Capítulo 40 - Contar de gotas.
Ouviu um clamor distante. Agudo e estridente. A harpia parecia querer lembrar a todos que pudessem ouvir seu retorno ao monte. Como se a memória do ser cobrindo-os com sua grande sombra não fosse o bastante.
O grupo seguiu, mais atento aos céus do que antes.
Não viram sinais de outra harpia, nem Jonas ouviu outro grasnido de ave igual ou diferente a se aproximar. Ainda assim, apenas uma bastara para que o ritmo do grupo aumentasse pelo desejo de chegar até a caverna onde estavam as ervas matites e deixar logo aquele lugar.
Keren os guiava com gestos mais agitados do que antes por entre os rochedos acidentados. Leovard olhava para cima a todo momento, como se imensas garras fossem atacá-lo a qualquer instante. Até Morda parecia mais agitada, agarrada ao cajado, repetindo em voz baixa o mesmo cantarolar que entoava desde o dia anterior.
Um nervosismo que parecia também atingir o corpo de Jonas, que se concentrava em pisar no chão acidentado sem tropeçar ou fazer qualquer barulho alto demais.
Continuaram a subir, caminhando pelo que pode ter sido uma hora ou talvez duas, não podendo dizer devido a falta de visão do sol no céu nublado. E o monte se revelou maior do que parecia, mostrando-se um grande labirinto de pedras.
Passaram por entradas de cavernas e grutas, onde Jonas ouvia o constante gotejar de água e o guincho do que lá estava, e em nenhuma Keren prestou qualquer atenção. Ao ponto de Jonas perguntar se ela realmente sabia para onde estava indo. Dúvida essa que quase foi posta em palavras, um momento antes da mulher parar em frente a uma gruta aberta na rocha.
— Chegamos — anunciou Keren, virando o rosto para a entrada.
Parecia ter mais do que dois metros de altura, e quatro de largura, com pequenas estalactites se formando no topo da entrada. O cheiro úmido de lodo e barro parecia fluir de dentro para fora. Jonas ouvia dela os mesmos sons que ouvira em meia dúzia de outras.
— Como sabe que é aqui? — questionou ele.
A fármo o encarou, e Jonas lembrou-se o quanto ela detestava ser questionada.
— Segundo o que descobri, havia uma mancha vermelha nas estalactites do topo, como também nas que ficavam no solo — apontou e Jonas percebeu.
— “Sangue de pedra”. Ouvi muito disso do meu mestre — divagou Morda, estalando os dedos.
Jonas franziu as sobrancelhas
Lembrava de seu professor de geografia dizendo-lhe algo a respeito daquilo. Não lembrava ao certo o motivo, mas sabia que não tinha nada a ver com pedras sangrando.
— Agora, entremos de uma vez — bufou Keren, dando um passo e depois outro para dentro, mas sendo impedida por Leovard antes do terceiro.
— Deixe-me ver o que há lá dentro primeiro — instruiu ele retirando a espada de sua bainha, antes de entrar.
Jonas levou a mão até a sua, percebendo-a mais trêmula do que o comum.
Não entendia porquê, acreditava que não havia nada lá de acordo com o que percebia com seus ouvidos, ainda assim, sua mão não se acalmava. Segundos se passaram até ouvirem a voz de Leovard anunciar a segurança. Poucos, porém mais do que Jonas desejava. Então lá entraram.
A gruta afundava levemente dentro do monte, estendendo-se em uma escuridão mal iluminada pela esparsa luz do dia que descia pela entrada.
Cada passo era marcado por um som úmido dos pés pisando na rocha coberta por lodo barrento e escorregadio o suficiente para que o próximo som que Jonas ouvisse fosse o de Morda deslizando ao seu lado. Ele a ajudou a se levantar, enquanto ela reclamava do vestido sujo.
— Não teria escorregado se não usasse esses sapatos — criticou Leovard, lançando um olhar em direção a garota e depois pelo resto da caverna.
Morda apenas bufou, sem respostas além de uma expressão aborrecida. Ela olhou para Jonas.
— Meu vestido está muito sujo atrás? — Se virou, mostrando a parte com que havia batido no chão.
Jonas a olhou, mais do que o necessário para responder a pergunta.
— Está sim — disse, subindo os olhos e encontrando o rosto dela aborrecido.
— Uma bela desgraça. Terei de comprar outro — Morda se pôs a andar, parando após dois passos e voltando a olhar para Jonas. — Agradeço, aliás — disse e voltou a andar.
Jonas seguiu atrás, acompanhando-a e ao restante do grupo enquanto adentravam mais a gruta que se tornava mais e mais escura, de forma que Jonas conseguia ver pouco mais do que a silhueta de Morda à sua frente.
— Devíamos ter trazido alguma tocha — comentou.
— Morda — Leovard disse apenas isso e um segundo depois uma luz surgiu do cajado da maga.
Não era resplandecente e límpida como a de um farol, mas sim ondulante e quente, como a de uma fogueira. A caverna foi iluminada em diferentes tons de vermelho, amarelo e laranja, como em um quadro que Jonas vira certa vez em seu livro de história.
