Índice de Capítulo

    A vela queimava no centro da visão de Thierry, escurecendo tudo que havia em volta. Uma dançarina elegante e solitária que chamava toda a atenção para si. Mas o que o velho homem olhava era a sombra por ela projetada.

    — Eles irão embora! — A voz mansa chegou aos ouvidos de Thierry em um tom de alerta — Planejam fazê-lo no final do inverno, quando acreditam ser mais fácil de viajar.

    — Uma crença verdadeira para qualquer um — retorquiu Thierry em um tom reflexivo, deixando o cansaço escapar em sua voz.

    — E enganosa para aquele que não conhece as estradas que deve percorrer — corrigiu a voz. 

    Thierry bufou e então começou a falar:

    — Ainda haverá tempo para convencê-los a ficar. Até o final do inverno, ao menos — sua voz saiu-lhe hesitante. Algo que lhe era incomum.

    — E a proposta do cavaleiro? — questionou a sombra.

    Os lábios de Thierry se comprimiram.

    — Ele a rejeitará — disse, tentando emular um tom mais confiante em sua voz.

    Por um momento a sombra não o respondeu. Ao invés disso sua silhueta se inclinou – a cabeça pendendo para o lado. Então uma voz – antiga como a vigília da primeira estrela do céu e áspera como tronco de um carvalho velho – soprou aos ouvidos de Thierry em um idioma que ele não ouvia a tempos.

    — Não confie em suas certezas para tomar decisões, cavaleiro. Ao invés, desconfie das dúvidas.

    — Não confunda minha mente com palavras naarsitas — bronqueou entre dentes.

    — Palavras são palavras, não importa a língua. O seu significado é o que deve importar.

    — Se significarem algo — rebateu Thierry.

    — Apenas por que não as compreende, não quer dizer que não significam nada, ex-apóstolo.

    A última palavra foi como uma agulha fumegante nos ouvidos de Thierry. Seus dentes trincaram enquanto ele os apertava um contra o outro.

    — E quais dúvidas são essas a qual se referis? — perguntou, mantendo a voz o mais controlada possível. Não queria demonstrar sua mudança de humor.

    A sombra branca endireitou sua postura.

    — O que o faz crer que o cavaleiro andriano desistirá tão facilmente? Por que pensa que mantê-los neste vilarejo fará algum bem? Tens fé que esse lugar permanecerá pacato para sempre? Tens certeza de tuas decisões?

    Thierry se ergueu abruptamente e sentiu qualquer nó que houvesse em sua língua se desatar.

    — Não me tome por um peregrino tolo do deserto que viaja léguas para ser guiado em direção a um penhasco. Que decisão se pode tomar cercando-se de dúvidas dessa forma? — explodiu.

    Uma risada ecoou do outro lado e ele se calou, percebendo o quão familiar tal melodia era.

    “Eram irmãs, sem dúvida”, pensou consigo mesmo.

    A voz da que estava no outro lado voltou a falar. Sua língua enrolando-se em um som vibrante e repleto de vogais entrepostas enquanto falava a língua do deserto.

    — Não são as dúvidas que nos apontam o que está errado? Não é a incerteza o que revela a insegurança. Como se pode obter as respostas sem pensar nas perguntas? — disse ela, pelo que Thierry entendeu.

    — E quais respostas seriam essas? — inquiriu ele.

    — Isso apenas eles podem dizer — Ela respondeu com um floreio na voz.

    A janela tremia com o vento e a chuva que se derramava do lado de fora. Forte, barulhenta, imparável. Ainda sim, havia algo em seu som que trazia uma calma serena a Thierry. Calma essa que julgava precisar naquele momento.

    Roque caminhava pelo aposento carregando meia dúzia de canecas com melgráz em uma bandeja e as distribuindo a todos. O aroma adocicado da bebida perfumava o ambiente, mascarando o odor gerado pelas cinzas carbonizadas da lareira que os aquecia.

    Thierry olhou para os jovens sentados à sua frente.

