Índice de Capítulo

    A grama alta ao seu redor chacoalhava, balançando ao vento. Gritos se alastraram. De fúria, de dor, de morte. O que Chamlet prestava atenção, no entanto, era em outro som. O chiar gutural e estridente dos monstros que os haviam atacado.
    Alegrara-se quando o cavaleiro decepou a cabeça do urso. Apostara uma moeda de prata que sir Alóis mataria o urso pessoalmente, e já sentia o toque frio do metal em suas mãos.
    Então as criaturas vieram. Rápidas e brutais, arrastando homens para dentro da grama, onde apenas seus gritos podiam ser ouvidos.
    Eram menores e menos imponentes do que o urso, mas algo em seus olhos fizeram a coragem no peito de Chamlet derreter como manteiga posta ao fogo. E o seu som, como os demônios antigos dos primeiros dias, antes de Elday pôr fim a era de Baallasay. Criaturas não criadas por mãos divinas, que não deviam existir entre os homens. Criaturas das trevas.
    Um braço após o outro, ele seguiu, as pernas acompanhando os movimentos. Arrastava-se pelo chão tão rápido quanto podia tentando se afastar da luta.
    Conseguira fugir um momento depois da vintena a direita chegar em socorro, após os quatro basiliscos saltarem sobre os besteiros e outros seis avançarem contra as extremidades da formação. Um deles passou a menos de um metro de Chamlet, rasgando o pescoço do homem à sua esquerda. Tal visão retirou o que sobrara de sua coragem. A cauda ainda batera em seu rosto, derrubando-o no chão. Ele caiu, virou-se e engatinhou adentrando o matagal, sem se perguntar se outro monstro não estaria ainda escondendo-se entre a vegetação. Até aquele momento nenhuma delas o havia encontrado.
    Ele alcançou as árvores e finalmente se levantou, apoiando-se em um tronco.
    Viu ao longe a luta. Os homens em agitação frenética. Outros, das demais vintenas, correndo em direção ao caos.
    Foi então que um peso semelhante ao de um coice de cavalo bateu contra seu peito. Não devia ter fugido. Não devia ter abandonado seus companheiros. Se eles morressem, do que adiantaria a moeda de prata em seu bolso. Como poderia encarar seu velho pai após envergonhar-se de tal forma. Envergonharia-se mais mentindo?
    Tentou dar um passo à frente e voltar, mas suas pernas não se moveram. Do que adiantava? O que poderia fazer? Não sabia. Sentia apenas uma sensação de vazio e desagrado com sigo mesmo.
    Andou pela floresta, sem conseguir pensar direito. O canto das aves contrastava com os distantes sons estridentes e apavorantes da luta que ainda se desenrolava. O que fazer?
    Poderia andar até a aldeia, mas o que diria? Os moradores o culparam?
    “Não.”
    Aquela situação não era sua culpa, afinal de contas, não faria sentido culpá-lo. Poderia culpar apenas o azar. Ao menos isso o fazia sentir-se melhor, mesmo que um pouco.
    Sentou-se aos pés de uma árvore – próxima a clareira -, tirou o capacete, deixando-o rolar ao seu lado e suspirou. Ainda podia ouvir os gritos em sua cabeça. Talvez já estivessem todos mortos. Sir Alóis, os tenentes, o velho Debret e Edwardo. E Caio. Mas deixar de ouvir o desgraçado chamando-o de “olho trocado” não o desagradava.
    Riu um pouco, até amargar a si mesmo e a escolha que fizera. Fechou os olhos e deixou a mente flutuar, afastando-se daquele momento. Os sons das árvores e aves se misturaram em sua cabeça, não escutava mais os gritos. Continuou de olhos fechados. Não poderia dizer se havia adormecido ou não, ou quanto tempo se passara, apenas que não queria abrir os olhos e se levantar. Não queria encarar o mundo após sua decisão.
    Então ouviu passos e uma voz.
    — Outro morreu — Falou uma voz delicada, mas grave demais para ter saído de uma mulher.
    — Com esse já foram quantos? — Chamlet ouviu uma segunda voz, mais poderosa e ríspida, perguntar.
    — Mais do que eu gostaria — respondeu uma terceira, solene e desanimada.
    Chamlet abriu os olhos e se debruçou sobre o tronco, olhando por cima do ombro à procura da origem das vozes. Viu três homens trajando capuzes cor de musgo, parados entre as árvores a mais de uma dezena de metros de onde ele estava. A árvore o escondia da visão deles. Um era alto, possuía ombros largos e cabelos castanhos claros, visíveis por conta do capuz abaixado. Carregava uma espada na cintura, cuja bainha possuía um formato estranho a Chamlet. Ao lado havia um segundo homem, menor do que o primeiro. O capuz lhe cobria a cabeça. Chamlet via apenas o brilho que se refletia em seus dedos a cada gesto de suas mãos.
    “Joias”, percebeu. Mas o que estaria, alguém com tais riquezas, fazendo naquele lugar?
    Então notou outro que estava mais à frente. O capuz abaixado revelava um pescoço curvado e cabelos negros que desciam até os ombros magros. Olhava para a clareira, relatando aos outros dois o que parecia ver. Eles conversavam em alto e bom som, chegando a quase gritar algumas vezes. Não pareciam se importar em ser ouvidos.