Morda segurava-o de forma quase ordinária, olhando com certa concentração para o cristal flamejante brilhando na ponta. Ela movia os lábios devagar, cantarolando aos sussurros uma melodia diferente da que sempre entoava.
A luz tornou-se cada vez mais clara, até se ajustar em um tom de amarelo quase branco.
A memória do cavaleiro acendendo fogueiras com uma pedra luminosa veio à mente de Jonas, entristecendo o suficiente para não sentir-se maravilhado ao observar a garota.
— Conseguirá achar as ervas? — perguntou Leovard, sem precisar especificar quem deveria responder.
— Se ela estiver aqui — respondeu Keren sem virar o rosto ou parar de andar pelo úmido.
— Pensei que essa fosse a caverna certa — indagou Jonas com uma pontada de preocupação.
— Não sei quantas cavernas há com manchas vermelhas por aqui, então não me surpreenderia se não fosse essa.
— De todo modo — interrompeu Leovard —, rezemos para que seja.
O cantarolar da maga continuou e a luz foi tornando-se cada vez mais escura e fria.
— Pelo amor dos deuses, garota, deixe essa luz como estava — berrou Leovard e Morda parou de cantar por um momento e então retomou, parando novamente pouco depois.
A luz voltou a coloração inicial, e todos se calaram, para o alívio de Jonas. As vozes pareciam ganhar volume ecoando naquele ambiente fechado. Um alívio que em nada o acalmou, pois ainda temia que Keren lhe virasse o rosto e dissesse “Não é essa”.
Preocupação dissipada quando a fármo ajoelhou-se em uma parte do chão cavernoso coberta por brotos verdes. Arrancou um do solo e o trouxe para junto a luz no cajado e Morda, examinando-o. Ela tirou de sua capa uma folha de papel amarelada pela luz, com um desenho de planta pintado.
— É essa? — Jonas perguntou.
— Aparentemente — respondeu em um tom que não agradou os ouvidos de Jonas.
— Aparentemente?
— Se puder dar mais certezas, pode verificá-lo, se desejar — Ela gesticulou para que Jonas pegasse a erva em sua mão.
Jonas estreitou os olhos e sentiu o calor subir do seu peito ao rosto, mas antes que o transformasse em palavras, Leovard interviu.
— Creio que queremos todos sair daqui, então o quanto você acredita que isso seja o que viemos buscar?
— Tenho uma boa certeza, mas só poderei dizer quando voltarmos a carroça e eu poder dissolvê-las — explicou Keren, arrancando uma folha do broto.
— Ótimo, então. Não? — Leovard olhou para Jonas.
— Tá certo, então — murmurou, cruzando os braços.
Keren voltou para junto aos brotos, colocando-os em sua bolsa.
— Então, vamos trabalhar também — Leovard atirou para Jonas um saco de pano. — Pegue o couber aí.
— Precisámos de tantos? — Jonas ergueu uma sobrancelha
— Alguém na cidade vai precisar — insinuou Leovard e Jonas acenou com a cabeça, compreendendo.
Haviam vários amontoados de brotos e outras plantas espalhados pelo chão, laterais e até pelo teto da caverna.
Jonas, Keren e Leovard se puseram a arrancar os brotos no chão, sem fazer muita diferenciação se era ou não o que queriam. Keren os separaria depois.
Estavam presos às rochas, de forma que a raiz permanecia lá quando o resto da planta era puxado. Lembrando Jonas dos matos que cresciam nas calçadas e meio fio de sua rua.
Morda parecia satisfeita em apenas iluminar o local, mantendo as mãos distantes do lodo e do barro.
Após certo tempo, o saco de Jonas estava metade cheio e os nós de seus dedos, doloridos.
— Acho que já está bom, né? — perguntou em tom de sugestão para Leovard, que olhou pelas laterais da caverna, onde ainda havia alguma cobertura verde, e por um momento Jonas temeu que ele dissesse para continuar.
— Se assim preferes, paramos por aqui — disse o cento, para alívio de Jonas.
Caminharam de volta à entrada da caverna, quando Morda fez a luz diminuir até extinguir-se por completo, deixando-os apenas com a proveniente do dia. O suficiente para poderem enxergar.
Eles saíram.
Era o suficiente.
Estavam com a erva matite e era suficiente.
Podiam sair daquele lugar. Podiam se despedir dos centos. Podiam retornar a Beuha. Podiam salvar Leandro e acalmar Graça. Era suficiente.
Morda começou seu baixo cantarolar, mas então parou.
Não, não era ela que havia parado, mas outro som que havia começado. Outros sons. Altos, agudos e estridentes, abafados e próximos.
Jonas tapou os ouvidos, enquanto os outros olharam ao redor.
— Que merda está a acontecer? — clamou Leovard em completa confusão.
Então escutou-se um bater de asas, semelhante a multidão de pombos que levantava vôo da praça a cada vez que ele passava correndo entre eles quando criança. Porém acompanhado do estridente som de crocitar agudos e estridentes.
Olhou para cima, vendo as grandes sombras entre as nuvens. Alçando vôo. Procurando. Encontrando-os.

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