    Caio aceitou sua caneca com alegria, tragando um longo e audível gole antes tornar a baixá-la para respirar.

    Letizia tomou a sua com toques demorados e cuidadosos de seus lábios rosados. A fumaça da bebida fervida turvando seu rosto moreno.

    Júlla recebeu a sua caneca, mas não a levou à boca, mantendo-a embalada por suas mãos pequenas e delicadas por algum tempo – seus olhos encarando o melgráz – antes de erguê-la de forma e beber de forma resignada, e então deixá-la de lado.

    Edwardo recebeu sua caneca, agradeceu a Roque com um leve sorriso, e então a emborcou de forma sóbria, soprando o calor que subiu ao seu rosto logo depois.

    Thierry então encarou a sua própria caneca. Por algum motivo estava hesitante em tomá-la. Lembrou-se daquele primeiro dia quando os encontrou na margem do rio e os trouxe para sua casa, cuidou de seus ferimentos e os serviu as primeiras canecas de melgráz que já haviam tomado em vida.

    “Jovens desabrigados”, pensou, “Estrelas que caíram.”

    Tomou o melgráz, sentiu sua aspereza doce e deixou o calor da bebida se espalhar pelo seu corpo até que não houvesse mais o que beber. Em seguida, bateu de leve o copo no braço da cadeira e tomou a palavra.

    — Sei que devem se perguntar por que os chamei para conversar, e que com certeza preocupações e dúvidas devem estar povoando suas mentes — Parou de falar, percebendo que as palavras o remetiam ao que ouvira mais cedo naquele dia.

    — Senhor Thierry, está tudo bem? — Eduardo perguntou com uma expressão confusa. A cicatriz na lateral de seu rosto contorcendo-se.

    — Perdoem-me — pediu com uma pontada de embaraço que não sabia mais poder sentir.

    Respirou mais uma vez, a apreensão de todos e a sua própria. Pensava no quão tolo era por se preocupar de tal forma, mas sabendo que tal preocupação no fundo não era sem fundamento.

    “Ruína ou riqueza trarão.”

    — Tratarei de ser direto. Bem sei que cada palavra que me contrastes naquela noite é tão verdadeira como os contos que uma ama de leite conta para uma criança em seu peito — disse, com uma voz alta, pesada e poderosa.

    A frase se espalhou pela sala como um vendaval seco em uma tarde quente de verão. Thierry observou enquanto os rostos se enchiam e se deformavam em confusão, depois preocupação e então medo. Alguns mais do que outros.

    — O que… o tá querendo dizer com isso, coro… er, senhor? — Letizia foi a primeira a responder de alguma forma.

    — Na noite em que eu os perguntei de onde haviam vindo, como haviam chegado naquela banda do rio, por que estavam na floresta, e de onde eram. Sei que nada foi verdade.

    A tez de Letizia tornou-se pálida como os pilares dos templos que sobreviveram desde a antiguidade. Sua boca se moveu em sons abafados e incertos. Seus lábios se apertaram e Thierry podia sentir o nó que se formava na garganta da garota como se fosse na sua própria.

    Olhou para Caio e Julla, que se encontravam com a mesma reação embaraçosa, como se seus rostos derretessem em vergonha.

    Então ele olhou para Edwardo, que o encarava nos olhos com o que parecia ser uma culpa resignada.

    — Desculpe por mentir, não era nossa intenção — disse o jovem, sem desviar o olhar, gaguejar ou mostrar qualquer traço de leviandade.

    Uma desculpa sincera, do tipo que tira a fúria de qualquer homem que se julgasse ludibriado ou injustiçado. O tipo raro que Thierry mais valorizava.

    — Desculpas a essa altura são desnecessárias — disse em tom levemente mais brando. — A questão, no entanto, persiste. De onde viestes vós? Respondam sabendo que eu saberei se mentirem. Respondam sabendo que bem sei que não são deste mundo.

    Sua voz pareceu se espalhar pelo pequeno cômodo em um eco desconfortável, até se extinguir em um silêncio soturno. Em um primeiro momento não houve respostas dos jovens, apenas uma breve e nervosa conversa entre seus olhos, que durou até que Julla abrisse sua boca, gaguejando em uma voz trêmula.

    — Não sei como vamos… dizer isso — Ela olhou para Eduardo e então para Letizia.

    — Como o senhor sabe que não somos daqui? — Eduardo perguntou com certa hesitação na voz.

    O ar escapuliu pelas narinas de Thierry em um suspiro involuntário.

    — Como descobri suas mentiras não vem ao caso. O que de fato importa no presente momento é que ainda aguardo pela verdade — declarou.

    Os jovens voltaram a se mexer em seus lugares. Um brilho úmido escorria por seus rostos pálidos. Seus olhares fugiam da intensidade do de Thierry, exceto pelo de Edwardo. O rapaz mantinha a expressão envergonhada de um garoto que acabara de ser apanhado roubando tortas da cozinha de sua avó. E ainda assim, se mantinha suportando o peso do olhar inquisitivo de Thierry.

    — É verdade que não somos daqui — admitiu Edwardo. — Dessa vila, desse país ou mesmo desse mundo. Somos de outro lugar. Um completamente diferente.

    Thierry ouviu as palavras. Ainda que já soubesse de tudo que fora dito, escutar aquelas palavras da boca de um dos jovens fez os pelos de seu corpo se eriçarem, um a um. Ele assentiu, continuando a ouvir.

    — Um lugar que eu não sei se o senhor poderia entender se eu explicasse.

    — Outro mundo — Thierry disse, mais para si mesmo do que para qualquer outro.

    — Sim — Eduardo concordou com a cabeça.

    — Ainda assim, os explique — pediu Thierry com certa curiosidade misturada a tensão em seu corpo e mente.

    Edwardo moveu sua boca, mas dobrou os lábios soltando um suspiro de frustração, olhando para baixo com um feição reflexiva. Caio então se debruçou para frente, falando com uma voz ansiosa.

    — Bem, no nosso mundo tem coisas como computadores, carros, é, vídeo games…

    — Cara, para! Vai deixar tudo mais confuso — repreendeu Letizia, misturando sua voz a dele até ambas se calarem.

    — Então como vamos explicar tudo? — perguntou Caio com um gesto amplo de mãos.

    Em meio a breve discussão de ambos, Julla levantou a mão, e Thierry apontou para ela, permitindo que falasse.

    — Vivíamos em um mundo sem magia e sem goblins — disse com uma voz calma. — Em que arcos e espadas eram coisas do passado, e que a única coisa com que nos preocupávamos era se iríamos passar nas provas da escola.

    — Escola? — Thierry murmurou, franzindo a testa.

    Reconheceu o termo pergamíta, estranhando seu uso daquela forma em meio às palavras ditas em andriano. Recordou de Carmen usando uma palavra edéia na noite em que Letizia teve um ataque de espasmos.

    Júlla aparentemente percebeu sua aparente confusão e se apressou em explicar.

    — É um lugar onde os jovens vão para aprender.

    Uma antiga memória brotou na mente de Thierry. Um pátio aberto repleto por jardins entrecortados por trilhas de tijolos brancos que interligavam uma dúzia de prédios movimentados por homens velhos e sábios e jovens curiosos e repletos de energia.

    — Um lugar que leciona aos mais capacitados? — perguntou ele.

    — Não, não só a alguns, mas para todos.

    Thierry arqueou suas sobrancelhas de forma inconsciente, sentindo um fluxo de pensamentos e lembranças passar por sua cabeça.

    — Diga-me mais — pediu.

    A conversa se arrastou por algum tempo. Thierry perguntava o que desejava sobre o surpreendente mundo desconhecido e algum dos jovens o respondia.