    O que eram? Ladrões?
    — Dez basiliscos de Êubano e três ursos carmins. Meu senhor receberá tal notícia com desagrado — O homem alto com a espada curva anunciou com uma voz pesada.
    — Sete, na verdade — o homem com a voz delicada o corrigiu.
    — Mais do que o senhor mago gostaria, disso sabemos.
    “Um mago?”, Chamlet engasgou surpreso. Magos eram raros. Ao menos ele nunca havia visto um. Mas por que eles estavam falando tão casualmente sobre os monstros que os haviam atacado.
    — Guarde seu desdém para si, cavaleiro. Embora tenhamos perdido mais bestas do que o esperado, o experimento foi um sucesso — disse o homem encapuzado.
    — Um sucesso? Se não estivesse tão preocupado em matar o cavaleiro, talvez poderíamos ter poupado mais algumas criaturas — ponderou o homem de voz delicada.
    — Era uma oportunidade perfeita, afinal, não acredito que teremos outra oportunidade de encurralá-lo de tal forma — explicou-se o homem encapuzado, que fora chamado de mago.
    Ele gesticulava com as mãos a cada palavra, fazendo o brilho dançar entre as jóias de seus dedos.
    — Na realidade, não creio que o tenhamos encurralado — observou o homem de voz delicada. — Ele cortou os basiliscos como carne de Mervoirs. Que saudade tenho do sabor dela — concluiu em tom sentimental.
    — Sir Alóis Bellanger. Que guerreiro formidável, tal como eu esperava — disse o homem alto, sua voz parecendo o lixar de um marceneiro enquanto constrói um móvel. — Ellday o dotou com uma perícia admirável, e como tal, deve morrer pelas mãos de um guerreiro superior a ele. Não pelas garras de tais criaturas vis.
    — Terá sua chance, “guerreiro superior”, após o inverno, uma vez que o cavaleiro ainda caminha — resmungou o homem chamado como mago.
    “Como assim, inverno?”, perguntou-se Chamlet. Algo estava muito errado, percebeu. Mas então se apercebeu das palavras trocadas entre os homens.
    “… uma vez que o cavaleiro ainda caminha”, então ainda estavam vivos, percebeu com alívio.
    — Quantas ainda lhe restam — Ouviu o homem a observar a clareira perguntar.
    — Uma — respondeu o mago, erguendo uma das mãos.
    No mesmo momento, um dos brilhos se apagou em seus dedos.
    — Então é melhor chamá-los de volta. Não sabemos quanto a guilda pode cobrar por mais.
    Então é vantajoso que ainda tenhamos alguns — disse o homem de voz delicada.
    O mago não respondeu. Um dos anéis em seus dedos brilhou mais intensamente e depois voltou ao seu normal. O homem de voz delicado virou-se para os outros dois e começou a falar:
    — Creio já ser o suficiente. Devemos voltar e relatar o caso ao nosso senhor. Creio que, apesar do custo, ele se alegrará do resultado, mago.
    — A isso, me sinto grato — respondeu o mago, curvando-se.
    — Devia sentir-se mesmo — grunhiu o homem alto. — Nosso senhor de Archambault é bem generoso com os que o agradam.
    “Archambault?”
    Ao ouvir o nome, Chamlet se sobressaltou. Sua mão acabou por bater com força no capacete que rolou pelo chão até esbarrar em uma árvore.
    Ele xingou em voz alta, escutando as vozes dos homens que observara. Agora eles o observavam.
    O homem alto se pôs em posição de combate, enquanto Chamlet conseguia ouvir os outros dois dando-lhe ordens apressadas.
    Chamlet estancou na mesma posição e por meio segundo não soube o que fazer. Então quando viu que o homem alto começou avançar sobre ele, pulou como uma lebre e desatou a correr por entre as árvores. Suas pernas leves como penas de Margacha. O coração pulsando em um frenesi eufórico. Olhou para trás viu o homem parado, olhando para ele, um braço estendendo uma espada curva para o lado, como se estivesse pronto para atacar.
    Parou de olhar antes de entender o que havia ocorrido. Precisava fugir. Fugir e voltar para seus companheiros. Fugir e avisar sobre o inverno, sobre o mago, sobre o nome que escutara. Contaria e poderia se sentir redimido por fugir.
    Então as pernas lhe pareceram faltar. Não as mexia mais. Seu corpo, a parte que ainda sentia, lhe pareceu flutuar no ar, e então se viu rolando pelo chão. Um mundo verde, coberto de luz e sombras girava ao seu redor até seu corpo finalmente parar de se mover.
    Não sentia suas pernas e temeu isso até reconhecê-las caídas a meio metro de distância de seu rosto. Por algum motivo, não sentiu medo ou dor ao perceber o que havia ocorrido. Sua mente parecia amortecida demais para tal coisa.
    Uma sombra se aproximou, parando a um passo de pisar em sua cabeça, e então o cutucou bruscamente com o pé.
    — Ainda vive — A voz lhe pareceu um eco distante.
    — Mate-o logo e vamos embora antes que outro deles nos veja — ordenou outra voz, e foi a última coisa que Chamlet ouviu.

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