, acariciando-o como se fosse um gato.
Jonas logo gritou, acordando os outros e procurou a espada. Leandro arrancou um candelabro apagado da parede do quarto para usar como arma, e Erik saltou para longe, afastando-se do grito. Graça ergueu seu único braço, pedindo para que se acalmassem, pois a criatura não lhes faria mal.
Nenhum dos três acreditou, alegando que a própria Graça tinha sido mordida por uma das criaturas naquele dia. E Graça continuou a insistir que o animal em seu colo não faria mal a ninguém, pois podia sentí-lo.
— “Sentí-lo”, o que você tá querendo dizer? — Tinha perguntado Jonas a Graça. Que respondeu:
— Não sei, apenas sei o que ele sente, eu acho.
— E o que ele sente? — perguntou Erik em tom jocoso.
— Medo de vocês.
— Se ele tá com tanto medo, porquê apareceu aqui? — apontou Leandro, batendo com o candelabro na mão.
— Pera, como é que esse bicho entrou aqui, pra início de conversa? — questionou Erik, aproximando-se mais de Graça e do fanzo.
Jonas também se perguntou o mesmo. Aquela criatura havia seguido eles desde o campo? E se sim, como ela entrou no prédio da guilda sem que fosse vista e pega por algum funcionário ou caçador.
— Eu vou dizer de novo, eu não sei. Eu senti ele e acabou dele vir até mim pela janela.
— Pera aí, essa janela abre? — Leandro perguntou, indo até a janela checar.
— Cara, deixa isso pra lá — disse Jonas, rolando os olhos. — Como você sentiu esse bicho?
— Meninos, eu vou ter de falar de novo que eu não sei? — Graça levantou sua voz e a criatura em seu colo se ergueu nas duas patas traseiras, abrindo sua boca na direção dos três em ameaça.
Jonas e Leandro ergueram o que seguravam contra ela, e Erik deu um passo para trás, levantando sua mão. Graça mandou todos se acalmarem e a criatura se encolheu, voltando à quieta posição interior.
Jonas estreitou os olhos.
— Ela te obedece?
Graça olhou para o fanzo, com uma expressão de leve surpresa.
— Pode controlá-la? — perguntou Erik, se aproximando mais uma vez.
A mulher de meia idade continuou encarando a criatura em seu colo, então deu-lhe um comando.
— Levante-se! — ordenou, e o fanzo se levantou sobre as duas pernas, sem abrir a boca de forma ameaçadora para os três como havia feito antes. — Pule pro chão! — Ele o fez, saltando um palmo de distância na direção de Jonas e dos outros, permanecendo parado lá.
— Ela adestrou o bicho — balbuciou Leandro, espantado.
— Manda ele girar — sugeriu Erik.
— Gire três vezes para a direita — Graça instruiu, e o fanzo o fez.
— Caralho — Leandro se ajoelhou próximo ao fanzo, deixando o candelabro de lado.
— Como a senhora conseguiu fazer isso? — perguntou Jonas.
— Eu já disse, meninos, eu não sei.
Leandro estendeu a mão para tocar na criatura, mas Graça o advertiu para não fazê-lo, dizendo que o fanzo detestava ser tocado por humanos. Erik perguntou como ela sabia disso, e, novamente, a resposta foi:
— Não sei.
— A senhora lembra de algo assim ter acontecido antes? — perguntou Erik, que já tinha transformado aquilo em um interrogatório àquela altura.
Graça pensou por um tempo, antes de responder.
— Sim. Acho que lembro de ter sentido algo assim com outro animal. Mas, por Deus, foi muito rápido e eu não consegui dizer o que aconteceu.
— Quando foi? — Agora era Jonas quem perguntava.
Graça começou a tremer ao responder.
— Na vez em que fomos… atacados por aqueles lobos horríveis. Depois que um deles me — levou a mão até onde devia estar o outro braço.
O fanzo olhou para ela e soltou um guincho triste.
— Não precisa responder, senhora. Melhor não pensar nisso — disse Leandro, se aproximando e pondo uma de suas mãos no ombro da mulher.
— Mas precisamos saber — insistira Erik.
— Cara, não tá vendo que ela não tá legal pra falar disso? — disparou Leandro em tom de revolta.
— Leandro, a gente sabe, mas temos que ouvir para entender o que tá acontecendo com ela — explicou Jonas, acalmando o amigo e então se voltando para Graça. — A senhora pode falar mais sobre aquele dia?
Graça confirmou com um aceno quase robótico de cabeça. Lambeu os lábios, engolindo em seco e respirou fundo antes de voltar a falar com voz de choro.
— Um deles arrancou meu braço. Deus, lembro a dor até hoje… Minha mente ficou tão confusa, achei que fosse morrer, mas o bicho não me atacou. Ficou parado na minha frente. Eu sabia que ele estava com fome, com uma das patas machucadas, e com frio. Eu tava com medo, mas de alguma forma, eu também sabia que ele não ia me atacar. Mas não sei dizer o porquê. Parecia que ele ocupava uma parte de mim também.
— Era o que estava na sua frente quando eu te achei, né? — lembrou Jonas, e Graça confirmou com um aceno de cabeça.
— Ele te atacou — perguntou-lhe Leandro.
— Não. O monstro que eu e sir Orland achamos na torre acordou, e o bicho avançou em cima dele — Jonas sentiu-se estranho em lembrar do cavaleiro, que morrera na mesma noite que Túlio.
Os dois não gostavam um do outro, sentindo um peso no peito.
— Ainda bem, porque só assim a gente conseguiu fugir — ponderou Erik.
— Eu o senti morrer — Graça disse em uma voz baixa e melancólica, que fez o coração de Jonas apertar-se.
— Como assim? — perguntou Leandro com uma voz hesitante.
— O lobo, eu senti o que ele sentia quando avançou contra àquela coisa, e a dor dele quando foi levado pro alto e solto de lá. Senti seu último suspiro, e o medo dele de morrer — o fanzo saltou novamente para o seu colo e ela o abraçou. — Não quero sentir mais aquilo — Lágrimas desceram pelo seu rosto, enquanto soluçava.
Leandro baixou a cabeça. Jonas sentiu-se sem palavras, com apenas ar saindo de sua boca aberta enquanto respirava.
— Quer dizer então que a senhora se ligou aquele bicho, mas como? — Erik questionava enquanto olhava para o fanzo nos braços da mulher.
— Acho que já tá bom — declarou Jonas, olhando para ele.
— Hum, tá, só mais uma coisa. Dona Graça, sabe me dizer se esse é o fanzo que te mordeu?
Graça levantou a cabeça para o garoto de óculos remendados.
— Por que quer saber disso? — indignou-se Leandro.
— Só diz se sim ou se não — insistiu Erik.
Graça olhou para o fanzo, e então respondeu.
— Acho que sim.
Erik abriu um sorriso, e encerraram a noite, enquanto Jonas percebia a luz do sol surgindo, dando fim àquela conversa. Dois dias após, Erik surgiu no quarto com um filhote de coelho unicórnio e uma adaga, pedindo para que Graça cortasse um dedo e deixasse o gato lambe-lo.
Leandro se opôs veementemente e Jonas tentou convencer Erik a desistir da ideia, mas ele insistiu, fazendo com que Graça concordasse em fazê-lo.
Tal como ocorrera com o fanzo, o coelho contorceu-se pelo chão, sufocando, até acalmar-se e permanecer deitado no chão, aparentando estar morto, não fosse o movimento da barriga inflando e desinflando. Graça começou a suar no mesmo instante. Logo o coelho se levantou, sentando-se de frente para Graça. E a mesma ficou encarando-o.
Estava sob seu controle, Jonas percebeu, e assim, Erik contou seu plano. O que os levou até aquele momento, em que esperavam em meio a névoa e o chiar dos grilos.
Jonas constantemente olhava para Graça, que não demonstrava grande cansaço. Imaginava como deveria ser para ela controlar outras criaturas. Ela própria não sabia explicar. Ele sabia, porém que ela se cansava com o tempo, e precisava se concentrar para dar instruções aos bichos, não podia lhe dar ordens a distância, segundo os testes que fizeram nos últimos dias.
Erik se mostrara bem interessado e empenhado em saber mais sobre tal habilidade de Graça. De forma que passou mais tempo com a mulher na semana anterior, do que em todo o tempo que estiveram ali até então, sempre lhe perguntando mais e mais sobre o que ela sentia ao fazê-lo.
Leandro se irritava com isso, e Jonas se cansava com os dois, brigando diversas vezes com ambos por causa de suas discussões. E tudo isso era aplacado por Graça e sua voz calma.
Mesmo ali, em meio a espera e ao nada, ela continuava calma, cantando duas canções. Jonas não desgostava disso.
— Será que eles foram pegos por algum outro monstro? — preocupou-se Erik, com uma mão sob o queixo, ainda caminhando de um lado para o outro.
— Se acalme, querido, eles estão bem — tranquilizou-o Graça, ou ao menos tentou.
— E como a senhora sabe?
— Eu não sei explicar, apenas sei — explicou-lhe Graça.
— Desiste de tentar entender cara, já tá chato isso — reclamou Jonas.
Erik bufou, voltando a andar.
Jonas suspirou, voltando a olhar para o labirinto de ruínas envoltas por plantas e névoas. Leandro, talvez por tédio, talvez por impulso, ou talvez por causa de ambos, tomou uma pedra em sua mão e jogou dentro da neblina, causando um eco que reverberou nos ouvidos de Jonas.
Um eco que veio acompanhado pelo som de patas nas folhas secas que cobriam o solo, escondido em meio ao esfumaçado véu branco que cobria tudo.
— Ouço algo — alertou, levantando-se. Os outros fizeram o mesmo.
Leandro empunhou sua adaga e Erik tomou uma das gemas de mana que comprara. Jonas não fazia ideia do que o amigo fazia com essas coisas. Sabia apenas que eram caras.
Apenas Graça permaneceu calma, como sempre estava. A velha mulher abriu um sorriso.
— Chegaram.
Da névoa surgiram quatro pequenas criaturas correndo com rapidez, saltando por cima do obelisco. Três fanzos e o filhote de coelho unicórnio, que devia ter o tamanho de um coelho comum do mundo anterior de Jonas, se revelaram.
Graça conseguia controlá-los, embora aparentemente de forma bem simples. Eles entregaram o que carregavam em suas bocas.
Punhados de tulípas.
Não eram tantas quanto o que eles podiam carregar, mas ainda assim, valeriam uma boa quantia ao serem vendidas aos fármos.
Erik sorriu.
— Nunca fiquei tão feliz em ver marmotas — declarou ele.
— Já viu alguma marmota na vida? — perguntou Jonas, embainhando a espada.
— Eu já vi no animal planet — respondeu Leandro, voltando a limpar a adaga que carregava.
— Tá, tá, galera, vamos pegar isso e juntar no saco. Acho que dá tempo deles irem de novo — disse Eric, observando o claro céu nublado.
Leandro e Jonas pegaram as tulipas e as puseram dentro de um saco. Os fanzos e o coelho rodearam Graça, subindo em seu colo e ombros.
— Eles estão com medo. Há criaturas perigosas por lá — disse Graça, repentinamente amedrontada.
— Sabemos. Por isso estamos mandando elas, não? — pontuou Erik.
— Mas e se eles morrerem?
— Se eles foram e voltaram uma vez, podem fazer de novo.
— Cara, ela não me parece muito bem, melhor não forçar — aconselhou Leandro, se aproximando de Graça.
— Se quiser ganhar menos da metade do que a gente conseguiu da última vez, a gente pode voltar — resmungou Erik, abrindo os braços.
Jonas suspirou, se dirigindo a Graça enquanto falava:
— A senhora pode mandar eles de novo, por favor?
Graça, olhou para os fanzos e o coelho, confirmando.
— Eles vão até lá, mas vão fugir assim que virem um perigo — declarou a senhora.
— Certo — Jonas concordou, olhando para Erik de forma significativa. O amigo nada falou, apenas bufou e caminhou para o lado.
As criaturas correram para dentro da névoa novamente. E só restou aos quatro esperar nas horas que se seguiram. Jonas observou Graça, notando a tez da mulher cada vez mais pálida e sua respiração mais dificultosa à medida que o tempo passava.
Leandro constantemente perguntava se ela estava bem. Ao que era respondido por uma afirmação cada vez menos convincente. De repente, a mulher tremeu, gritou e se deixou cair, sendo amparada por Leandro e Jonas, que permaneceram todo tempo de guarda ao seu lado.
Perguntaram-lhe novamente o que havia ocorrido e ela apenas respondeu de forma fraca:
— Ele morreu.
Jonas olhou para Erik, que observava-os com uma expressão atônita, então voltou a prestar atenção em Graça, que ainda respirava com dificuldade.
As criaturas retornaram com seus punhados de tulípas. Três delas, ao menos. Dois fanzos e o coelho.
Jonas e Erik juntaram as tulípas e as puseram dentro do saco. Então se dirigiram de volta à cidade. Jonas fez Erik carregar o saco de tulípas enquanto Leandro ajudava Graça a caminhar, sendo escoltados pelas três criaturinhas.
Não fariam mais aquilo, decidiu ele.
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