    Um mundo em que pessoas viajavam léguas em poucas horas. Cruzavam oceanos através do ar. Faziam estradas de ferro atravessadas por gigantes de ferro que se moviam por elas como serpentes. Um mundo em que espadas foram postas de lado em favor de monstruosidades de aço que poderiam matar dezenas em um simples respirar. Em que monstros como ursos carmins e basiliscos não existiam. Um mundo em que ninguém havia ouvido falar de Ellday. Onde as pessoas acreditavam e deixavam de acreditar em Deus. Um mundo completamente diferente do seu, mas tão belo e disforme quanto.

    Tal troca prosseguiu, até Thierry fazer sua última pergunta. A mais importante que conseguia pensar.

    — Se de fato são de tal mundo exuberante, então como e por que viestes a esse?

    Outra vez, os jovens hesitaram, olhando-se mutuamente, de forma que Thierry começava a sentir um certo aborrecimento da situação. Isso até Eduardo roubar a palavra para si.

    — Não deixamos nosso mundo porque quisemos, nem sequer sabemos com muita certeza como chegamos a esse — respondeu, apertando os lábios antes de proferir as palavras seguintes. — Nós morremos, e fomos chamados aqui por um deus.

    O crepitar da lareira estalou alto no silêncio que se seguiu.

    — Um deus? — Thierry repetiu, incrédulo.

    — Ao menos ele disse que era.

    Thierry sentiu seus pés escolherem. Ainda que estivesse sentado, temeu por seu equilíbrio e respirou longa e pausadamente para que o ar não lhe escapasse.

    Ainda que entendesse as palavras era como se sua mente se recusasse a entender o que era dito.

    “Um deus!”, pensou, ao que sua boca se moveu em uma pergunta.

    — Quem? — questionou, desapontando-se com o manear vagaroso que a cabeça de Eduardo fez ao negar.

    — Ele não nos disse nenhum nome — explicou Letizia. — Apenas disse que nos mandou aqui atrás de chaves para libertá-lo.

    — Chaves? — Thierry virou-se para a jovem.

    Sua mente divagava. O que um deus desejaria com chaves. Um deus preso? Seria mesmo um deus? Seria Ellday?

    “Desconfie de suas dúvidas”, as palavras odiosas voltaram a sua mente. Ele franziu as sobrancelhas e tornou a falar:

    — Estão a me dizer que fostes enviados por um deus aqui, e ainda mais — Ele então atentou-se a uma parte da história que se apercebera —, ainda mais, quereis dizer que estão mortos? — perguntou com assombro claro na voz.

    Letízia levou uma mão à barriga, Julla limpou uma lágrima súbita, Caio suspirou, apertando seus punhos um contra o outro, e Eduardo confirmou com uma voz pesarosa.

    — Em nosso mundo, estamos. Ou foi isso que ele falou pra gente. 

    Algo apertou seu peito e Thierry esforçou-se para que sua expressão não o traísse ao sentir uma tempestade de sentimentos mexer com seu interior. Não sabia se deveria abraçar os jovens ou ajoelhar-se clamando a Ellday em voz alta por suas sortes. Ao invés, ele permaneceu sentado.

    — E o que fazem aqui? — perguntou reorganizando tudo que tinha escutado em sua mente.

    — O que ele nos mandou fazer — A voz trêmula de Julla respondeu. — Recolher as chaves e libertá-lo. E depois estaremos livres para ir para casa. Ou ao menos ele nos prometeu isso.

    — Casa? — Thierry repetiu.

    — Nosso mundo, o lugar de onde a gente realmente veio — esclareceu Caio.

    Thierry absorveu todas aquelas palavras, condensou-as em sua mente e as pesou.

    “Desconfie de suas dúvidas.”

    — E como tens certeza que foi Deus quem os mandou para cá? — perguntou em voz alta.

    A pergunta reverberou por um breve momento antes da jovial voz de Letízia se atrever a responder.

    — Fomos trazidos de outro mundo para cá depois da morte e ressuscitados por “ele”. Se não for Deus, é o que chega mais perto disso.

    Thierry ponderou por um momento, fechou seus olhos e suspirou.

    — Creio que tens razão — disse, abrindo-os. — Rezemos para que seja.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota