capítulo 66 - O calor da noite.
O vento batia forte contra a bandeira de sir Alóis, fazendo os machados coroados tremularem no alto da fortaleza.
Dezenas de homens vestidos em armaduras de couro e ferro estavam enfileirados em frente ao portão, esperando pelas ordens do cavaleiro.
Ele, montando um garanhão cor de vinho, trajando uma armadura de placas cor de bronze com dois machados negro e uma coroa invertida no peito, falou algumas palavras de incentivo e mandou a todos que marchassem pela vila até o portão principal. Eduardo podia ouvir as vozes do outro lado dos muros, onde centenas esperavam para ver o desfile que em breve ocorreria. E Eduardo faria parte dele.
Os portões se abriram, a coluna passou por ele, e a imagem que Eduardo observou parecia algo saído de uma história de fantasia. Em ambos os lados da rua poeirenta, da fortaleza até o portão principal, haviam pessoas, homens, mulheres, crianças e velhos, aplaudindo e dando vivas. Segurando pequenas bandeiras com os machados adornados com uma coroa invertida do cavaleiro. Em alguns lugares era possível ver outra bandeira.
Com exceção do sol, que se mantinha escondido por um véu de nuvens acima, toda a vila e redondezas parecia ter comparecido.
Eduardo lembrou-se de cenas que vira na televisão, onde torcedores fanáticos esperavam por seus times em aeroportos, na expectativa de ver os jogadores de perto.
Mas os “jogadores” ali, eram soldados, ou deveriam ser. E o jogo era uma batalha contra criaturas bestiais, das quais Eduardo não guardava nenhuma boa lembrança.
A coluna marchava de forma rítmica. Cavaleiros liderados por sir Alóis Belanger, seguidos por lanceiros, na qual Eduardo se encontrava, e então pelos besteiros, onde Caio devia estar. Por último vinha a parte menos impressionante. Os burros de carga que traziam mantimentos em carroças.
Seria uma viagem de pelo menos dois dias em mata fechada, de acordo com os batedores enviados. E por isso foram disponibilizados alimentos para toda a força.
O prefeito observava a marcha em um lugar de honra no alto de um estrado. Eduardo viu duas bandeiras hasteadas acima dele. Uma continha os já conhecidos machados coroados do cavaleiro. Já a outra representava uma serpe vermelha sendo atravessada por uma lança verde em um campo dourado. Ao olhar mais atentamente percebeu as mesmas cores em bandeiras que alguns dos espectadores balançavam em suas mãos.
Ao invés de um desfile militar, decidiu comparar aquilo a um desfile político, com quem quer que fosse o lorde que aquela bandeira representasse, como candidato.
Eduardo viu outros rostos conhecidos dos homens com que convivera enquanto trabalhava com os lenhadores. Paul com seu rosto austero junto de sua mulher e filhos. Manon, que conversava e ria junto de outros de seu grupo. E então viu Pierce junto de uma mulher baixinha que não parecia ter mais de vinte anos. Possuía um rosto redondo, com duas tranças caindo por seus ombros até o pequeno busto, com uma evidente protuberância na barriga, a qual suas mãos não paravam de afagar.
Viu Júlia em meio a multidão, ela parecia procurar por alguém. Eduardo sorriu por saber que era por ele. Ele acenou em sua direção, sendo repreendido por um dos companheiros ao seu lado, e então abaixou o braço. Era surpreendente as noções de protocolo que a nobreza daquele mundo dispunha, com o cavaleiro levando em conta cada movimento e seus homens em ocasiões formais como aquela.
Ele viu Theo, Carmen e Leticia, e então Thierry, que o olhou nos olhos, encontrando-os sem nenhuma dificuldade. Um estranho arrepio lhe sobreveio. Por um momento lembrou-se do momento em que se viu refletido no olhar do urso. O sorriso caloroso que o homem deu pareceu dissipar essa sensação. Eduardo respondeu sorrindo da mesma forma. Devia-lhe toda a gratidão do mundo.
A coluna avançou até a saída da vila. Sentiu o vento bater mais forte contra eles em campo aberto. O frio se espalhou por sua armadura de couro e malhas de ferro. Seguiram pelo caminho do campo, mantendo o ritmo de marcha enquanto alguns agricultores, que permaneceram nas plantações, os observavam de longe.
Apenas depois de estarem escondidos pelas árvores de um dos bosques que circundam o vilarejo, a tropa pode caminhar à vontade, obviamente mantendo a formação.
Os homens começaram a conversar de forma descontraída enquanto avançavam pela estrada, saindo da área conhecida de Eduardo e distanciando-se cada vez mais da vila. Não podiam ver o sol, então Eduardo não sabia dizer por quanto tempo andaram, mas em certa altura a coluna abandonou a estrada e adentrou uma floresta densa, com árvores que podiam passar dos vinte metros.
O ritmo diminuiu por conta do terreno. Mesmo assim, eles continuaram avançando até que fossem ordenados a parar. Já estava anoitecendo.
Fogueiras foram feitas e em pouco tempo uma dezena de pontos brilhantes iluminavam as árvores em volta. Tendas foram armadas no centro do acampamento para o cavaleiro e alguns homens de sua comitiva. O resto dos homens dormiria em camas improvisadas no chão.
Eduardo sentou-se próximo a uma fogueira, e comeu a porção de provisão que lhe foi entregue. Fatias de pão com uma pasta salgada e um caldo de legumes e carne.
Caio logo surgiu e ficou ao seu lado, falando sobre como as garotas do vilarejo o olhavam durante a marcha.
Um dos homens, com olheiras e rugas abaixo do nariz, surgiu com um instrumento de cordas semelhante a um violão e começou a dedilhar, tirando-lhe alguns sons que faziam doer os ouvidos enquanto o afinava.
— Salvem os nossos matadores de ursos — proclamou Chamlet, fazendo girar seus olhos vesgos para todas as direções enquanto erguia uma caneca que não parecia ser de sopa.
O resto da roda soltou um brado, com uma alegria que Eduardo duvidava muito ser sóbria.
— Vamos lá, sujar nossas espadas e vingar nossos mortos — gritou outra pessoa da roda, que foi respondida por outro brado.
— E voltar com belos casacos vermelhos feitos de pele de urso para casa — proclamou um terceiro, abraçando Caio e enfiando a caneca em sua boca.
A essa altura, o som das cordas do instrumento pareciam mais agradáveis, e, seguindo uma melodia, os homens começaram a bater palmas e cantar uma música sobre uma bela dama com cheiro de maçãs, enquanto o cheiro de álcool permeava o lugar.
Debret abriu espaço e sentou ao lado de Eduardo.
— A anos não vejo homens tão animados e embriagados — falou.
— É como se não estivessem prestes a lutar contra monstros — Eduardo comentou, sem conseguir esconder a descrença na voz.
— Não, isso é bom — replicou Debret. — Veja, é melhor que lutem aquecidos pela coragem de um tolo do que com frio e medo.
Eduardo levantou uma sobrancelha.
— O senhor parece ter experiência.
— Todo velho tem alguma — Ele disse oferecendo um copo que só podia conter a bebida que os outros tomavam. Eduardo dispensou com a mão.
— Não estou com frio.
Debret sorriu.
— Acredito que o honorável sir Thierry rejeitaria também — disse, levando o copo à boca.
Eduardo olhou para a fogueira. A música terminou, e outra começou em seu lugar, sem letra e em ritmo dobrado, o que fez os homens começarem a dançar e pular em volta da roda.
— O senhor Thierry… por que ele é tão famoso? — perguntou Eduardo.
— Mora com ele há quase dois meses e ainda não sabe? — Debret perguntou incrédulo.
— Ouvi que ele fora um guerreiro famoso, que matou monstros e que sozinho derrotou exércitos. Mas tudo parecia tão exagerado que não acreditei. E nem ele confirmou nada. Disse apenas que isso havia ficado para trás.
— Se ficou ou não, isso eu não sei, mas as histórias vieram com ele. E acredite, nem tudo sobre elas é exagerado, principalmente para um apóstolo de Ellden.
Eduardo arregalou os olhos.
— Apóstolo de Ellden? Isso seria um seguidor mais próximo de Ellday?
O velho Debret gargalhou.
— O mais próximo? É um título militar, meu jovem. Apenas sete homens podem tê-lo por vez, e sir Thierry fora um deles. Ele liderou exércitos em guerras santas, derrubou impérios pagãos e matou monstros terríveis. Por muito tempo seu nome ecoou por todas as terras como um verdadeiro santo entre nós. Mas um dia ele abdicou de seu apostolado e saiu de Elden em desonra, muito embora sua fama ainda permaneça entre os mais simples.
Debret olhou para o cantor, que começara a entoar uma canção com notas graves e violentas, sobre um terrível dragão a assombrar a terra.
— Tudo isso após realizar seu maior feito. Um que pôs fim a uma guerra contra os seguidores do demônio de Assh’hur e os expulsou de vez do continente.
— Qual foi o feito? — Quis saber Eduardo.
Debret bebeu mais trago umedeceu os lábios e respondeu.
— Ele matou a bruxa.
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