capítulo 67 - Desejo de viver.
Uma vela queimava no canto do quarto, doando uma fraca luz à reunião pouco animada que se seguia.
Júlia abriu a boca, com o seu corpo se enchendo de ar e então o soprando. Momentos depois, Carmen e Letícia repetiram o gesto, enquanto Theo falava, e ele parecia ser o único a querer falar.
— Já estão com sono? — perguntou ele.
— Querido, quem não ficaria depois de te ouvir até altas horas da madrugada — murmurou Leticia, esfregando os olhos.
— Nem está tão tarde assim — contestou ele.
— E nem precisa. Já acabamos?
— Não, precisamos discutir o que faremos depois de sair da vila.
— Já não falamos disso várias vezes? — disse Carmen. — O plano era conseguir dinheiro, saber mais sobre esse mundo e então deixar esse lugar para trás. O que ainda falta discutir?
Júlia concordou. Haviam conseguido uma soma considerável de dinheiro, juntando tudo que ganharam trabalhando na vila nos últimos meses. Ainda que parte desse montante fora dado a Thierry como pagamento pela hospedagem, com completa relutância do velho senhor, e total insistência de Eduardo, que o fizera aceitar após dias de discussão. Mesmo assim, eles haviam conseguido juntar quatrocentas moedas de cobre, ou “pombas”, como eram chamadas. O que era o equivalente a quarenta moedas de prata, ou “águias”. Ambas tinham os respectivos animais entalhados em um lado, com um príncipe ou rainha do outro.
A moeda de ouro devia ter um grifo, junto à imagem do rei, mas Júlia nunca vira uma até aquele momento.
— O que fazer depois — Theo falou, pondo a mão nas têmporas. Júlia detestava aquele gesto.
— Como assim? — perguntou.
— Por exemplo: temos dinheiro o bastante para viajar por um tempo, disso sabemos. Mas não sabemos por quanto.
— Não pagamos seis moedas de cobre por dias aqui? — Leticia comentou.
— Sim, por insistência burra do Edu, mas acho que o velho suavizou o preço.
Júlia apertou os lábios ao ouvir o comentário, o que Theo pareceu notar, pois olhou de relance para ela antes de continuar.
— Vejam, os preços mudam muito de um lugar para outro. Aluguéis, comida, combustível, e isso em uma economia interligada por enormes redes de comércio, com dinheiro moderno. Imagine em uma economia com focos isolados, que ainda usa moedas de metal como lastro, e tem pouca dinâmica de informações de compra e venda. Além de, ainda por cima, não ser plenamente uma sociedade de livre mercado, com nobres a mandar e desmandar sobre preços e produções.
Leticia grunhiu.
— Cara, dá pra chegar a algum lugar? Já tô com dor de cabeça de te ouvir.
Theo pigarreou.
— Quero dizer que: não sabemos a disparidade de preços que pode ocorrer. Também não sabemos direito como funciona a política desse mundo, e dos perigos dele. Podemos dar um passo pro lado e topar com um bicho pior do que os ursos que atacaram no outro dia. Caralho, não sabemos nem ler essa porra de escrita que eles tem.
Júlia pensou nas vezes que Theo e Eduardo perguntaram se Thierry poderia ensiná-los. O velho homem negou em todas as vezes, dizendo que tal coisa não era tão importante. Da última vez, o homem negara de forma tão brusca que ninguém se atreveu a perguntar mais. Era estranho que o homem os tivesse acolhido e os tratado de forma tão gentil, e mesmo assim se negasse a fazer algo tão básico.
— Mas, não ficamos todo esse tempo aqui pra “juntar” informações? — Julia falou, fazendo um sinal de aspas com os dedos.
— Ouvimos histórias das pessoas do vilarejo. — Carmen começou a falar — Nomes de pessoas importantes, lugares, coisas que aconteceram…
— É, mas não foi o bastante — Theo respondeu com um suspiro.
Ele se calou e o quarto ficou em completo silêncio, que pareceu durar mais do que Julia aguentava.
— Que tal se aprendermos a ler e escrever sozinhos? — Ela sugeriu.
— Legal, mas como faremos isso sem ninguém para ensinar ou algo para tomar de referência? — Theo questionou, repetindo o incômodo gesto com a mão nas têmporas.
— Mas tem gente que aprende a ler e escrever em inglês sozinho, não?— Leticia implicou.
— Sim, mas eles usam o som das palavras, a escrita e a comparação gramática com o idioma já dominado. O que não dá pra fazer porque, mesmo que a gente entenda o que todo mundo fala, a escrita é completamente estranha. Parece coisa de alienígenas.
Theo tinha razão. Por algum motivo, todos naquele mundo pareciam falar português. Mas isso não fazia sentido. Uma vez que aquele parecia ser outro povo, com outra cultura, outra escrita em um tempo e mundo diferente, como poderiam estar falando português dentre todos os idiomas existentes?
Mais uma vez, todos ficaram em silêncio. A vela queimando no canto do quarto já estava com metade do tamanho, fazendo Julia se perguntar quanto tempo aquela reunião havia durado. Quando então Leticia de repente falou:
— Nós precisamos mesmo ir embora?
Julia franziu as sobrancelhas.
— Mas é claro, afinal. Você quer ficar aqui pro resto da vida? — perguntou, tropeçando nas palavras devido a emoção repentina que aquela ideia lhe dava.
— Não, mas, pensa bem gente. Aqui temos abrigo e conhecidos. As pessoas começaram a nos aceitar, e temos o senhor Thierry. Nunca conheci um velho mais legal que esse. Além disso, se formos embora, vamos ter que lidar com coisas como os ursos, e aqueles monstros — Leticia olhou para Julia. — Eu não tenho qualquer vontade de viver aquilo de novo.
Theo soltou uma risada seca e então bradou:
— E você acha que eu quero ficar aqui para sempre, cavando terra e misturando lama com merda? Minha “querida”, eu não tenho qualquer vontade de viver assim. Eu quero viver a minha vida, sabe? A minha verdadeira vida. No meu mundo. Onde eu tinha um futuro. E para conseguir isso, não posso ficar aqui. Não sei se vocês esqueceram, mas é por isso que estamos aqui.
A voz de Theo ecoou nos ouvidos de Julia por alguns segundos, e então o quarto afundou em um profundo silêncio. Leticia abriu a boca, a fechou, engolindo em seco e fitou Theo.
— Eu não queria estar aqui — disse ela, sufocando a voz e pondo uma mão sobre a barriga.
A visão de Leticia caída com uma mancha vermelha a se espalhar pela barriga veio à mente de Julia. Ela a abraçou, sentindo seu corpo trêmulo.
— Nenhum de nós quer, por isso temos que ir embora — Theo falou.
— E encontrar as tais chaves? — Carmen perguntou.
Theo voltou a rir, balançando a cabeça.
— Ah, sim, não dá pra achar elas no meio das alfaces, né?
As chaves… Julia havia se esquecido disso. Na verdade, ela apenas não pensara nelas. O deus os mandou àquele mundo para procurá-las. Mas ele não lhes disse o que eram ou onde estavam, então eles não sabiam o que procurar exatamente, ou como as usariam para libertá-lo. Na verdade, eles não sabiam de nada.
— Acho que a Jú tem razão quanto à leitura — Carmen falou em um tom pensativo. — Se aprendermos a ler essa escrita, vai ficar mais fácil viver nesse mundo.
— Isso é óbvio, mas já falamos que não dá para aprender sem livros ou alguém que ensine — apontou Theo.
— Temos livros nessa casa — retrucou Carmen.
— Não, Thierry tem livros. Mas ele não quer nos ensinar a lê-los — Theo suspirou, ele parecia cansado. Julia estava.
— Podemos pegar um dos livros emprestados — Carmen voltou a falar.
— Não acho que Thierry vai nos emprestar — observou Julia.
— Ele não precisa — falou Carmen, deixando Julia confusa.
Theo ficou em silêncio por um momento e então falou:
— O Edu não vai gostar de saber disso.
Carmen deu de ombros.
— Ele não tá aqui agora.
Theo levou uma mão ao queixo.
— Vocês não estão levando isso a sério, né gente? — Leticia perguntou de repente e Julia percebeu do que se tratava.
— Vocês querem rou…
— É só um livro, que tem de mais? — Carmen perguntou de forma inocente.
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