Índice de Capítulo

    Julia tocou a tatuagem, sentindo a pele lisa de Leticia. Franziu as sobrancelhas mesmo sem ter certeza do que aquilo significava. Nunca tocara em uma tatuagem antes, então não sabia se deveria senti-la ou não.


    — E aí, o que acha? — perguntou Leticia, que estava com a parte superior do vestido abaixada.


    — Parece ter mudado — Júlia falou, analisando a tatuagem nas costas da amiga.


    Na primeira vez que a vira, parecia dois gatos – um preto e um branco – perseguindo a cauda um do outro, descrevendo um círculo nas costas de Leticia. As formas dos animais eram simples, como desenhos feitos por uma criança que acabara de aprender a desenhar.
    Mas com o tempo, a cada vez que Julia a via, percebia que a tatuagem mudava. Ganhando detalhes que ela não havia percebido antes. Como garras nas patas dos animais, membros e pelos melhor delineados, além das posições. Em um momento ambos os gatos, branco e preto, pareciam estar em posição de ataque, com as patas erguidas, saltando em perseguição um sobre o outro. Noutro, eles pareciam apenas caminhar. Naquele dia estavam ambos deitados, descansando sobre as patas. Embora mudassem de posição, sempre formavam um círculo.


    — Acho melhor mostrar isso aos meninos — disse Julia, considerando a ideia.


    — Aquele nerd vai gostar. É uma boa desculpa pra me ver sem camisa — Leticia respondeu, pondo a mão nas costas, onde a tatuagem estava.


    — Pensei que não se importasse com isso.
    — Não disse que não me importava, só que bateria neles depois.
    Julia riu.


    — Acho que já está bom. Melhor se vestir, tá bem frio — falou, levantando-se da cama.
    Leticia começou a ajeitar o vestido e cobrir-se quando a porta do quarto abriu de repente.
    Julia virou-se por reflexo, mesmo já sabendo quem era, uma vez que não houve batida na porta.


    Carmen encarou Leticia por um momento, após entrar no quarto.


    — Amiga, ficar esse tempo sem comer os salgados da escola te fez bem.


    Letícia deu-lhe uma carranca.


    — Feche a porta, por favor — Julia pediu.
    Carmen o fez, e em seguida pulou na cama.


    — Estão conferindo a tattoo que a Lê fez, de novo?


    — Não fiz essa tatuagem — contestou Leticia.


    — Então como ela apareceu aí, mágica?
    Julia pensou ter ouvido um estalo passando por sua cabeça.


    — Mágica… Outro mundo… pode ser isso. Afinal os meninos dizem terem ganhado habilidades de deus.


    Leticia fez uma careta.


    — O Edu ficou profissional com a lança. O Caio vê longe pra caralho, e sabe atirar com besta. E o nerd do Theo pode soltar bola de fogo com as mãos. Ter uma tatuagem que muda me parece bem injusto, amiga — falou, terminando de se vestir.


    — Melhor do que não ganhar nada — comentou Carmen.


    Julia recebeu aquela frase como uma pedrada certeira em sua cabeça.


    — Eu ganhei brincos, e passei pra cá com essa tatuagem. Não faz muito sentido — Leticia franziu o cenho. — O que vocês ganharam mesmo?


    Julia se remexeu em seu canto. De acordo com Theo, as habilidades dos meninos se deviam às dádivas de deus. Edu ganhara uma arma de cabo longo, semelhante a uma lança, mesmo que a ponta fosse diferente. Julia também lembrava de ver Caio com uma besta, e Theo com um cajado enquanto ainda estavam no templo dos baús, onde o deus os reunira, antes de enviá-los para aquele mundo. Parecia ter sido há anos.


    — A minha parecia uma boneca feita de cera. Eu acho que não é nada muito útil.


    — Não senti nada de estranho?


    Júlia coçou os braços. Havia uma coisa, mas não tinha muita certeza. Hesitante, ela balançou a cabeça em negação.
    Leticia olhou-a por um momento e então se voltou para Carmen.


    — Não lembro — respondeu ela. — Mas também não sinto nenhuma diferença.


    — Acho que foi uma arma. Lembro de ter te visto com uma — Leticia falou, coçando o rosto com a mão.


    Julia reparou que era a que tinha sido cortada.


    — Posso ver sua mão, Lê? — perguntou.


    Leticia a mostrou, mostrando confusão. Julia a tomou, surpresa por não encontrar o que procurava.


    — Sem cicatriz — constatou, surpresa.


    — Ah, o corte… é, tem um tempo que não me incomoda mais.


    Julia se lembrava do sangue saindo da mão da amiga. Parecia ter sido um corte profundo.
    Os remédios do velho Thierry pareceram ter feito um bom trabalho.


    — Acho que sua reza fez milagres — disse Leticia, mexendo os dedos.


    Julia engasgou, mudou sua postura e então sorriu. Embora tivesse visto um deus, já não acreditava mais em rezas e preces. Nem que ele as ouvisse.


    — Sim, gente — Carmen começou a falar. — O velho está chamando para o café da manhã. E, aliás, sobre o que falamos ontem. O Theo quer fazer isso hoje a noite.


    — Hoje? Mas porquê? — perguntou Julia.


    — O Thierry vai jantar com o prefeito. De acordo com Roque, ele sempre volta bem tarde.


    Depois que o garoto dormir, a gente entra.
    Leticia cruzou os braços.


    — Não gosto dessa ideia. Roubar ele depois de tudo que fez por nós? — disparou ela.


    Carmen se levantou da cama e caminhou de volta para a porta. Seus passos pareciam leves se comparados aos de Leticia e Julia. Não era possível ouvi-los enquanto ela se movia. Ela se virou em frente à porta.


    — Não vamos roubar. Só pegaremos emprestado. E, quando aprendermos a ler, devolveremos ele sem ninguém perceber.


    — Continua errado — Leticia insistiu.


    — Errado é ele não querer nos ensinar. O que tem de mais nisso? É uma estupidez. No nosso mundo ele seria preso por isso.


    — Mas não estamos lá. Estamos aqui — Julia falou. Sua voz soando quase como um suspiro desanimado.


    — Por isso precisamos de qualquer coisa que nos ajude aqui. Agora vamos — Carmen abriu a porta, deixando Leticia e Julia para trás. Ambas se olharam por um tempo, e Julia se pegou desejando pelo retorno de Eduardo.
    O café da manhã, embora não tivesse café, foi farto. Como sempre era na casa de Thierry.
    Pães crocantes com frutas doces e patês salgados decoravam a mesa. Roque servia suco de maçãs enquanto todos tratavam de esvaziar a mesa.


    Thierry, embora agisse de forma gentil, parecia reservado. Ao olhar para o homem, Julia sentia um peso em seu peito. Não se lembrava de dormir ou amanhecer com fome nenhum único dia desde que o conhecera. Ele os salvara, e os abrigara. Eduardo olhava para ele com admiração nos olhos e Julia se via obrigada a partilhar desse sentimento. Isso tornava o que Theo e Carmen iriam fazer cruel, de certa forma.


    Precisavam do conhecimento que poderia ajudá-los no futuro. No entanto, isso significava quebrar a confiança de seu benfeitor. Era apenas um livro. Mas representava algo que aquele homem gentil os proibiu.


    Era uma surpresa para Julia que ela sentisse tanta culpa por quebrar a confiança de alguém. Nunca pensara muito nisso. Mesmo com sua mãe, embora detestasse, deixava escapar uma mentira outra. Como na vez em que fora para o bairro de Jonas, junto das meninas. Mentira dizendo que todos moravam lá perto. Ela acreditava que algumas mentiras como essa não fariam mal. Mas naquele momento, por algum motivo, isso importava. Ela se perguntou o porquê, lembrando da expressão admirada de Eduardo ao olhar para o Thierry.


    Ele se importaria, pensou.


    Após a refeição, Carmen saiu, junto de Theo. Julia ficou na casa, junto de Leticia. Elas não tinham nenhuma roupa para lavar naquele dia, então auxiliaram Roque nos afazeres domésticos. Na qual o garoto era hábil e rápido, embora não fosse bom em orientar os outros no que fazer e como. Seu jeito reservado fazia Julia se lembrar de um de seus colegas de sala. Ítalo. Exceto pelo fato de Leticia parecer se entender melhor com Roque, uma vez que ela sempre discutia com Ítalo na escola.


    Thierry passou a maior parte do dia em seu escritório, saindo apenas para as refeições.
    Júlia de tempos em tempos pensava em Eduardo. Em como ele estaria naquele momento.


    Desejando que ele retornasse logo, em segurança.


    O dia se passou enquanto os três se mantinham ocupados. Julia cortava um vegetal a que chamavam de lámula. O qual tinha uma aparência parecida com cebolas. Roque sempre a mandava fazer tarefas relacionadas com facas. Excluindo Leticia da função. Julia não se importava, embora se perguntasse o porquê. Ela se concentrou nos legumes à sua frente.


    Achava curioso que tantas coisas fossem parecidas, e ao mesmo tempo diferentes naquele mundo. Esse vegetal era um exemplo disso. Não irritava os olhos ao ser cortado, mas tinha um gosto ardente quando posto na boca. Parecia uma cebola, mas o gosto era completamente diferente.


    Ela terminou sua atividade e passou a bandeja para Roque misturá-la no cozido, e ouviu o som da porta a se abrir e as vozes conhecidas de Carmen e Theo. Embora não pudesse discernir as palavras.


    Todos se banharam e se prepararam para se reunir à mesa. Thierry se reuniu com eles um pouco antes de sair. Julia olhou para o homem enquanto este falava para cuidarem da casa.
    O ar de respeito que ele projetava enquanto as palavras eram ditas era tão respeitável que a fazia se envergonhar do que logo fariam. Sentiu vontade de falar, mas um sentimento tomou conta de seu corpo. Algo que não sentia desde o dia na quadra. Quando trombou com o professor de educação física, após discutir com Jonas.


    Naquele momento ela poderia ter dito o que sabia. Podia ter dito que Fernando fora jogado no canal por Murilo e sua turma. Podia dizer que eles o perseguiram por semanas fora da escola. Que ele precisava de ajuda.
    Talvez não mudasse nada. Os tiros talvez ainda fossem disparados. Seus amigos ainda teriam morrido. Não apagaria o sofrimento de Fernando nem o dela. Mas ao menos ela poderia dizer que fez o certo. Porém, algo pesou mais. Algo que a impedia de falar. Teve medo. Nem sua língua, ou seus lábios emitiam qualquer som.


    Ela olhou para Leticia, que escutava atentamente cada palavra do homem. Queria que ela falasse. Queria que ela tivesse essa coragem. A coragem que Julia não tinha.
    Thierry se despediu cordialmente de todos, e partiu.


    Roque fez a prece com uma voz abafada demais para se ouvir, e deu início a refeição. O som dos talheres raspando nos pratos parecia alto demais naquela noite. As conversas foram poucas. O que fez a refeição durar menos que o normal.


    Carmen e Theo se dirigiram a seus quartos. Julia e Leticia ajudaram Roque a lavar a louça suja, e o observaram discretamente.


    O rapaz tomou uma xícara de melgraz em frente a lareira junto a elas. Deu uma volta à noite pelo jardim, colocou lenha que pegara no depósito de Thierry próximo ao fogo, e foi dormir. Falando que elas jogassem as toras nas chamas se precisassem.


    Julia observou o fogo após o garoto se retirar. Ela e Leticia esperaram por um tempo indeterminado até que as chamas se tornassem fracas e começassem a se apagar. Um frio a tomou quanto mais o tempo passava. Leticia tocou em seu braço, e Julia se sobressaltou.


    — Vamos — disse ela.


    Elas se levantaram e caminharam silenciosamente pelos corredores até o quarto de Theo, e depois ao de Carmen. Deram duas batidas leves em cada um, e as portas se abriram.


    — Que demora, quase peguei no sono — reclamou o garoto, sussurrando — Talvez devêssemos dormir e esquecer isso mesmo — Julia respondeu, também em voz baixa.


    — Deixa de ter medo, é só um livro — disse Carmen.


    — Nesse passo, parece que vamos roubar diamantes — Leticia observou.


    — Bem que poderia ser — Carmen lamuriou-se.
    Theo chiou.


    — Silêncio e vamos logo — disse, tomando a frente.


    Eles chegaram até o escritório de Thierry e tentaram abrir a porta, que obviamente estava trancada.


    — Certo, gênio do crime, qual a ideia agora? — Leticia ralhou.


    — Deixa comigo — Julian ouviu a voz de Carmen dizer.


    A garota agachou-se de frente para a porta, e estendeu as mãos na altura da maçaneta.
    Julia não conseguia ver o que ela tinha na mão, mas pelo som parecia ser feito de metal.
    Após alguns momentos que pareceram durar horas, a porta estalou. O som parecido com o de um cronômetro. Carmen levantou-se e falou em tom satisfeito para Theo:


    — Pode abrir.


    Ele o fez e a porta rangeu alto demais para aquele horário. O que fez o coração Julia gelar, pensando que Roque poderia ouvir esse som e acordar. Não aconteceu.


    — Onde aprendeu isso? — perguntou Leticia, com uma voz mais inquisitiva que confusa.


    Carmen pareceu pensativa antes de responder:


    — Acho que eu vi em alguns filmes.


    Leticia não pareceu convencida, e nem Julia estava. Mas não se demoraram em pensar sobre o caso. Theo entrou, e elas o seguiram.


    Esperavam que a sala estivesse escura, mas, fracas luzes douradas nos cantos davam contornos às sombras. Era espaçosa e quente, ao menos mais do que o resto da casa.
    Havia uma escrivaninha de madeira em frente a porta, com uma grande vela apagada posta e papéis espalhados em volta. À direita, outra mesa estava posta junto a parede, com frascos, aparentemente de vidro, arredondados na base e afunilados no topo, dispostos de forma crescente sobre ela. A esquerda e atrás da escrivaninha, podiam ver uma série de estantes que iam do chão ao teto, repletas de pergaminhos e livros de capa grossa.


    Sentiu um cheiro adocicado e vertiginoso, que parecia vir da mesa a direita. Percebeu que ela estava repleta de ervas. Quis pegar uma, mas conteve a vontade.


    Theo caminhou rente às estantes.


    — Cara, nenhuma cruz? Achei que ele fosse religioso — Carmen comentou.


    — Não acho que alguém tenha sido crucificado nesse mundo — Theo respondeu.


    — Gente, vamos pegar logo o que viemos pegar e cair fora — falou Carmen.


    — Calma, preciso decidir qual deles pegar — explicou Theo.


    — Qualquer um está bom, não é como se soubéssemos o que tem escrito neles — Julia batia os dedos nos braços enquanto falava.


    — É por isso que eu preciso escolher bem. Não sei de qual deles o senhor Thierry vai sentir falta — respondeu Theo.


    Ele percorreu a extensão das prateleiras, tocando em alguns livros e pergaminhos.


    — Gente, vem ver isso aqui — Julia ouviu a voz de Carmen, que olhava para um dos cantos do cômodo.


    — Que foi, amiga? — perguntou Leticia.


    — Isso não me parece uma lâmpada — Elas olhavam para uma das luzes que iluminavam fracamente a sala.


    — Claro que não. Não tem luz elétrica — observou Julia.


    — É que também não é uma tocha ou uma lamparina.


    Julia se aproximou, o pé topando com o que parecia ser uma grande arca, o que a fez grunhir de dor.


    — Silêncio — pediu Theo, que ainda não havia se decidido.


    Bufando, Julia voltou seu olhar para a fonte da luz, próxima a mesa com os frascos. Carmen tinha razão. Estava preso a parede, mas não era uma tocha e definitivamente não parecia ser uma lamparina. Tinha o formato de um pequeno barril com não mais de trinta centímetros e aparentava ser feito de pedra lisa. A forma como a luz se dava em sua superfície também não era normal. A distância, parecia que saia através de linhas horizontais que cortavam o estranho objeto de alto a baixo, mas ao se aproximar, via-se que na verdade eram formadas por pequenos rabiscos.


    Julia sentiu o calor que ele emanava e percebeu a razão da sala ser mais quente que o resto da casa. Sentiu também algo mais estranho. Não era devido a temperatura ou devido às suas emoções para com a situação.


    — Caramba, que coisa estranha — Carmen estendeu a mão até o objeto, e quase o tocou.


    — Para, não tá sentindo isso. Deve estar quente pra caralho — Leticia falou, e puxou Carmen, afastando-a do objeto.


    — Peguei o livro. Não toquem em mais nada — Theo disse, finalmente.


    — Eu não toquei — berrou Carmen, virando-se, dando dois passos na direção de Theo e mexendo os braços. Ela acertou um dos frascos, que voou na direção da parede.


    Julia de alguma forma conseguiu segurá-lo, esticando o corpo e cambaleando. Ela topou com o canto da parede e ergueu a cabeça, batendo no objeto com a força do movimento.
    Primeiro veio a dor da pancada. E em seguida, algo que ela não conseguia entender ou explicar.

    Um eco sem som chegou aos seus ouvidos, e sentiu seu corpo ser preenchido e esvaziado. A luz acima de sua cabeça pareceu mais forte, pintando o cômodo com sua luz dourada. Não havia sombras, apenas a brilhante luz de mil amanheceres. Em uma fração de segundos viu suas amigas e a Theo com expressões de espanto. Pareciam estátuas pintadas a ouro. O eco terminou e foi como se ela fosse arremessada com tudo contra uma parede de concreto. O mundo girou. Não aquele quarto luminoso, mas o mundo inteiro. Ela o sentiu girar, enquanto estava caída no chão. Um mundo feito de nuvens brancas sobre um céu dourado.


    Uma voz a chamou.


    Letícia? Carmen?


    Parecia distante.


    Caio? Theo?


    Ouvia se aproximar cada vez mais.


    Roque? Thierry?


    Estava acima dela. Ela via sua sombra. A única sombra naquele mundo.


    Eduardo?


    A voz falou seu nome.


    Jonas…

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