Índice de Capítulo

    A chuva sazonal regava os campos e revestia o mundo com um denso véu branco até onde a vista alcançava. O cheiro de terra molhada subia até as narinas de Eduardo, causando-lhe uma sensação mista de incômodo e familiaridade. Uma sensação que o fazia lembrar dos dias de inverno em seu mundo. Uma sensação que não queria esquecer.

    Ele se voltou para dentro do moinho, passando os olhos para as sacas de grãos empilhadas, o feno espalhado pelo chão e as goteiras que molhavam o piso, então os parou no garoto sentado no topo da pequena escadaria que levava ao primeiro andar.

    Theo não havia dito uma palavra desde que Eduardo chegara – e o mesmo também não, permanecendo ambos em silêncio. A pouca luz que clareava o interior do moinho dava forma apenas ao contorno do corpo de Théo, tornando impossível ver seu rosto, mas Eduardo imaginava como o amigo devia se sentir, e esperava que ele realmente estivesse assim. Torcia para que ele se envergonhasse, pois seria mais fácil perdoá-lo assim.

    Olhou novamente para fora, procurando qualquer silhueta a vagar na neblina formada pela chuva. O “novo moinho”, como era chamado, funcionava a partir do vento, utilizando uma hélice no topo da estrutura. Fora feito no alto duma colina, de forma que dava uma boa visão dos arredores. O que significava que Eduardo conseguiria ver qualquer um que se aproximasse. E naquele momento ele não via ninguém.

    Imaginava se Caio simplesmente não desistiu do encontro e fora para casa, ou se preferiu pernoitar no castro e evitar se molhar na chuva indo a qualquer lugar. As ideias cresciam em sua mente quanto mais ele olhava para o dilúvio à sua frente. Ideias que se transformaram em pensamentos.

    Sobre Julia, e nos sonhos que a assombravam. Em Theo e nas palavras inevitáveis que ambos estavam prestes a trocar. Na estranha sensação em lembrar de sua quase morte. E além disso, na oferta que lhe foi oferecida logo depois.

    Então seus olhos foram atraídos por algo diferente do que procurava.

    Uma luz no céu atraiu sua atenção. Um raio azulado que dilacerava as nuvens como uma cicatriz, existindo por menos de meio segundo e então desaparecendo. Eduardo contou até seis e o estrondo do trovão alcançou seus ouvidos. Um rugido alto e violento; como o grito de ódio de uma besta perante a morte. Algo que ele se recordava bem.

    Eduardo continuou a fitar os céus, esperando por outro acontecimento semelhante, mas a única visão que permaneceu foi a da impassível chuva a se derramar.

    O marasmo tomou conta novamente e ele rolou os olhos para baixo.

    Então viu algo a se mexer pela estrada que levava ao sopé da colina em que o moinho ficava. Um “homem-menino” trajando a armadura da guarda, arrastando os pés na lama.

    A luz já começava a desvanecer quando ele chegou ao topo.

    Caio entrou no moinho, retirando o capacete e limpando o rosto encharcado com mãos mais encharcadas ainda.

    — Porra, tem ideia de como é difícil andar com isso na chuva? — reclamou dando um tapa no capacete.

    — Por que não tirou então? — Eduardo perguntou, curioso com a resposta.

    — Achei que não ia me molhar no início. Aí quando percebi que me molhava de todo o jeito, tirei. Só que eu me cansei de carregar na mão e pus de volta na cabeça — Jogou a peça de vestimenta junto a algumas sacas de trigo. — E então?

    Caio olhou em volta e Eduardo apontou para cima para cima, direcionando-o.

    — Ei, tá pensando que é o Drácula ou o Batman? Desce pra cá — chamou Caio, e Théo cautelosamente o fez, com passos lentos e metódicos.

    Quando chegou no sopé da escadaria, sentou-se e permaneceu em silêncio. Finalmente Eduardo viu seu rosto – uma amuada expressão de desconforto.

    — E então, do que vamos conversar? — Caio perguntou, aos dois aparentemente.

