Capítulo 72 - Não pense.
— Avancem — A ordem o acertou como um relâmpago.
A vintena de Eduardo começou sua marcha, avançando em passos ritmados pelo matagal. Não em direção ao centro, onde a luta contra o adulto ocorria, mas em direção ao flanco direito para socorrer um dos grupos de besteiros que tinham sido atacados por um dos filhotes. Os homens gritavam encorajando-se uns aos outros, a maioria bradando pragas ao vento.
Eduardo sentiu seus membros se enriquecerem cada vez mais a cada passo. Já havia lutado e arriscado a vida ao menos duas vezes desde que havia acordado naquela poça de lama cheia de corpos, e mesmo assim, seu corpo temeu o que estava por vir.
— Relaxe garoto — Debret ergueu a voz para ser ouvido —, apenas acerte tudo que estiver usando as nossas cores.
Um sorriso forçado escapou dos lábios secos de Eduardo. Era um filhote, não um adulto, se lembrou. Eles poderiam lidar com ele sem muitos problemas. Foi o que pensou até os gritos soarem mais alto.
Era difícil ver algo além do capacete do homem à sua frente. Mas podia ouvir o rosnado do monstro, e ver os besteiros a correr na direção oposta à que a coluna andava. Não vira a Caio.
— Parar! — A voz do tenente berrou. — Espalhar e erguer lanças!
Eduardo obedeceu mecanicamente aos comandos. Os vinte homens se espalharam pelo mato alto, cercando a figura de quatro patas encoberta pelo mato alto. Os sons de algo sendo partido e estraçalhado podiam ser ouvidos de onde o movimento era visto
O monstro ergueu seu corpo, se pondo de pé sobre as patas traseiras. Eduardo contemplou aqueles terríveis inexpressivos olhos inocentes que tiraram-lhe horas de sono nas semanas anteriores. Estavam cobertos pela densa pelagem carmesim que dava nome à criatura. Seu focinho amarronzado farejava o ar, com a boca aberta, exibindo dentes pintados de sangue. Mesmo sendo um filhote, a criatura devia ter mais de um metro e oitenta, e parecia cada vez maior.
De repente, o urso soltou um rugido. Seus membros músculos, visíveis agora sobre o grosso pelo, pareceram se desconjuntar enquanto o animal berrava. O monstro cresceu, erguendo-se a uma altura superior a dois metros. As garras, sua mandíbula repleta de dentes, o cheiro nauseante que exalava. Tudo pareceu se amplificar em questão de segundos.
Eduardo começou a suar frio. Abriu a boca, engolindo em seco, percebendo que o monstro à sua frente não era mais um filhote.
— Ellday misericordioso — Debret murmurou ao seu lado.
— Que desgraça é essa?
— Um demônio! Um demônio!
— Ellday, proteja-nos!
Os homens diziam para si mesmos.
— Avançar — Gritou o tenente, que não pareceu afetado pela situação, que ergueu sua arma, uma longa haste de guerra e avançou.
Demorou três segundos para o mais corajoso dos homens obedecer a ordem, seguindo o comandante. Então mais cinco avançaram, Eduardo entre eles. Ele parou a menos de dois metros do braço direito do urso, que agora tinha a grossura do tronco de uma árvore pequena. As garras negras pareciam pequenos punhais prontos para rasgar a carne do que se aproximasse.
— Acertem seus membros inferiores — bradou o tenente.
Eduardo obedeceu – seus braços se movendo rapidamente – enfiando sua lança na parte traseira de onde ele pensava estar o joelho da criatura. Os outros fizeram o mesmo em um intervalo de tempo menor do que um suspiro.
O monstro, que ainda berrava e inflava seu corpo, parou de se rugir e ficou imóvel. Então moveu sua enorme pata esquerda em direção ao homem que estava de frente para Eduardo, que teve tempo de apenas erguer seu braço antes de ser lançado e rolar por três metros no chão. A lança ficou fincada no couro vermelho, pendendo e balançando.
— Afastem-se — ordenou o tenente, desnecessariamente, pois metade dos homens já havia se distanciado do urso.
A besta girou em seu corpo, atacando com sua outra pata sem qualquer aviso. Eduardo afastou-se, pulando para trás, quase caindo no chão por conta do peso da armadura. As garras do monstro passaram a dois palmos de seu rosto.
Os olhos negros da criatura fixaram-se nos seus por um momento, e Eduardo temu que o monstro avançasse em sua direção. No entanto, outro homem, mais corajoso ou tolo enfiou sua lança na lateral do abdômen da criatura. O braço do urso desceu sobre ele no mesmo momento, esmagando-o contra o chão. Um gemido agonizante pôde ser ouvido após o baque, e logo foi silenciado quando o urso arrancou a cabeça do homem, puxando-a com suas mandíbulas.
O cheiro de sangue ficou mais forte. O urso ajeitou a cabeça em sua boca e então fechou suas presas mais uma vez sobre ela, transformando-a em mistura sangrenta de carne e ossos estraçalhados.
Eduardo sentiu seu estômago se revirar ao ver aquilo.
Gritos puderam ser ouvidos, e em menos de dois segundos setas zumbiram, acertando o monstro.
— Em posição — O tenente gritou mais uma vez.
Os homens se posicionaram relutantemente ao redor do urso, refazendo a roda.
— Os besteiros nos darão cobertura. Quando aqueles filhos da puta dispararem de novo avancem e transformem esse bastardo em um maldito porco espinho — gritou o tenente.
Metade dos homens avançou em todas as direções, acertando o urso em todas as partes vulneráveis que Eduardo podia pensar. O restante permaneceu posicionado na parte de trás, Eduardo entre eles. O monstro grunhiu e ergueu uma das patas, acertando o lugar onde um dos soldados estava, após este se esquivar. A fileira de trás avançou e fincou suas lanças. Eduardo aproveitou-se da posição agachada que o monstro estava para acertar o pescoço da criatura.
Foi possível sentir a ponta adentrar fundo na carne e atingir os ossos. Sangue negro jorrou, cobrindo a pelagem avermelhada. Eduardo pensou que ela cairia até se erguer abruptamente. Eduardo precisou segurar firme o cabo da lança para não soltá-la.
Uma saraivada de dardos o atingiu da barriga à cabeça. A maioria atingiu seu peito. O monstro não pareceu se importar, avançando em um galope contra um infeliz lanceiro que assustou-se caindo e sendo pisoteado pelo monstro. Os outros, que estavam ao redor, estocavam o monstro pelas costas com as lanças. A criatura ergueu-se mais uma vez, girando suas patas, acertando a cabeça de um dos homens.
O tenente saltou sobre o monstro, acertando sua cabeça com o gume arredondado da haste. A criatura rugiu e girou os braços mais uma vez. O homem soltou a arma antes dos braços volumosos da criatura o alcançarem, cambaleando para trás. A arma ficou presa na parte traseira do monstro, que continuou atacando.
Agarrou um homem que deveria ter o dobro do peso de Eduardo, e o sacudiu no ar, segurando-o com suas garras e presas. Arremessou-o para cima, lançando a muitos metros do chão. Eduardo o ouviu gritar enquanto os sobrevoava, até cair com um estrondo na grama alta, e desaparecer da vista.
O monstro se pôs de pé. Estava, da virilha até a cabeça, repleto de dardos, que foram acrescentados de mais uma dezena no momento em que entrou na vista dos besteiros que acompanhavam tudo à distância. Pontas e cabos quebrados de lanças podiam ser vistos em seu dorso, além da haste do tenente, que pendia da parte traseira de sua cabeça. E mesmo assim aquilo não caia. Por quê?
Ele avançou na direção de Eduardo. Não houve tempo de pensar. Se pensasse, sentiria medo, e se sentisse medo, morreria.
A enorme criatura avançou até estar a meio metro de Eduardo e ergueu uma de suas patas. Eduardo fez algo impensável e estupido, mas que já havia feito antes. Correu em sua direção quase, e se inclinou para trás, deixando seu corpo deslizar sobre a relva amassada. A pesada pata atingiu o chão a poucos centímetros de sua cabeça. Ele ergueu sua lança enquanto deslizava, sentindo a ponta atingir o que pensou se tratar da virilha do monstro.
Tentou puxar a arma, sentindo de pronto que ela não sairia, e não insistiu nisso. Rolou pelo chão, saindo de perto das patas do monstros, se afastando. Quando se pôs de pé ao lado de um dos homens, viu de relance um borrão vermelho se aproximando pela lateral. A pata do urso atingiu o homem ao seu lado, que foi jogado contra ele devido a força do impacto. Eduardo caiu no chão, sentindo o ar escapar de seu pulmão. Percebeu ter mordido a língua. O homem que recebeu o pior do impacto caíra por cima dele sobre o chão. Não se movia.
Olhou para cima, a tempo de ver uma das setas atingindo o olho do urso, que não teve qualquer reação àquilo.
“Isso não morre?”.
Fez um esforço para tirar o corpo de cima de si, e se levantar antes do monstro atacar mais uma vez. Os outros soldados vieram em seu auxílio, atacando com outra meia dúzia de estocadas, atraindo a atenção da criatura e dando-lhe tempo para se recompor.
Ele se agachou sobre a grama. O urso havia lhe dado as costas. Poderia atacá-lo, mas tinha perdido sua arma. Então percebeu que havia uma arma ao seu alcance, nas costas do animal.
Ele respirou fundo e saltou sobre a criatura.

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