Capítulo 5 - Uma prece.
O som de um chicote estalando ressoou pelo ar, seguido do zurrar do pobre jumento. A carroça se moveu mais depressa, sendo seguida por mais meia dúzia de outras quase idênticas a ela. Rodas a ranger, animais a murmurar e homens de barriga estufada a guiar as rédeas, praguejando e reclamando em voz alta da demora dos que estavam à frente.
Júlia estava debruçada sobre a amurada da casa de Thierry. Observava a cena com uma graça nos lábios, notando que essa era a coisa mais parecida com uma discussão de trânsito que veria naquele mundo. O pensamento a divertiu, distraindo-a. Ela tentava se distrair de qualquer forma.
As carroças distanciaram-se, prosseguindo lentamente pela estrada de terra em direção ao vilarejo. Era um misto de comitivas. Cada uma carregava uma grande carga, de variadas naturezas. Julia reconheceu as que levavam legumes, madeira e cereais. Iriam guardá-los nos depósitos protegidos da morada do prefeito.
Outras traziam carregamentos de produtos feitos em vilas vizinhas: queijos, carnes e peixes. Comida que o cavaleiro mandara trazer para os preparativos do festival de outono.
O festival deixará a cidade em animada agitação. Uma visão um tanto estranha depois dos acontecimentos no mês anterior.
Os enterros, os lamentos, os mortos.
Julia lembrava vividamente do acampamento mórbido. Da tristeza, dos feridos e da escuridão que o revestia. Uma sombra viva que parecia crescer a cada último suspiro dado por alguém. Ainda a via vez ou outra próxima a alguém. Acompanhava-os como uma segunda sombra, e em alguns casos parecia maior a cada dia.
Pensava no que podia ser, mas tinha medo da resposta. Podia perguntar a coisa dentro de si, mas Júlia sabia que não teria respostas satisfatórias.
Lembrava da sombra revestindo a Eduardo como um cobertor e do medo que sentiu ao vê-lo quase sem vida.
Lembrava da voz. A voz familiar de mil conhecidos falando as palavras de um ser desconhecido. Um ser que salvara Eduardo e afastará a sombra.
“Eu sou uma memória”, a coisa havia dito. Uma que Júlia não poderia esquecer, mas gostaria. Gostaria que tudo aquilo fosse um sonho e que quando acordasse, estivesse em sua cama, no quarto em que crescera. Desejara isso tantas vezes pela manhã que os sonhos com seu mundo se tornaram em fantasias doentias feitas pela coisa que neles habitava.
As carroças sumiram de sua vista e o vento soprou forte em seu rosto. Seu corpo tremeu de frio e Julia semicerrou os olhos devido à poeira trazida, mas manteve-os abertos. Queria ver o espetáculo que se formava quando ele batia nas árvores arrastando as folhas e fazendo-as voar pelo ar em uma dança rodopiante. Dezenas de árvores – centenas de folhas alaranjadas – dando cor ao céu cinzento.
— Parece que vai chover — Uma voz familiar disse atrás de Júlia, que se virou em espanto.
Desde que “A voz” falara com ela em pleno dia, Julia desconfiava de seus ouvidos.
Eduardo pareceu notar sua surpresa, ao que lhe lançou um olhar confuso e estancou no meio da caminhada.
— Calma, tá tudo bem? — perguntou ele com um sorriso embaraçado, tornando a andar mais cautelosamente.
Julia lambeu os lábios, como se isso fosse ajudar a responder.
— Não é nada, eu apenas estava pensando.
— Em que? — Ele perguntou, se pondo na amurada e ficando ombro a ombro junto dela.
Julia sentiu o coração bater mais forte quando seus corpos se tocaram – mesmo de lado. Olhou para o rosto dele, vendo a cicatriz em seu lado direito. Tomou ar antes de voltar a falar.
— Não sei, eu… faz o quê? Três, quatro meses desde que chegamos aqui?
— Algo assim — Eduardo respondeu, sua voz saindo como um sussurro.
Julia pensou no que dizer, mas seus lábios não formaram palavras. Não sabia expressar o que sentia.
— É algo sobre seus sonhos? — Eduardo perguntou.
Julia encarou seus olhos preocupados.
— Faz tempo que não tenho nenhum — respondeu ela, sua voz saiu em um tom cansado.
— Talvez só os tenha esquecido.
— Bem que eu queria.
Após despertar, ela havia contado a ele e aos outros o que acontecera naquele dia. Sobre a memória, sobre os sonhos que teve, sobre a sombra, e sobre as chaves.
Por algum motivo lembrava claramente de cada uma delas e as descreveu para todos da melhor forma que pôde, irritando-se com as insistentes perguntas de Theo.
— E é isso que te preocupa? — Eduardo tocou sua mão. Ela sentiu o seu calor, relembrando o quão frias estavam quando ele jazia acamado no acampamento.
Julia balançou a cabeça, negando.
— Na verdade eu nem sei o que é — Ela sentiu-se constrangida. Não sabia dizer o que sentia.
Deveria estar feliz por Eduardo e todos estarem bem depois de tudo o que passaram – e ficou, mas o pesaroso sentimento em seu peito não passava. E havia tantos motivos para senti-lo que ela não sabia em qual deles pensar.
— Não faz sentido, né? — pontuou ela, rindo de si mesma.
Eduardo a encarou por um momento – aqueles olhos claros refletindo a vida que quase se extinguira – e então ergueu a cabeça em direção ao céu nublado, tornando a falar:
— Não sei, acho que o que sentimos não precisa fazer sentido. Nem vale muito a pena pensar sobre isso. Estamos bem, apesar de tudo, então que tal se concentrar nisso? — Eduardo sorriu de forma calorosa, da forma que apenas ele conseguia fazer.
Um sorriso que Julia desejava ser a única pessoa a ver.
— Você quase morreu — replicou ela.
— E você me salvou, pelo que eu entendi.
— Não fui eu.
— Mas foram as suas mãos — Eduardo pôs as dele sobre as dela. — Eu te disse que me esforçaria por nós, e é o que vou fazer. É uma promessa — Ele afirmou, e ela percebeu que isso era parte do que a deixava ansiosa.
Não desejava que ele se arriscasse por ela. Não desejava vê-lo novamente às portas da morte. Não desejava que a sombra o tomasse. Mesmo assim ela sorriu e não lhe contou nada disso.
Uma brisa forte soprou. Júlia se inclinou para frente, seus lábios tocaram os dele, as folhas caídas lhe roçaram a pele. Os cabelos esvoaçavam ao vento, os pássaros cantavam nos galhos e tudo que ela sentia e desejava sentir era a respiração de ambos unidas.
Os dois se aninharam – o braço de Eduardo sobre os ombros de Julia – sentindo o calor um do outro, até que Julia percebeu, com um espasmo, algo peludo a se esfregar em suas pernas. Olhou para baixo, vendo dois gatos magrelas se juntando ao abraço. Um tinha uma estufada pelagem laranja, com olhos verdes como abacates maduros. O outro possuía um ralo pêlo de cor clara, com orelhas, rosto e patas escuras. Seus olhos eram de um azul profundo como o mar aberto.
Os dois olharam para cima e miaram com sons doces. Julia se agachou e esfregou-lhes a cabeça, deslizando as mãos até suas costas. Sentiu um fulgor no peito. A quanto tempo não alisava gatos?
— Acho que já vi esses carinhas enquanto treinava com Caio e Thierry — Eduardo estendeu sua mão com a palma aberta e a aproximou lentamente dos bichos.
O preto saltou para agarrá-lo, mordendo-lhe os dedos. Eduardo fingiu lutar e enforcá-lo, e o gato saltou para longe, retomando o ataque logo em seguida. Julia riu e por um segundo esqueceu de tudo que a preocupava. Apenas aproveitou a pequena paz que aqueles animais traziam.
Após alguns momentos, os gatos desapareceram por cima da amurada e Júlia e Eduardo entraram na casa.
Roque limpava as cinzas da lareira e Letícia cortava legumes na cozinha. Thierry estava em seu escritório, como sempre. A casa parecia um tanto vazia e silenciosa. Havia dois motivos para isso
O primeiro deles era que Caio ainda não havia chegado do serviço.
Após a excursão de ataque da guarda aos ursos, muitos dos homens feridos na missão haviam recebido o direito de se recuperarem em casa – direito que tanto Eduardo quanto Caio poderiam usufruir, ainda que Caio não estivesse propriamente machucado. E por isso ele decidira continuar se apresentando em seu posto de guarda, retornando todo final de tarde.
O segundo motivo era mais incômodo para todos. Théo e Carmen haviam sido expulsos.
Fora um choque para Julia descobrir isso após despertar de seu coma, mas Thierry os puniu pela invasão ao seu escritório dessa forma. Aparentemente Théo assumiu toda a culpa, mas Carmen recebeu sua parte por ter apoiado a ideia. Eduardo não acreditará ao saber e não reagirá muito bem, ao menos com Théo.
Thierry os havia poupado pois segundo ele, Caio e Eduardo não tinham culpa, e Julia e Letícia já haviam recebido sua punição nos dias que ficaram em coma. Ainda que Julia sentisse algo estranho na forma do velho homem a olhar.
Tentaram convencê-lo do contrário, mas Thierry lhes respondeu com uma teimosia irredutível, que quase se transformou em uma raiva cansada, e o assunto fora deixado de lado.
Uma coisa, no entanto, chamou a atenção de Julia. Mesmo tendo os expulsado, Thierry fez questão de conseguir cantos para eles ficarem. Carmen passou a morar na casa de uma das costureiras do ateliê em que trabalhava e Théo dormia no moinho, junto aos sacos de grãos do moleiro, que era grande amigo do velho homem.
A rotina da casa mudou desde então. Julia e Letícia não mais levavam roupas até o poço para lavarem, ao invés disso, ajudavam Roque nos afazeres da casa. Eduardo ajudava Thierry em qualquer trabalho que exigisse esforço físico e Caio fazia qualquer coisa que lhe pedisse.
Eles ainda se reuniam, mas não com a mesma frequência com que faziam todas as noites. Caio se encontrava com Théo outra voltando do campo vez ou outra e lhe contava como as coisas estavam indo, e Carmen o esperava na entrada do vilarejo todos os dias, apenas para trocar palavras desanimadas até os dois se separarem.
Julia se perguntava se isso atrapalharia os planos que foram feitos antes do ataque aos ursos. O de irem embora.
Eduardo foi até a sala da lareira para trocar palavras com Roque e ajudá-lo no serviço, e Julia seguiu para o quarto, que agora dividia somente com Leticia. A meio caminho do seu destino, ela ouviu o som de uma porta sendo aberta de forma abrupta, e uma voz grave, calma e ao mesmo tempo volumosa a chamou. Júlia virou-se, olhando para trás, e encarou o nada por algum tempo. Então a voz a chamou novamente e ela teve certeza de que era da pessoa a quem parecia. Caminhou em sua direção, dobrando o corredor com rapidez.
— Sim? — disse quando avistou Thierry parado com a mão estendida segurando a maçaneta da porta aberta do escritório.
— Olá, minha cara. Por favor, venha aqui — Ele falou com o sorriso acolhedor que um avô mostra para seus netos.
Julia se aproximou e Thierry estendeu a mão para dentro do escritório.
— Entre — disse ele.
Ao ouvir isso, Julia piscou os olhos e sentiu o estômago gelar por algum motivo, mas obedeceu. A luz da tarde iluminava o cômodo, e Julia olhou com mais atenção o lugar que invadira na noite em que tudo dera errado. As estantes de livros pareciam maiores e os frascos de vidro jaziam sujos de alguma mistura. As bandejas nas mesas do canto em que batera a cabeça estavam cheias de folhas amassadas e flores picotadas. Percebeu que as pedras nos cantos estavam cinzentas, não exibindo o mesmo brilho alaranjado de outrora.
Thierry fechou a porta, passou por Julia e sentou-se atrás da mesa de frente para a porta. Julia permaneceu em pé olhando para ele, até ser ordenada a se sentar. Ficou um pouco abaixo de seus olhos, sentindo-se pequena frente ao homem corpulento a sua frente. Notou então mais uma vez a vela apagada. Algo dentro dela se remexeu e seus pelos se eriçaram.
— Quero falar contigo a um certo tempo, Julá — Thierry disse em um tom paternal.
Julia lambeu os lábios e sentiu a respiração mais curta.
— Sobre o quê, exatamente? — Sua voz tomou um involuntário ar de formalidade.
Thierry tomou ar, respirando fundo, e olhou para o lado com um rosto pensativo. O homem não parecia nervoso ou irritado. Parecia o mesmo senhor gentil e compassivo que os acolhera naquele dia às margens do rio. Naquele momento, no entanto, algo nele deixava Julia inquieta.
— Lembra daquela prece que fez quando Letícia se machucou? Foi a São Lázaro, creio — disse ele, tornando a olhar para ela.
Julia ergueu uma sobrancelha, buscando o momento em sua memória. Ocorrerá-lhe tantas coisas, pensara em tantos problemas e estivera em tantos lugares dentro de sua própria mente que não encontrara essa pequena lembrança em meio às demais.
Thierry pareceu entender que ela esquecera.
— Lembro de ter ouvido as suas palavras — Ele começou a falar —, e depois de lhe ter dito algo em seguida. “São Lázaro deve ser muito próximo a Ellday”, creio ter dito, “pois nunca vi nenhum homem ser curado por magia ou pela prece dos santos”.
Julia sentiu sua mente deslocada, flutuando como um navio à deriva em mar aberto. Não sabia que rumo a conversa tomaria e Thierry tão pouco parecia demonstrar qualquer emoção além da calma típica. Ela sentia apenas um desconforto que não conseguia entender. Um desconforto que apenas aumentava ao ver a voz calma do velho homem.
— Era nisso que acreditava — Ele continuou. — No entanto, tal crença foi quebrada há apenas algumas semanas.
Thierry fez uma pausa e o quarto ficou subitamente silencioso. Não podiam sequer ouvir os sons do restante da casa.
— Deves saber que, embora eu não faça questão de tal, o povo desse vilarejo vê a mim como alguém digno de histórias. Das quais algumas são mentiras, e outras, exageros. Mas se há verdades em meu passado em que eu possa ter a vaidade de me orgulhar em saber é a arte medicinal dos fármos, a que uso como um dom divino de Ellday. E com isso em mente, devo dizer que sei bem quando um homem a quem trato pode ou não ser salvo de qualquer chaga. E Eduardo não podia — disse em um tom gélido.
Seus olhos se fixaram nos de Julia que se remexeu desconfortavelmente. Parecia que a cadeira estava cheia de tachinhas.
— O que estou dizendo é que, deixei aquela tenda pensando em enterrá-lo no dia seguinte. Sentindo profunda tristeza ao pensar que essa seria a última vez que a senhorita falaria com ele, visto o que existe entre vocês dois.
Julia poderia ter corado, mas a situação a oprimia de tal forma que não sentia vergonha nas palavras de Thierry.
— Eu deixei-a lá, e então quando ouvi seu grito, pensei que o jovem havia partido. Pensei que iria encontrá-lo morto contigo agarrada junto ao seu pescoço, chorando. Mas não — Sua voz ganhou volume e força — O que vi foi ele com a cor de volta ao rosto, as feridas saradas e um olhar firme. E junto a cama eu lhe vi. E tu tinhas traços de algo que conheço como ninguém. Esgotamento de mana. Então ouça minha pergunta, Julá, e pelo respeito que tem por mim e amor que sente por Eduardo, responda bem: o que houve naquela tenda?
Julia sentia-se zonza. Sua mente estava em branco. As memórias da sombra, da voz, e do sonho retornaram, todas ao mesmo tempo.
“Magia…”
“Memória…”
“Prece…”
Ela abriu a boca e sua voz pareceu espremer-se em sua garganta.
— Eu rezei — disse, a voz fraca quebrando-se como uma onda na areia. — Rezei para que Eduardo vivesse, para que fossemos pra casa juntos, para que o pesadelo acabasse. — Lágrimas escorreram-lhe pelas bochechas até o queixo. — Então alguém apareceu. Só consigo dizer até aí.
Balançou a cabeça de um lado para outro, como se isso fizesse as memórias sumirem.
— Quem? — perguntou Thierry.
Julia encarou seu rosto, vendo nele pela primeira vez uma expressão de perturbação. Como ela explicaria?
— Um deus, talvez — disse, lembrando-se do terrível sorriso que a Voz lhe dera.
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