Índice de Capítulo

    — Sente isso? É cheiro de enxofre, tenho certeza — disse um velho que caminhava à frente.

    — Você nunca sentiu cheiro de enxofre — retrucou outro homem próximo, que seguia na coluna.

    — Você já? — inquiriu o velho.

    — Não.

    — Então como sabe que não é?

    O outro homem suspirou e deu-lhe alguma resposta, que levou a outra réplica, que foi respondida por uma tréplica. Assim continuou até que a discussão se esfriasse e eles falassem de outro assunto. Era sempre assim.

    — Aquele velho deve estar maluco. O único cheiro que sinto é o de suor e roupa suja — Chamlet comentou. Seus olhos vesgos, ao mesmo tempo que encaravam Eduardo, olhavam para frente.

    — Ele está paranoico desde ontem — falou Eduardo, tomando cuidado para não tropeçar em uma raíz.

    A coluna de soldados continuava a adentrar mais e mais a floresta, com sir Alóis liderando a marcha. Lohan seguia ao seu lado a todo momento, cumprindo seus deveres de escudeiro. Eduardo sentia-se grato por isso. O louro não o incomodaria durante a marcha, pelo menos até voltarem à aldeia.

    — E o que aconteceu ontem? Devo ter bebido um pouco além do que devia — Chamlet ponderou, tropeçando nas raízes.

    — E quando você não bebe? — disse Debret, que vinha atrás.

    — Quando não tem bebida — Caio, que nem devia estar ali, falou, antes de começar a rir.

    Chamlet corou.

    — Falas como se não tivesse bebido como… como… Que animal bebe muito, velho?

    — Você — Eduardo falou, evocando uma onda de risadas dos que estavam próximos.

    Chamlet apressou seu passo, abrindo espaço pela coluna e distanciou-se.

    — Mas porque aqueles dois estavam discutindo daquele jeito, mesmo? — perguntou Caio, voltando ao assunto.

    Eduardo coçou a parte de seu rosto descoberta pelo elmo.

    — Nada demais. O velho ficou bêbado e disse que viu um dragão ontem de noite — respondeu.

    — Um dragão… e eles existem — Caio olhou para o velho Debret, esperando uma resposta.

    Debret apenas deu de ombros.

    — Nos contos que ouvi de meu pai e que contei aos meus netos, sim, existem.

    — Então eles são só histórias para crianças — Eduardo lembrou-se de Pierry e das histórias que ele os contou. Com certeza ele contaria para seu filho também.

    — Histórias não surgem do nada. Eles existiram sim, no passado. Mas, desde os meus dias de infância, até hoje, nunca ouvi falar de um ainda vivo.

    — Como sabe? — Caio tinha uma expressão animada no rosto enquanto perguntava.

    — Porque nenhuma notícia de cidades ou reinos reduzidos a cinzas chegou a meus ouvidos. Apenas histórias de bêbados.

    “Mas você é só um plebeu, não?” Eduardo pensou, mas não disse. Ao invés disso perguntou:

    — Se eles são tão fortes, como morreram?

    Debret olhou para cima, puxou ar, abaixou-a e então cuspiu, antes de responder:

    — Daí que vem as histórias. Sir Kovald, o açougueiro, que arrancou o coração da fera alada de Berhög e o comeu. Fineth Deux, o “Olhos de falcão”, que acertou dois dragões de em um só tiro de arco, com uma flecha feita pela deusa da sabedoria Palas. Os feiticeiros de Augurst, que trancafiaram uma das bestas para fazer suas práticas perversas. Todas essas histórias narram lentamente a extinção dessas criaturas. Por isso digo que os dragões vivem apenas em histórias. Pois elas contam suas mortes.

    — Quantos anos elas têm? — Eduardo perguntou.

    — Muitos. Centenas, milhares, talvez. O último dragão que me lembro ter ouvido foi morto pelos mercenários de Dargho Dracma a mais de cem anos.

    — Dargho, o quê? — Caio levantou uma sobrancelha.

    — Uma guilda do leste que mata monstros.

    Eduardo deu um sobressalto.

    — Então, é uma guilda de aventureiros? — perguntou.

    — Aventureiros? — Debret levou uma mão ao queixo — Quase isso. Mas acho que mercenários está mais do que certo também.

    — Vagabundos, você quer dizer, velho — falou um homem com manchas brancas no rosto marcado pelo sol e olhos encobertos pelas olheiras da noite mal dormida.

    — Sim, desgraçados que cobram uma fortuna pra cuidar de alguns ratos no esgoto. Ouvi as histórias dos viajantes. Pedem nabos e cobre por uma dormida de uma noite no seu celeiro, e quando você acorda de madrugada, eles estão escondidos na cama com as filhas do homem.

    — Ainda bem que você não tem celeiro, certo? — Uma outra voz zombou.

    — Cale-se. De qualquer jeito, não precisamos deles — gritou o homem.

    — Aldeões. Detestam forasteiros — comentou Debret.