    — A Carmen não veio por quê? — Theo inquiriu.

    Caio deu de ombros.

    — Eu fui vê-la, mas ela olhou pra cima e disse “não”.

    Eduardo não se surpreendeu. Por algum motivo sabia que a garota agiria assim.

    — Hum, acho que é melhor assim — ponderou Théo.

    — Por quê? — Eduardo perguntou.

    Théo o encarou e então baixou o olhar.

    — Assim podemos falar com mais calma sobre como as coisas vão ser — explicou.

    Eduardo levantou uma sobrancelha.

    — Não entendi.

    Théo respirou fundo e então tornou a falar.

    — As garotas ficam nervosas e impacientes muito rápido, e eu mal consigo falar na maioria das reuniões.

    — Mas você é quem mais fala — acusou Caio com um sorriso sarcástico.

    Théo virou-se para ele visivelmente ofendido.

    — Por que sou sempre interrompido por elas. Além do mais, nenhuma delas leva tudo isso completamente a sério — declarou ele.

    — Elas levam a sério, por isso ficam sempre nervosas. Querem ir pra casa — Eduardo apontou.

    Théo se voltou para ele e depois fugiu de seu olhar mais uma vez.

    — Eu sei, mas não podemos fazer isso. Pelo menos não tão cedo, se o que a Julia falou for verdade — afirmou ele.

    Eduardo dobrou os lábios e sentiu como se estivesse a mastigar cada palavra dita ao responder:

    — Não tem motivos para não ser — Sua voz saindo mais dura do que pretendia, o que fez Théo se surpreender.

    — Eu sei, não disse que não era.

    Após um breve silêncio permeado pelo embaraço, a voz de Caio se fez ser ouvida.

    — Tá e daí? Para de ficar dando voltas e explica o que isso quer dizer — exigiu.

    Eduardo suspirou e fez para que Théo prosseguisse – o qual limpou a garganta e retomou a palavra.

    — Ela disse que sonhou com as chaves.

    Eduardo engoliu em seco ao ouvir aquelas palavras serem ditas.

    — O bicho que ela vê nos sonhos mostrou como elas são, mas ainda não sabemos onde elas estão. Então nosso problema principal ainda é o mesmo. Não sabemos para onde ir.

    — Mas isso facilita a procura delas, não? — Caio se interpôs.

    — Sim, mas continuam sendo cinco objetos em um mundo inteiro que, até onde sabemos, é maior do que o nosso.

    Eduardo tomou um tempo para refletir essas palavras enquanto Caio e Théo discutiam entre si. Até que um pensamento lhe veio à cabeça. A sala dos baús, as dezenas de pessoas entrando nos portais.

    — Mas não somos os únicos procurando por elas, né?

    Os outros dois cessaram sua discussão e focaram em sua direção. Théo novamente baixando seus olhos ao fitar os de Eduardo

    — Sim, é verdade — respondeu ele, coçando os rosto virado para o chão. — Mais gente veio para cá além de nós, se o que o deus lá falou foi verdade.

    — Cara, deixa de ser estraga prazeres, tu bota “se” em tudo — reclamou Caio.

    — Eu não boto “se” em tudo, apenas os aponto — Théo se justificou, abrindo os braços em um gesto de revolta.

    Eduardo passou a mão no rosto, inspirou profundamente e então começou a dizer:

    — Então “se” o que a coisa falou e mostrou pra Júlia for verdade, “se” o deus nos enviou junto com os outros pro mesmo mundo como também havia dito, “se” as chaves tiverem mesmo aqueles formatos, o que fazemos agora?

    Theo finalmente olhou em seus olhos sem fugir de seu olhar.

    — Não acho que eu deva decidir — disse com tons de amargura na voz.

    Eduardo se surpreendeu levemente. Caio cruzou os braços.

    — Eu fodi com tudo. Decidi invadir o quarto do Thierry enquanto vocês estavam fora e deu uma merda lá. E então tudo aconteceu — Ele fez uma pausa e começou a encarar as próprias mãos, que jaziam juntas sobre a cintura — Eu não quero me sentir responsável pelas coisas assim. Não mais.

