Capítulo 74 - A alegria de um matador.
O vento soprou sobre o rosto de Caio, trazendo o fedor de sangue ao seu nariz. Ele sentia gotas de suor frio escorrer do seu cabelo até o queixo. A grama alta farfalhava, remexendo e debruçando-se violentamente. Era possível ouvir homens gritando de todas as direções, mas não conseguia entender o que diziam. De certo, falavam do monstro à frente de Caio, a qual surgira sem que ele percebesse.
Olhos negros, pelagem carmesim, cheiro podre de carne estragada. Dois metros de altura em pé e enormes braços volumosos. Um adulto. Bem diferente do filhote que os atacara um momento antes. Onde estava? E de onde havia saído aquele monstro.
Lanceiros correram e o cercaram, prendendo o urso em uma roda de ferro e couro. Uma posição que Caio vira em vários treinamentos. Ele se afastou alguns metros, e preparou sua besta. Viu outros besteiros se posicionarem atrás e ao lado dele. A maioria porém pareceu fugir.
Um som chamou sua atenção. Um pesado baque seguido de um grito agonizante de dor. O braço da criatura havia descido sobre um infeliz lanceiro. O monstro o agarrou com a boca e o lançou sobre os outros.
Caio posicionou sua besta sobre o ombro e esperou pela ordem de disparar – até se lembrar do tenente sendo erguido pelo urso adulto e perceber que ela não viria. Então apertou o gatilho, disparando o dardo, que voou a média distância até o olho da criatura, que não esboçou qualquer reação. Suspirou frustrado, recarregando a arma, até ouvir os gritos dos homens aumentar. Olhou para frente para ver que o monstro havia escapado do cerco – uma lança havia sido cravada em seu ombro – e corria em sua direção, cobrindo os metros que os separavam com um galope aterrador.
Rapidamente, Caio pulou para o lado, dando uma cambalhota desajeitada, que deu impulso suficiente para que escapasse das presas do animal, antes que este fechasse suas mandíbulas. Continuou girando, escapando do braço volumoso que varreu a grama logo após. Então se ergueu, apontando a besta a poucos centímetros do focinho da criatura e disparou.
O dardo atingiu o espaço entre os olhos do monstro, que voltou o corpo para trás e vociferou um bizarro grito, que Caio não sabia ser de dor ou fúria. Gritou e se debateu o corpo, mas não caiu.
Os lanceiros se aproximaram e Caio deu passos para trás, recuando lentamente. Iria se afastar mais uma vez, e continuar a atirar. Ou era isso o que pretendia, até o monstro investir sobre ele mais uma vez.
A criatura se pôs em pé, cobrindo-o com uma sombra assombrosa e então caiu sobre ele. Caio evitou as patas repletas de garras negras, que acertaram o chão, bem próximas a sua cabeça, mas se viu preso bem abaixo do monstro, que se mantinha de quatro. Olhou para o lado, vendo as botas dos lanceiros se aproximarem. Tentou armar sua besta, mas a sentiu ser puxada. Era o monstro. Ele abocanhara a arma de Caio, e a sacudiu. Caio não soltou e terminou por ser arrastado junto da besta.
Uma pata se pressionou sobre ele, prendendo-o no chão e Caio sentiu as pontas das garras sobre a armadura de couro. O monstro puxou a besta com sua forte boca e Caio sentiu alívio pelo braço não ter sido levado com ela. Ele ouviu os sons da besta mastigando a arma e estalou a língua. Escorregou a mão sobre a cintura e tirou uma adaga do cinto. Tomou impulso e enfiou-a na barriga do monstro, repetidas vezes.
O urso grunhiu, e se ergueu. Caio rolou e correu ainda curvado. O braço do monstro o acertou por trás erguendo-o do chão. Ele caiu por sobre a grama, sentindo dor em mais lugares de seu corpo que não sabia existirem.
O monstro se agigantou mais uma vez acima dele. Caio tentou se levantar, mas uma dor atravessou sua perna, e seu corpo cedeu.
“Filho da puta, desgraçado, boiola do cu largo”, pensou. Sempre xingava os outros em seus pensamentos quando as coisas davam errado. Fora assim na quadra naquele dia, e naquele momento também.
Então um raio de luz refletiu em seus olhos, e um clarão dourado pulou sobre o urso. A criatura se afastou. Caio ergueu a cabeça e olhou melhor para seu salvador. Reconheceu o cabelo louro e a pose de combate singular. Lohan sorria frente ao urso que impôs medo em todos os homens ali presentes.
Caio sentiu um calor emanando do corpo do garoto revestido de metal que parecia ter a sua idade. Sua armadura prateada era revestida de rabiscos alaranjados, que pareciam mais fortes naquele momento.
Ele avançou. Se pôs a menos de um metro da criatura, desviou de suas garras e estocou a lâmina no joelho. Caio pode ouvir o som do aço adentrando a carne, e então o berro de dor do animal. Fumaça negra começou a ser expelida, junto ao fedor de algo queimando. Imediatamente, Lohan retirou a espada do monstro, girou sobre seus pés, passando por debaixo de seus braços e escapando de suas garras, enquanto cortava suas pernas com a lâmina, que deixava um rastro negro no ar.
Alguém ajudou Caio a se levantar e o arrastou para longe da luta. Ele reparou que a maioria dos homens se mantinha afastada da ação, apenas observando a luta do jovem louro com o urso vermelho.
Vez ou outra um dardo acertava as costas do monstro. Um entre vários que o erravam. Caio os via passar e voar para longe.
Lohan continuava a se mover, sem demonstrar qualquer temor ou hesitação. Movendo-se com uma velocidade surpreendente para alguém revestido de aço. Vez ou outra a espada rebatia as garras do urso, que recuava frente a lâmina prateada, deixando um rastro de fumaça no ar. Caio se espantou ao ver o escudeiro aguentando o peso dos golpes da besta, e os rebatendo. Ele sorria de forma juvenil, como se estivesse se divertindo, prestes a finalizar a última fase de um jogo.
O monstro grunhia e berrava cada vez que encostava na lâmina. O ar ficava cada vez mais carregado com o cheiro da fumaça negra expelida pelos embates, tornando difícil respirar. Lohan não parecia se importar. Movia-se com destreza e prescrição, mais até do que Eduardo. Pelo menos com a espada.
Ele escapou mais uma vez das garras do urso, deu um passo para o lado, se posicionando no flanco aberto do animal e enfiou sua espada onde Caio imaginou estar as costelas. O urso berrou de dor e virou-se. Lohan saltou para trás, correu para suas costas, contornando-a. O urso acompanhou-o com a cabeça. E então, com um impulso súbito, o escudeiro mudou de direção, enganando o monstro. Ele saltou sobre a fera, girando a espada. A lâmina assobiou no ar antes de atingir o pescoço desprotegido do animal. Caio escutou um chiar parecido com o de lenha queimando na fogueira quando o aço cortou a carne. Não viu sangue, apenas fumaça, tão negra quanto o próprio sangue da criatura.
O monstro cambaleou para trás, rasgando o ar com golpes errantes. Uma das patas atingiu o escudeiro, que havia caído a alguns metros do monstro. Ele deu três passos para trás com o impacto e se recompôs. A armadura sequer havia sido arranhada. As marcas alaranjadas pareciam mais vibrantes do que antes. Caio fez questão de tentar se lembrar disso. Theo poderia querer saber dessa informação depois. Continuou a observar a luta.
Correndo, Lohan aproximou-se mais uma vez do monstro, que atacava a esmo e enfiou a espada em seu peito. O urso berrou e então o prendeu em seus braços, o que só pareceu ajudar ainda mais o aço a adentrar em sua carne. No entanto, Caio imaginou que a pressão que Lohan sentia deveria ser brutal, dado os braços volumosos do monstro.
O urso parecia respirar com dificuldade. Fumaça negra emanava dele, como se saída de uma fogueira repleta de lixo em um terreno baldio.
— Vamos, o que estão esperando? Ajudem-no. Matem aquela besta — ordenou um homem trajando um peitoral azulado, que parecia ser alguém importante.
Os lanceiros se apressaram para obedecer quando ouviram um grito.
— Parem! Não interfiram — Era uma voz imperiosa e juvenil. Vinha do monstro. Ou pelo menos de seus braços. Era Lohan.
Caio – boquiaberto – pensou que ele havia enlouquecido. Os lanceiros pararam, observando a cena. O urso também permaneceu imóvel – a fumaça subindo aos céus continuamente. Até que ele caiu para trás com um pesado estrondo.
O silêncio entre os homens que observaram a luta persistiu, até que um movimento fosse visto sobre o dorso do animal. Lohan se levantou e ergueu sua espada prateada coberta de fumaça negra emanando da metade até a ponta da lâmina.
Um grito de aclamação ecoou e os soldados ergueram seus braços. Caio, contagiado pela energia e pelo calor da luta, gritou mais alto que os demais. Deveriam comemorar, sim, pois o filho da puta havia morrido finalmente.
Ele olhou para Loham. Eduardo não parecia gostar dele, mas Caio se viu encontrando motivos para admirá-lo.
Os sons de alegria persistiram, até cessarem e darem espaço para a luta que ainda ocorria no centro.
— Não acabou, homens — gritou o homem de peitoral azulado. — Vamos fornecer apoio a sir Alóis no centro.
— Não há necessidade. Meu senhor já decapitou o monstro. Por isso eu vim aqui ajudá-los — revelou Lohan.
— Então por que ainda ouvimos esses gritos? — questionou o comandante.
Lohan deu de ombros.
Caio virou-se naquela direção e viu o motivo.
Seus bons olhos viram longas caudas finas e sinuosas garras do tamanho das mãos de um homem adulto. Cabeças achatadas sobre pescoços e corpos delgados de escamosas peles esverdeadas. Viu ao menos três animais de pelo menos um metro e meio saltando sobre a grama, antes de se lançar sobre um dos pobres homens no centro. Então lembrou-se das palavras que escutou mais cedo naquele dia, de um homem bêbado.
— Dragões — falou para si mesmo em voz alta.
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