Capítulo 73 - Olhos de presa. Olhos sem luz.
Suas mãos seguraram no cabo. Tão firmes que ele pôde sentir cada farpa adentrar a carne. Eduardo apoiou os pés nas costas da criatura, sentindo a robustez do corpo do monstro – parecia uma parede de tijolos – e empurrou seu peso contra eles, puxando a haste.
Quase no mesmo instante, o urso se debateu, movendo-se para todos os lados, tentando alcançar o que quer que estivesse em suas costas. Fazendo com que Eduardo quase soltasse a arma. Não aguentaria muito tempo.
Ele continuou a puxar, vendo a lâmina curva se libertar pouco a pouco da carne vermelha, sujando seus braços com o sangue negro da besta.
O urso berrou, virando-se de um lado para outro. Os outros guardas haviam tomado distância. Não pareciam ter qualquer intenção de intervir ou ajudar Eduardo, que continuava agarrado ao monstro como um enorme carrapato. Suas mãos queimavam com o esforço. Seus braços pareciam ter dobrado de tamanho. A parte inferior de sua coluna estava começando a ficar dormente devido a posição desfavorável. Mesmo assim, ele não soltava.
Ouviu sons semelhantes ao de um saco de ar estourando. Olhou para o lado e percebeu que mais dardos atingiram a criatura. Podia perceber que eram novos por não estarem tão sujos de sangue quanto os outros.
Redobrou o esforço, puxando com mais força. Não queria ser acertado pelas costas e morrer de maneira tão ridícula.
Uma lança perfurou as costas do urso a dez centímetros de sua perna direita. Eduardo assustou-se quase soltando a lança e sendo arremessado quando o urso girou o corpo, se sacudindo. Parecia querer se livrar do incômodo em suas costas.
Eduardo podia ver metade da lâmina ensanguentada sair da carne do monstro, quando sentiu uma dor atravessar seu ombro esquerdo. Olhou de relance para o lado e viu um pedaço de madeira espetado na armadura que usava. Havia acertado em uma parte de couro, não revestida por metal.
O urso girou mais uma vez, e Eduardo foi lançado com força no ar. Ouviu um som grotesco quando foi separado das costas do animal, caindo entre as plantas do matagal. Rolou tentando se pôr de pé, até que alguém o levantou. Viu um rosto com manchas de idade, repleto de rugas e suor. Debret.
— Garoto, achei que o seu amigo fosse o tolo de vocês dois — disse ele.
Eduardo não respondeu, pois teve sua visão puxada pelo monstro que ainda permanecia de pé, retalhando homens com suas garras. Ele viu um deles ter o braço arrancado, e cair no chão enquanto gritava miseravelmente. Quantos haviam restado? Talvez uma dúzia ou menos.
— Fez tudo aquilo só pra pegar isso? — Debret perguntou olhando para a haste que Eduardo ainda segurava. A arma parecia ter se prendido a sua mão.
Eduardo não respondeu, apenas olhou para a arma. Uma lâmina curva que devia medir trinta centímetros, presa a um cabo de um metro e meio, com uma ponta de lança no topo. Por que ele havia se esforçado tanto por ela?
O monstro avançou na direção deles. Eduardo ouviu a voz do tenente ordenando os homens que permaneciam de pé a recuar. Debret pegou em seu braço para afastá-lo, mas o monstro correu em quatro patas, encurtando a distância em uma velocidade aterradora. Não conseguiriam fugir.
Debret gritou uma prece, se pondo em posição de combate, pondo a lança entre ele e a criatura.
O monstro se pôs em pé, erguendo sua imensa pata sobre Debret, fazendo o homem parecer minúsculo. E, para Eduardo, esse momento pareceu durar mais do que tudo que já havia vivido até ali. Moveu seus braços, sem se importar em pensar no que faria. Era uma sensação diferente. A arma simplesmente se moveu com a fluidez de um rio correndo sobre rochas lisas.
Em arco diagonal, a lâmina curva fatiou o monstro, separando três garras do restante da pata, enquanto ela se movia para baixo. O monstro berrou, e Eduardo manteve o curso da lâmina rodopiando sobre seus pés, continuando com o arco, abaixando e erguendo a haste, desferindo outro golpe na criatura, cravando o gume em seu peito. Sangue negro espirrou. O monstro cambaleou, e fez girar sua outra pata. Eduardo rodou, esquivando-se e usando a força centrífuga do movimento para puxar a haste.
Ele, se colocou, agachado, atrás da criatura, recuou a arma e a espetou na parte traseira do joelho do monstro. A ponta se prendendo à carne. Ouviu um urro estridente. Pensou que poderia derrubá-lo, e conseguir acertar o pescoço do monstro. Mas o urso fez algo que ele não esperava. Um movimento que não se lembrava ter visto um animal além do homem fazer. O urso de dois metros de altura deu um pontapé com sua pata traseira.
Eduardo foi acertado em cheio pela perna musculosa do monstro, sentiu as pontas de das garras o pressionarem por sobre a armadura, e foi jogado para trás. Caiu de costas, sem ar e com o peito em chamas.
Olhou para cima, tentando respirar. A sombra borrada do monstro estava mais uma vez tapando o sol e escurecendo o seu mundo. Apertou sua mão vazia, percebendo com desgosto e desespero que havia soltado a arma na queda.
Tentou se levantar, mas seu corpo parecia mais pesado do que de costume. Virou-se e engatinhou, sentindo cada músculo dobrar-se um sobre o outro, em uma contorção de dor. Os gritos ao seu redor estavam dissonantes. Tão altos e ao mesmo tempo tão baixos. Parecia haver água em seus ouvidos. Tudo isso pareceu durar tanto quanto inversamente foi. Não mais do que algumas respirações. Então sua audição voltou ao normal novamente, e tudo o que escutou foi o inumano e visceral rugido do urso carmim acima.
Eduardo teve a visão completa da criatura. Seus olhos negros adornando um rosto de couro escuro e peludo no alto de uma montanha de músculos e pelo carmesim, repleto de pontas de lanças e flechas quebradas, sangrando de duas dezenas de ferimentos, manchando o vermelho vibrante de sua pelagem com o opaco negrume de seu sangue.
Mais uma vez Eduardo encarou o monstro e pensou se ver refletido em seus olhos. Como deveria se parecer para ele?
Então, o urso rosnou e girou o corpo, atacando o que estivesse em suas costas. Eduardo usou todas as forças que ainda existiam em seu corpo para se afastar, arrastando-se e se pondo em pé, a duras penas. Viu por que o monstro se afastara, e que Debret, e mais dois homens – um deles, o tenente – o haviam empalado pelas costas, e, naquele momento, se afastavam do monstro, recuando com passos temerosos.
A criatura investiu contra eles, afastando-se de Eduardo.
Ele olhou para o chão tentando encontrar a haste entre as plantas amassadas, armas quebradas e pedaços mutilados regados a sangue. A encontrou aos pés do urso.
Ele pegou uma lança – que ainda permanecia inteira – e disparou. Suas pernas pareciam ranger pelo esforço, seus pulmões eram duas fornalhas e sua cabeça latejava. Viu mais dardos acertarem-no enquanto avançava contra a criatura.
Ao se aproximar, fincou a ponta na parte traseira da coxa do animal, esperou para ver o movimento da besta e se moveu fugindo de sua vista, procurando seu ponto cego, enquanto recolhia a haste.
Girou-a em arco, acertando a lateral do joelho do urso. E saltou para o lado, rolando pelo chão, a tempo de escapar do braço do animal. Eduardo se pôs em pé e olhou para a criatura, que o encarava com ambas as patas no chão. Uma posição defensiva, pensou.
Ouviu um gemido vindo do chão. Debret estava caído.
Olhou de relance para os lados e não viu ninguém. Caio, Letícia, Theo e até Percy, nas duas vezes em que entrou em uma luta até a morte, dependeu de alguém para o ajudar. Naquele momento não. Estava sozinho.
Teria de confiar em si mesmo. E em deus. Dependia da dádiva do maldito deus. Segurou mais firmemente a haste, sentindo a familiaridade nada comum que sempre sentira quando usava uma arma de cabo longo. Fora aquilo que pegara do baú. E era aquilo que o separava do urso naquele momento.
Avançou em passos cuidadosos, ritmados, notando cada movimento do enorme monstro à sua frente. O urso respirava pela boca com dificuldade. Eduardo olhou mais uma vez aqueles olhos escuros, notando a pouca luz que se refletia neles.
“Como ele me vê agora?”, pensou.
Mais um passo. O monstro avançou, abrindo suas mandíbulas. Eduardo estocou a ponta da haste em sua boca. O monstro tentou agarrá-la entre as patas, mas Eduardo recuou o cabo rapidamente e estocou mais uma vez, afundando a ponta no focinho da criatura. O monstro jogou sua cabeça para trás e bateu uma pata contra o cabo, jogando a ponta para o lado e se ergueu sobre as patas traseiras. Os dois metros carmesins cresceram contra Eduardo. Ele não pensou e nem sentiu medo, apenas continuou a se mover.
Deu uma passo para trás e escapou do abraço de urso que se formaria. O urso havia se abaixado, para agarrá-lo, ficando exposto. Então estendeu as mãos, erguendo a arma. Desferiu um golpe certeiro na lateral da cabeça do monstro. A lâmina se enterrando fundo na carne. O urso se debateu e balançou seus braços. Eduardo girou o cabo de um lado para o outro, fazendo a lâmina abrir ainda mais a ferida. O urso caiu sobre as patas, urrando. Em um último esforço, fez menção de se levantar, porém, cerca de meia dúzia de homens surgiram de ambos os lados e cravaram suas lanças nele.
O ar saiu de seu nariz e boca em um último suspiro, e Eduardo viu que em seus olhos não se refletia mais nada.
Olhou para Debret e correu em sua direção, se ajoelhando ao seu lado. Suspirou de Alívio quando percebeu que ele ainda respirava. Então pediu que cuidassem dele.
O tenente surgiu logo após, conferindo o animal. Parou de frente para ele, tirou uma espada de sua cintura e afundou-a entre os olhos sem vida da besta. Puxou-a de volta, suja até a metade pelo sangue negro e então virou-se para Eduardo, encarando-o com seus inflexiveis olhos claros.
— Matador de ursos — bradou, erguendo a espada.
— Matador de ursos — acompanharam os outros.
Eduardo estava atônito. Não sabia o que pensar e nem teve tempo. Sua atenção foi tomada pelos sons da luta que ainda ocorria perto dali.
— Os homens que ainda permanecem de pé. Reagrupem-se e me sigam. Vamos ajudar sir Alóis no centro — ordenou o tenente em voz alta.
Eduardo suspirou. Ainda estava de pé, então obedeceu, começando a andar. De repente ouviu um som entre os matos, e vultos passsaram rapidamente por sua vista, seguindo em direção à luta no centro.
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