    — Entendi — Eduardo disse com um suspiro.

    Caio se aproximou de Theo e colocou a mão em seu ombro em um gesto consolador.

     — Acho que o que tínhamos discutido antes ainda vale — ponderou Eduardo.

    — Sobre o quê? — perguntou-lhe Caio.

    — Deixar essa vila e seguir viagem — Eduardo comentou.

    Theo e Caio trocaram olhares e então encararam Eduardo.

    — Então, vamos mesmo recusar a oferta do sir Alóis? — Caio perguntou em um tom desanimado.

    Theo ficou em silêncio. Eduardo não havia lhe dito nada, mas tinha certeza que ele sabia.

    — Nunca me passou pela cabeça aceitar ela. Só iríamos nós dois, e o resto? Ficariam aqui por sabe-se lá quanto tempo enquanto estivermos longe?

    “E Julia ficaria sozinha enquanto me arrisco novamente.”

    Caio abriu a boca, mas nada falou. Theo engoliu em seco e esfregou a lateral do nariz com as costas da mão.

    — E quando iremos? — perguntou fixando um olhar sério em Eduardo, que se voltou pensativo para a chuva do lado de fora.

    Imaginava ser difícil viajar em meio a chuva constante. E pior ainda no inverno quando a neve caísse. E se não chegassem a outra vila antes dele…

    Um vento frio soprou do lado de fora e todos se enrijeceram ante ele.

    — Depois do inverno — anunciou Eduardo, aquecendo-se, com os braços em volta do corpo.

    — Ainda vai levar um bom tempo então — observou Caio, demonstrando um certo alívio.

    — E para onde iremos? — A pergunta veio de Théo, que esfregava as mãos uma à outra.

    — Para a vila mais próxima, e de lá a gente vê. Não é como se tivéssemos um destino em particular.

    “E o problema é esse, não é?”

    Théo concordou e Caio não se opôs, e assim decidiram. Sem as meninas.

    Após algum tempo e uma contínua conversa sem qualquer propósito, a chuva cessou e Eduardo e Caio se despediram de Theo.

    A luz diminuía no horizonte conforme seguiam na estrada enlameada. Caio seguia contando sobre o seu dia no regimento e Eduardo alimentava o assunto com qualquer pergunta que lhe viesse à cabeça. Sentia-se cansado da conversa a algum tempo, mas o silêncio o incomodava ainda mais.

    Mesmo em meio a escuridão, ele não pensava estar perdido – seus pés seguindo o caminho sem duvidar para onde iam. Seguiram a estrada em meio à escuridão, vendo apenas algumas luzes de brilho fosco à distância, a qual Eduardo cria ser o vilarejo. Pareciam dezenas de olhos a espreitá-los através do breu desconhecido. O que o fazia lembrar daquela primeira noite naquele mundo, e dos monstros que vieram após ela.

    Ainda estavam lá, ele sabia. Vigiando, aguardando. Prontos para atacar a qualquer momento qualquer um que estivesse tão desavisado como eles estavam naquele segundo dia. Algo que Eduardo não queria nunca mais estar.

    Em pouco tempo eles haviam chegado a casa de Thierry, onde viram o velho homem a esperá-los, sentado em frente à porta em uma cadeira de madeira pintada de branco. Ele mantinha as mãos ocupadas descascando uma maçã mais amarela do que vermelha.

    — Demorastes hoje — observou ele.

    — Sim, é que nos encontramos no caminho e decidimos dar uma volta — Eduardo comentou de forma casual.

    — Vejo — replicou Thierry em um tom quase cínico. O que fez Eduardo erguer uma sobrancelha.

    — Havemos de jantar e então todos nós conversaremos — O velho homem se levantou. A cadeira rangendo levemente.

    — Conversar sobre o quê? — perguntou Caio.

    — Em breve vós sabereis — Thierry respondeu entrando na casa.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota