Capítulo 39 - O que pode acontecer.
A luz da manhã surgiu ao abrir de seus olhos. Fria e embaçada. Uma névoa fina tomava conta do lugar que um dia antes era aquecido pelo tão raro sol, que naquele momento estava ausente, escondido pelas grossas nuvens.
A tenda era divida por ele e Erik, mas ao acordar, Jonas viu-se só.
As garotas na outra tenda, Leovard na carroça, todos aparentavam dormir. Não havia som no acampamento, a exceção do áspero ruído que ocorria quando alguém riscava a terra.
Jonas lembrava de ter ficado de vigia logo após Erik e então ser substituído por Keren. Erik não devia ter ficado de vigia outra vez até de manhã, mas lá estava ele, sentado, mexendo com um galho nos restos mornos e enegrecidos da fogueira feita na noite anterior. Quase tão escuros quanto as manchas envolta de seus olhos.
— Dormiu alguma coisa essa noite? — perguntou.
Erik levou a mão ao rosto, esfregando seus olhos cansados enquanto balançava sua cabeça para os lados, negando.
— Acho que você não leva jeito pra acampar, né, garoto de apartamento? — troçou Jonas. Erik revirou os olhos.
— Não é por que estamos dormindo aqui, nem nada do tipo. São os sonhos que tenho — explicou Erik, coçando a cabeça.
— Que sonhos? — perguntou Jonas, sentando junto a ele.
Erik deu de ombros.
— Não sei bem. Parece ser sempre o mesmo sonho, mas é sempre tão confuso. As coisas parecem tão reais nele, mas não consigo lembrar quando acordo.
— Lembro que alguém falava comigo, mas não sei bem o que dizia — Erik olhava para as próprias mãos enquanto falava. Como se estivesse analisando algo nelas. — Lembro apenas de umas palavras confusas.
Jonas deu de ombros.
— Também tenho uns pesadelos de vez em quando. É melhor deixar isso pra lá — comentou, lembrando-se de sonhos ruins. Sonhos com elas.
Ouviu murmúrios e vozes da tenda em que as garotas dormiam, indicando seu despertar matutino.
Morda surgiu da tendo segundos depois. Usava uma camisola azul escura que cobria seu corpo até os joelhos. Os cabelos descendo por seus ombros em cascatas rubras, como um rio de lava descendo pela encosta de um vulcão. Jonas não saberia dizer se sim ou não. Mas não parecia haver outra peça de roupa por baixo da camisola que a garota usava.
— Dia belo? — saudou Morda, notando a atenção que Jonas lhe dera com seu olhar, e então caminhou até a carroça, balançando-a até Leovard grunhir em descontentamento ao acordar.
— Belo dia, com certeza — comentou Erik com uma voz sonolenta.
Keren surgiu da tenda um pouco depois. Vestia sua roupa costumeira, porém sem a capa que sempre a cobria, revelando sua calça e camisa. Jonas achou curioso o quão bem aquelas roupas masculinas caíam na mulher. Por seu rosto, parecia ter tido uma noite de sono tão agradável quanto a de Erik.
— Belo dia? — saudou Jonas em tom incerto ao ver a expressão cansada da mulher.
— Mais que a noite anterior, ao menos espero — respondeu Keren, passando por eles e caminhando até a carroça. Voltando para próximo das cinzas da fogueira com uma bolsa cheia de pães e um cantil. — Vamos nos apressar e comer de uma vez. Desejo sair daqui antes que a noite chegue.
Jonas assentiu com a cabeça de forma inconsciente. Quanto mais rápido conseguissem o que foram buscar, maior seriam as chances de Leandro.
— Parece mais apressada do que o normal — comentou Erik com uma voz monótona, enquanto um pão da bolsa.
— Minha companhia noturna não era a mais conveniente — Keren partiu um dos pães e pôs o pedaço na boca, mastigando.
Erik e Jonas olharam para onde Morda discutia com Leovard, que descia da carroça, balançando a cabeça em negação.
— Se quiser, eu troco com você — sugeriu Erik, de forma arteira.
Keren não respondeu, apenas continuou comendo, mordendo o pão de forma brusca.
Pouco após, Leovard se juntou ao desjejum. Morda entrou em sua tenda, saindo pouco depois, trajada de um vestido verde oliva com dobras verticais em formato de leque que iam do quadril à bainha, que terminava na metade dos seus tornozelos. Um cinto preto com uma fivela prata o prendia na cintura. Ela segurava um cajado de madeira com uma pedra vermelha na ponta.
— Enfim terminou de se aprontar — comentou Leovard em um tom resmungão.
— Apenas o suficiente — declarou Morda, empinando o nariz de forma orgulhosa e com um orgulhoso sorriso nos lábios delicados. Ela se juntou à roda, entre Keren e Leovard, partilhando o pão.
— Está tudo bem silencioso — observou Jonas.
— Sim, acho que somos os únicos aqui — Erik tomou um gole da água no cantil.
— Mas também não ouço nenhum animal. As tais harpias que vivem aqui não deviam estar voando por aí? — Olhou para Leovard, que entendeu que logo engoliu o pão que comia para responder.
— Viemos em uma época boa, creio eu.
— Época boa? — Erik perguntou, se inclinando para frente.
— No começo do outono elas entram no periodo de acasalamento, e no final dele chocam os ovos antes do inverno. As fêmeas ficam no ninho e os machos saem para caçar e não voltam por semanas. Por isso tantas crianças têm sumido no “erva doce”. Então é relativamente seguro vir aqui agora — explicou Morda, falando de forma rápida e agitada.
— Como sabe tanto sobre harpias? — perguntou-lhe Jonas.
Morda deu de ombros.
— Gosto de ler muitos livros.
— Sim, e também é importante saber sobre as coisas que se quer matar — comentou Leovard, em um tom professoral que fez Jonas estreitar os olhos e dobrar levemente os lábios.
— E sabe onde elas põem os ovos? — insistiu em perguntar Erik.
Morda inclinou a cabeça e olhou para cima, para a grande elevação de rocha coberta por plantas.
— Elas comumente põem em cavernas, mas não sei dizer.
— Rezemos para não encontrarmos uma caverna com ovos e uma mãe harpia hostil — desejou Leovard, esvaziando a tigela de mingau que tinha nas mãos dentro da boca.
Jonas percebeu que Erik sorria sozinho, com uma expressão perdida e pensativa no rosto, que olhava para as cinzas.
— Há algo que gostaria de perguntar também — anunciou Keren, olhando para Leovard. Que a encarou de volta, acenando para que continuasse. — Vosso grupo tem mais duas pessoas, não?
— Sim, de fato.
— Onde eles estão?
Morda apressou-se em responder.
— Não quiseram vir. Dork’t disse que havia coisa melhor para fazer do que procurar mato. E Lect já tinha aceitado uma missão para averiguar os boatos de dentes de adaga avistados nas vilas próximas ao Vaenein, então os dois decidiram fazê-la — A menção às criaturas fez o lábio de Jonas se contrair.
— Dentes de adaga? É sensato apenas duas pessoas partirem para enfrentá-los?
— Sensatez nunca foi uma virtude de Dork’t. Já Lect talvez consiga convencê-lo a recuar se o número de inimigos for demasiado — comentou Leovard de forma calma.
— Você não parece preocupado. Já pensou que um deles pode acabar morrendo? — observou Erik.
Leovard o encarou com uma sobrancelha levantada e um meio sorriso nos lábios. Jonas percebeu que Keren também olhava para Erik, com aquela sua expressão sem emoção de quem havia ouvido uma estupidez.
— Sim, mas nós também podemos morrer aqui, não? — disse calmamente o cento.
Após o desjejum, eles subiram na carroça subindo o estreito caminho que subia serpenteando pela encosta do monte repleto de raízes e rochas.
Não parecia especialmente grande em altura, mas era largo, de forma que custaria muito para contorná-lo, com sua encosta sendo um emaranhado de árvores pequenas brotando como espinhas de rochas pontiagudas.
Aquilo fazia Jonas se perguntar porquê chamavam aquilo de colinas e não morros.
Os cavalos pareciam relinchar murmúrios a cada passo e o vento aumentava mais em força e volume. À medida que subiam o terreno se tornava mais pedregoso, de forma que Jonas temia que a carroça pudesse quebrar-se a qualquer momento. E Leovard pareceu compartilhar dessa preocupação.
— Vamos parar por aqui e seguir a pé — declarou.
— Pensei ser eu a líder — brincou Morda.
— Então o que faremos, senhora? — provocou Erik, fazendo uma referência encenada.
Morda riu, soltando uma pequena bufada de ar.
— Fazei o que Leovard diz — anunciou.
— Vamos logo com isso, tem alguém morrendo, se não lembram — repreendeu Keren, descendo da carroça com um salto.
Jonas a seguiu.
— Precisamos deixar alguém vigiando a carroça — declarou Leovard. — Morda decida quem vai ficar e quem vai seguir caminho acima.
A garota ruiva arregalou os olhos e então os baixou, como se examinasse o chão sob seus pés.
— Não é melhor irmos logo? Deixa o Erik aí, ele não sabe lutar direito — declarou Jonas, atraindo para si um olhar de revolta por parte do amigo.
— Concordo, não precisamos de dois magos — apoiou Keren.
Leovard continuou olhando para Morda, que timidamente acenou com a cabeça em concordância.
E assim fizeram.
Erik foi deixado para trás, junto a carroça e os cavalos. Algo nele pareceu estranho para Jonas, que percebeu a falta de reclamações ou insistências do amigo para continuar com eles. Ignorou isso, aproveitando aquela pequena paz em seus ouvidos, em meio a tantos outros ruídos.
Continuaram em uma caminhada árdua pela trilha pedregosa, entre as rochas pontiagudas repletas de ramos finos e arbustos espinhosos. Leovard ia na frente com a espada presa à cintura, seguido por Morda, segurando seu cajado de madeira, e Keren, envolta em sua capa, e atrás estava Jonas, protegendo a retaguarda. Keren guiava-os na direção que acreditava estar o que foram buscar, e Jonas torcia para que ela estivesse certa. Torcia para que voltassem logo para Beuha, torcia para que Leandro se recuperasse. Para que algo desse certo.
Ouviu um baixo cantarolar.
Morda.
Mais ar do que voz saia de sua boca, transformando a pretensa música em um arranjo de suspiros desengonçados.
Dois magos.
— Keren — chamou, e a fármo virou rapidamente o rosto em sua direção, voltando a olhar para frente enquanto andava.
— Pois não? — perguntou.
— Por quê chamou o Erik de mago?
— Ele é um mago, não?
Jonas franziu as sobrancelhas.
— Como sabe disso?
Jonas ouviu o suspiro aborrecido de Keren antes dela responder:
— Ele estava com exaustão de mana durante a luta com o javali, pelo que pude perceber. E ninguém passa tanto tempo absorvendo mana de gemas mágicas se não um mago, ainda que de modo tão tosco como seu amigo o faz.
— Tosco, o que quer dizer?
Outro suspiro, antes de Keren olhar mais uma vez para trás.
— Seria melhor perguntar a nossa maga — voltou a andar, dando as costas.
Morda parou seu murmúrio ritmado e olhou para Jonas e rapidamente desviou o rosto de volta para a frente, segurando o cajado junto ao corpo. Parecia distante desde que fora confrontada por Leovard.
Recomeçou a cantarolar entre suspiros.
— O que ela quis dizer — perguntou Jonas, finalmente.
— Não posso responder — disse Morda.
— Não? Mas você é uma maga, devia saber o que isso significa, né?
— Eu sou, e sei, mas não posso falar.
— Como assi… — Jonas dizia, quando ouviu um som distante.
Parecia semelhante ao farfalhar das folhas de uma grande árvore atingida pelo vento forte, porém de forma constante e ritmada. E então outro, agudo e estridente, como o grito de uma chaleira em ebulição, porém centenas de vezes mais alta.
Todos pararam ao mesmo tempo, procurando.
Jonas olhou na direção que ambos os sons vinham, para o distante tapete verde que se estendia próximo do limite do horizonte avistando no horizonte uma sombra entre as nuvens.
A princípio era do tamanho de um dedo, porém, momentos depois tornou-se tão grande quanto a palma de sua mão e depois maior, conforme se aproximava. Então saiu de entre as nuvens, batendo suas enormes asas e mergulhando cada vez mais baixo. Ainda estava longe, mas se aproximava rapidamente.
— Aquilo — Apontou com o braço, chamando a atenção de todos para a criatura alada acima.
— Escondam-se — bramou Leovard, e todos se jogaram por detrás de alguma rocha.
Jonas foi puxado por Morda para o meio de váios arbustos antes de ter qualquer reação, e lá ficou, tão próximo ao corpo da garota quanto podia estar.
Apesar disso, não teve tempo para pensar em qualquer outra coisa além do som das asas batendo e do clamor da grande ave, cada vez mais próxima. Ela passou por cima deles, a menos de vinte metros de suas cabeças.
Jonas teve uma breve visão sua.
Um bico da cor do cobre, preso a uma cabeça branca, erguida orgulhasa em um longo pescoço penudo, que se estendia até corpo marrom da criatura, que batia suas asas gigantes, planando pelos céus. Viu tudo rapidamente, mas de forma tão nítida que a imagem parecia colada na sua mente. E então ela passou.
Após segundos, escondidos entre os arbustos, Leovard instruiu que saíssem.
Jonas não o fez em um primeiro momento, ainda impressionado com a visão do animal, e só quando Morda o empurrou de volta para fora dos arbustos, ele percebeu sua situação.
Eles sairam, olhando para cima como se a ave ainda estivesse pairando sobre eles.
— Aquilo era — Jonas iniciou sua pergunta, mas a última palavra secou no fundo de sua garganta ao lembrar das garras do animal em suas patas.
— Era uma harpia — Leovard respondeu.

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