    Eduardo se manteve em silêncio, lembrando-se dos olhares que recebiam até pouco tempo. O nome de “matador de ursos” ajudou-o a ser mais quisto pelos moradores do vilarejo. Porém ele, Júlia e os outros ainda eram vistos com desconfiança por parte dos aldeões, mesmo que fossem menos a cada dia.

    O velho voltou a falar.

    — Não se importe muito com isso. Afinal não estamos indo matar dragões.

    — Ei, parem de conversa mole aí — Um dos homens que ostentavam o machado coroado pintado num peitoral de ferro gritou. — Você, besteiro, volte para a sua posição — Ele apontou para a retaguarda, onde a unidade de Caio ficava.

    Caio estalou a língua e desapareceu na coluna. Deveria ressurgir assim que o homem fosse embora.

    Eduardo se impressionava com a disciplina dos homens do cavaleiro. Pensava que mesmo em tempos (e mundos) diferentes, os soldados eram iguais.

    Eles continuaram a andar. A expectativa era de que chegassem no lugar onde estaria a toca dos ursos no dia seguinte, o que o deixava um tanto quanto apreensivo. Coisa que parecia ser compartilhada pelo restante dos homens.

    “São apenas filhotes e talvez um macho. Estamos em maior número e preparados. Vai ficar tudo bem”, disse para si mesmo. Ele apertou a lança em suas mãos. Lembrou-se da luta contra os goblins, dos ursos e das várias sessões de treinamento. Podia ser apenas um presente de um deus pagão, e nem ele tinha orgulho disso por não ter qualquer mérito seu, mas sentia-se invencível com aquela arma nas mãos. Disso não tinha dúvidas. Muito embora sentisse haver movimentos que uma lança não podia fazer. Talvez outra arma parecida pudesse.

    Eduardo olhava para baixo enquanto caminhava, prestando atenção aonde pisar, quando viu os pés do homem à sua frente e notou que ele parara. Olhou em volta e percebeu que toda a coluna havia parado.

    — O que houve? — perguntou sem esperar ouvir uma resposta.

    Os murmúrios começaram entre os homens, causando uma confusão de vozes, até um grito atravessar a todos como um tiro de um rifle.

    — Homens, em guarda! — A voz de um dos tenentes do cavaleiro trovejou.

    No mesmo instante, a maior parte dos soldados enrijeceu. Eduardo olhou para todos os lados, confuso, procurando entender o que aquilo significava.

     — Então, parece que os achamos — Debret falou calmamente com uma voz cansada.

    Eduardo entendeu, engolindo em seco.

    Aqueles olhos.

    — Ursos Carmins a frente. Primeira vintena de lanceiros, avancem pelo centro e dêem combate. Primeira e segunda vintena de besteiros, se posicionam à direita e à esquerda do alvo e preparem-se para disparar. Segunda vintena de lanceiros, contornem o alvo e o ataquem por trás. O resto permanece como apoio — bradou o homem.

    Os homens demoraram alguns segundos antes de obedecer às ordens, movendo-se, se separando e então se reorganizando em uma espécie de caos coordenado. Eduardo demorou um pouco mais para lembrar em qual vintena estava.

    “Terceira”, serviria apenas como apoio, observando a tudo. Caio estava na segunda vintena de besteiros. Ele estaria mais próximo dos ursos.

    As unidades avançaram. Não sabiam exatamente a quantos metros os ursos estavam, então cada passo era dado com atenção redobrada. Pelo menos até um dos tenentes gritar:

    — Cem metros. Na clareira. Estão parados.

    Eles continuaram até se verem fora da cobertura das árvores em um grande espaço aberto de grama alta que chegava a altura da cintura. No centro desse espaço, um urso imenso de pelagem vermelha jazia em pé, confrontando-os. A grama sequer cobria metade de suas patas traseiras.

    A primeira vintena avançou, se aproximando do urso, que permanecia imóvel. Os besteiros contornaram o animal a uma distância segura para disparos. Ele não se movia.

    A segunda vintena que tinha um caminho mais longo pela frente contornou a todos, buscando as costas do animal, que continuava imóvel. Eduardo viu Chamlet lá.

    A primeira vintena parou a vinte metros do alvo. Sir Alóis a liderava. Lohan, como sempre, ao seu lado.

    Eduardo sentiu um mal pressentimento. Um gosto ruim atravessou sua boca. Viu que os homens apontavam para algo e, ao prestar mais atenção, viu movimentos na grama, ao lado do urso, e então duas cabeças surgiram.

    “Os filhotes?”

    — Estranho — Debret sussurrou ao seu lado.

    — O quê?

    — Eles já deviam ter nos percebido antes, então por que não fugiram?

    — São animais idiotas, o que espera? — um dos soldados comentou com um sorriso cínico.

    — Instintos… — Eduardo falou, pensativo.

    Quando a segunda vintena se posicionou, o cavaleiro comandou o ataque, ordenando uma saraivada de dardos. Os besteiros dispararam e pequenos pássaros negros encheram o ar por um segundo, a maioria acertando o alvo. O urso permaneceu inerte por um momento, então balançou a cabeça e rugiu, avançando em direção ao cavaleiro.

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