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    Uma noite nublada, fria e silenciosa se prolongava do lado de fora. Ali dentro, a sala estava quente e abafada. O cheiro das cinzas na lareira se misturava ao aroma do melgraz, já frio nas xícaras. Lamparinas e velas pendiam nas paredes, iluminando o cômodo. Carmen se remexeu em sua cadeira pela terceira vez desde que sentara, tentando ficar mais confortável. Theo, ao seu lado, não parecia menos tenso. Ele se esforçava em falar, mas sua voz saía de forma desengonçada.


    A razão era o homem sentado à sua frente, ouvindo tudo em silêncio.


    O vistoso sorriso que era costumeiro ver em seu rosto havia se transformado em um nó apertado em seus lábios. Seus olhos transmitiam uma seriedade que fazia Carmen querer evitá-los. Não havia neles raiva, o que a inquietava ainda mais.


    Roque estava em pé ao lado. Fora ele quem os descobriu dentro do escritório de Thierry, após o que ocorreu.


    “Julia sua idiota, cabeça de vento”.


    As explicações atrapalhadas de Theo continuaram. Ele disse que haviam entrado no quarto apenas por curiosidade, uma vez que haviam visto – pela porta – objetos estranhos lá dentro. Júlia havia achado as pedras presas junto a parede, tropeçou no escuro e caiu, batendo a cabeça na parede.


    Thierry ouviu tudo sem mudar de expressão, permanecendo em silêncio mesmo após Theo acabar de falar. Carmen não sabia qual seria sua resposta àquilo. Ela, porém, tinha certeza de uma coisa: o homem não acreditava em nada.


    — Como entraram no quarto? — perguntou finalmente.


    Carmen levantou a mão, trêmula.


    — Fui eu. Consegui destrancar a porta — Não tinha como omitir isso, então era melhor contar ela mesma.


    Thierry levantou uma sobrancelha, fitando-a. Carmen engoliu em seco. Os pelos de sua nuca se arrepiaram quando aqueles olhos perscrutaram os seus.


    — Como? — perguntou ele.


    Carmen umedeceu os lábios antes de responder.


    — Uma agulha e um clipe de cab… quero dizer um pedaço de arame que uso para prender o cabelo.


    — Não fez mais nada? — Thierry estreitou os olhos, mostrando sinais de surpresa.


    Ela negou com a cabeça e se preparou para responder a próxima pergunta do homem, mas ele voltou a palavra novamente para Theo.


    — Acolhi a vós quando estavam em dificuldades. Busquei ser um bom anfitrião e nunca dei razões para ganhar vossa inimizade. Tudo o que pedi era aquilo que se espera de um hóspede. Que respeite a casa em que se está hospedado. E isso não ocorreu. Creio que por isso Ellday deu tal punição a Júllhia e a Letizia. Rezemos e esperemos para que ele seja clemente em sua pena.


    Carmen suspirou. Duvidava muito que aquilo fosse obra de algum deus. Lembrou-se da luz dourada que iluminou subitamente o cômodo. Seu corpo queimando como as brasas de uma fogueira ardente. Durou apenas um segundo, mas foi o suficiente para deixá-la imóvel pelo resto da noite, sentindo apenas movimentos e vozes ao seu redor.


    — Nós realmente sentimos muito, e pedimos seu perdão — Theo respondeu. Ele foi o único a não ser afetado pela luz, se mantendo consciente.


    Thierry fechou os olhos e suspirou antes de tornar a abri-los.


    — Perdão é algo que vocês tem por obrigação pedir. Para mim, porém, não é obrigação concedê-lo — disse.


    Carmen apertou suas mãos sobre o colo.


    — No entanto, uma vez que Edwardo e Caio não estão aqui, devo esperar até o seu retorno antes de tomar uma decisão.


    — Decisão — Carmen disse confusa.


    — Sobre vossa permanência nesta casa.


    — A ideia foi minha, não precisa punir os outros — Theo falou, levantando a voz.


    — Ainda assim, eles concordaram. Preciso descobrir se Eduardo e Caio também tomaram parte nisso. Enquanto isso, torçamos para que a jovem desperte — O homem se ergueu de seu cadeirão e caminhou até o corredor, sendo seguido por Roque, deixando Theo e Carmen para trás.


    Eles se encararam. Nunca tinham conversado muito. Na verdade, sequer sabiam da existência um do outro dois meses antes. Pelo menos Carmen não o havia notado na escola. Havia caras mais chamativos. Tais como Eduardo. Na verdade, talvez não tanto como ele, como Theo também não era. E no entanto, estavam juntos nessa situação. Uma vez que Júlia não acordava e Letícia não parecia muito melhor, e Eduardo estava fora, junto de Caio. Restara apenas eles naquele momento. Muito embora, os dois não precisassem conversar um com o outro ou discutir muito profundamente o assunto. Pelo menos ela sentia que era melhor não. Preferia não ouvir seus comentários desagradáveis.


    — Acho que isso é tudo — Carmen sussurrou se levantando e afastou-se de Theo, antes que ele pudesse falar algo.


    Ele provavelmente estava pensando no que fazer, e ela não tinha qualquer intenção de atrapalhá-lo. Sabia que depois a contaria seus esquemas. Seguiu até o seu quarto, que naquele momento era ocupado por duas garotas debilitadas, deitadas sobre a cama.
    Leticia jazia adormecida de olhos fechados e com uma respiração pesada. A garota agonizara, gemendo de dor o dia inteiro, apresentando uma febre que não passava. Além de não conseguir ficar em pé por muito tempo.


    Julia, porém, não apresentava nenhum dos sintomas de Leticia. Ela apenas dormia calmamente, como uma bela princesa de um conto de fadas, sem demonstrar sinais de que iria acordar.


    “Talvez um beijo a despertasse”, pensou Carmen. No entanto, a ideia desse beijo ir para outra pessoa enchia sua boca de dissabor. Mas, ainda assim esperava que a amiga despertasse. Não suportaria aquele mundo sem ter a quem provocar.


    Ela se sentou em uma cadeira no canto do quarto. Dormiria ali até que as duas melhorassem, por mais desconfortável que fosse. Passou a observar uma vela que já havia derretido para menos da metade, e adormeceu, lembrando-se de dias tranquilos em sua outra vida, em outro mundo. Não sonhou. Nunca sonhava. Ou pelo menos não lembrava.


    Despertou no meio da noite, escutando gemidos de dor em meio a escuridão. Gemidos que se transformaram em gritos abafados.


    Carmen se levantou, caminhando na direção do som. Vinha da cama. Podia ver uma sombra se debatendo, percebendo que era Leticia quando seus olhos se acostumaram com a escuridão. Carmen agiu rapidamente, saltando sobre a cama e mantendo a amiga paralisada para que parasse de se remexer.
    Ela pegou seu sapato e o pôs na boca de Leticia, para que ela não mordesse a língua enquanto a cabeça se remexia com os espasmos. Não lembrava em que série vira isso, nem se era verdade ou não, mas o fez mesmo assim.


    Seu corpo começou a doer devido ao esforço de manter Leticia imóvel. A garota sempre foi mais forte devido a rotina de treinos, e de algum jeito se tornara ainda mais. Carmen se sentia em cima de touro mecânico. Um que falava gírias a cada cinco palavras e se movia à base de salgados.


    Após um tempo, longo demais para os braços cansados e a mente sonolenta de Carmen, os espasmos pararam.


    Carmen cautelosamente soltou a amiga, que arfava profundamente. Ambas estavam suadas como se tivessem corrido uma maratona. Em meio a tudo isso, Julia não acordou.


    Leticia tentou se erguer sobre os braços, caindo logo depois.


    — Le, você pode me ouvir?


    — Quente… tão quente.


    Carmen pôs a mão sobre a testa suada da amiga. Ela estava fria, quase gélida.


    — O que está quente? — perguntou, confusa.


    — Minhas costas… Elas… doem.


    Enquanto tentava entender, Carmen ouviu um barulho no quarto e girou a cabeça em meio a escuridão. Então a porta se abriu de repente, revelando uma luz quase cegante para seus olhos. Thierry apareceu segurando uma lamparina. Ele entrou, e, no mesmo momento, Carmen pensou ter visto formas se movendo aos pés do homem, passando pela porta e saindo do quarto.


    Thierry também pareceu notar, visto que olhou para baixo. No entanto, ele não fez caso disso, nem Carmen. Talvez fossem ratos.


    — O que está havendo? — perguntou ele.


    Carmen percebeu as duas pessoas paradas atrás dele, imaginando serem Roque e Theo.


    — Ela teve um ataque epilético — disse ela.


    — Um ataque epilético?


    — Sim, é quando o corpo se debate sem controle e… — Disso eu sei — interrompeu ele, fazendo Carmen piscar de surpresa.


    Como ele saberia de um termo técnico usado em outro mundo?


    — Mas como você sabe disso? Havia alguma curandeira em sua antiga vila?


    Carmen engasgou por um momento antes de responder.


    — Algo assim, havia um lugar para aprender esse tipo de coisas… e bem… — Ela falou, as palavras pareciam se perder em algum lugar entre a mente e a língua.


    — Senhor, pode ajudá-la? — perguntou Theo, passando por Thierry e chegando até Leticia.


    — Sim, é claro.


    Leticia respirou com certo alívio, afastando-se da cama e deixando que Thierry se aproximasse e fizesse os cuidados necessários em Leticia. O homem tinha muito conhecimento naquilo. Porém ocorreu algo que surpreendeu a todos pela segunda vez naquela noite.


    Leticia ergueu o tronco, ficando sentada na cama, pondo a mão nas costas.


    — A dor… não sinto mais — disse, antes de voltar a se deitar.

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