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    — Está sublime — Senhora Arianne disse após analisar o bordado em que Carmen trabalhará na semana que se passara.

    Um labirinto de rosas, vinhas, e outras plantas que ela simplesmente inventara, gravados por sua linha em um vestido dourado, o qual julgará como longo demais para ser usado.

    Cada planta bordada no tecido dava uma cor contrastante à paisagem que ela moldara sobre aquele mundo dourado. Verde, roxo, vermelho, azul, rosa – cada pequeno detalhe pigmentado sendo distribuído de uma forma harmoniosa e exuberante. Nem ela acreditara que havia feito algo tão belo e bem trabalhado. Se perguntou se foi assim que artistas antigos se sentiram quando pintavam aqueles quadros coloridos repletos de detalhes minúsculos.

    Ela sorriu.

    — Obrigada, madame — respondeu. No que constava a Carmen, aquele bordado no vestido era melhor do que Monalisa.

    — Parece-me competente — disse a senhora Marjorie, no tom mais seco e desgostoso que Carmen já ouvira. Fazer aquela mulher amarga como café preto ser obrigada a lhe elogiar era a prova de que o vestido havia ficado bom.

    — Maravilhoso, minha querida amiga — Uma voz cintilou em seu ouvido e pequenas mãos delicadas se apoiaram em seu ombro. Carmen não precisava virar-se para saber quem era.

    Olhos grandes, pele quase pálida e o rosto magro. Podia bordar seu rosto em um tecido sem o desprazer de olhá-lo por muito tempo.

    — Obrigada — respondeu, tentando esconder qualquer uma das emoções que aquela voz lhe causava.

    — Desejo um dia ser capaz de fazer tal coisa — Natalie soltou Carmen e se aproximou do vestido, quase tocando-o.

    Carmen abriu a boca para reclamar, mas sentiu algo subir por sua espinha, uma sensação inquietante. Logo após, outra voz soou pelo cômodo, atraindo a atenção de todas.

    — Vejo que está finalizado — Madame Jackelin atravessou a sala. Seus passos, maneira de agir e gestos, embora aparentassem ser descontraídos, eram feitos com a elegância natural de um cisne levantando voo.

    Senhora Arianne e senhora Marjorie se afastaram, abrindo caminho para deixá-la passar e inspecionar a peça. Carmen e Natallie fizeram o mesmo.

    Madame Jackelin descreveu um círculo em volta dela, estendendo a mão várias vezes e quase a tocando em diversos pontos. Concluiu sua volta e parou de frente para o vestido, permanecendo em silêncio.

    — Marjorie — chamou.

    — Sim madame.

    — Com a ajuda da senhorita Natallie, faça os arranjos nos lugares em que eu lhes mostrei. Ariane traga para mim o baú que recebemos de Diane — falou, sem tirar os olhos do vestido.

    Ariane saiu da sala no mesmo instante para atender a sua ordem.

    Carmen olhou para Natallie, sentindo desgosto ao ver aqueles olhos grandes brilharem e a garota sorrir.

    — Eu posso ajudar a fazer os arranjos também, madame — falou.

    Madame Jackelin olhou-a sem virar o rosto.

    — É desnecessário. Sua parte foi concluída. Está liberada — Retornou a olhar para a roupa.

    Ariane ressurgiu segurando uma caixa que Carmen reconheceu. Era a que ela fora buscar na casa da velha. A memória de Eduardo a ignorá-la naquele dia aumentou ainda mais o desagrado que sentia naquele momento. Porém, Carmen sentiu algo estranho vindo da caixa. Algo que não havia sentido naquele dia, mesmo carregando por todo o tempo que levará da casa da velha até o ateliê. Era a mesma sensação que lhe ocorrera quando Madame Jackelin se aproximou.

    Não acreditava em médiuns, ou coisas paranormais – pelo menos em seu outro mundo -, mas aquilo lhe pareceu uma situação saída de algum filme de feitiçaria.

    A senhora Ariane depositou a caixa em uma mesa e madame Jackelin a abriu. Carmen pôde vislumbrar o brilho de seu conteúdo, e tremer com a sensação que ele lhe passava. Gemas cintilantes, de variadas cores, cintilavam oscilantes como vagalumes.

    Carmen sentiu-se hipnotizada. Nunca tinha visto jóias como aquelas. O que seriam? Esmeraldas, rubis, diamantes? Nunca havia segurado um em sua vida, nem percebido o quão belos eram, até aquele momento.

    — O que faz ainda aqui, menina? — bronqueou a senhora Marjorie. — Ouviste a madame Jackelin. Pode sair.

    Carmen despertou de seus pensamentos. Olhou desconcertada para a irritadiça senhora Marjorie e para a indiferente madame Jackelin. Senhora Ariane acenou gentilmente com a cabeça. Natallie sorria inocente, mas Carmen podia perceber os traços de desdém.

    Ela acenou afirmativamente e então saiu.

    Vagou pelo corredor com passos lentos, adentrando a sala de trabalho principal do ateliê, onde duas dezenas de garotas bordavam flores, animais e padrões xadrez.

    Desde o dia em que madame Jackelin a pedira para ensiná-las os padrões que a sua avó fazia, fora dada ordem para todas as garotas da produção fizessem o mesmo, aprendendo a desenhar com linha e agulha. Ela em especial ficava a maior parte do tempo na sala de costura pessoal de madame Jackelin, bordando as peças a própria madame costurara. Carmen sentira-se importante. Era bom ter um lugar onde ela não estava à sombra de ninguém. Ao menos até Natalie se destacar entre as demais e ser chamada para trabalhar junto às senhoras Marjorie e Ariane.

    A garota não era tão habilidosa ou bonita quanto Carmen – ao menos era o que pensava. Mas aprendia rápido e caíra nas graças das mulheres mais velhas, ao ponto de naquele momento estar mexendo no trabalho de Carmen, realizando o acabamento do vestido.

    “O que estou pensando?”, disse a si mesma “Isso lá é importante?”. Não, não era. Havia problemas maiores para pensar. Júlia, o velho Thierry, Eduardo. Problemas de verdade. Mesmo assim, continuava irritada com aquilo.

    Ela atravessou a sala de costura e saiu pela porta da frente. Uma vez liberada da sala de madame Jackelin, poderia ir embora. Afinal, não trabalhava mais na sala principal junto das outras garotas. Theo detestava isso, mas não importava. Carmen achava um alívio. Já poderia ir para casa.

    Desceu a rua principal, em direção ao portão que levava para o caminho entre os campos. As pessoas a olhavam de relance. Ela se perguntava se estavam admirando sua beleza, ou ainda estavam surpresas e receosas com a garota que vivia junto a “sir Thierry, o abençoado”. Sempre achara estranho que ele não tenha sobrenome. Sir Alóis “Beringela” tinha.

    A tarde já se desvanecia nos céus de nuvens alaranjadas acima dos campos. Alaranjadas como estavam se tornando as folhas das árvores, que começavam a perder a cor verde.

    “Outono”, pensou. Então aquele mundo também tinha estações parecidas com as da terra. Pelo menos com uma parte dela.

    “Laranja, amarelo, vermelho”, reparou nas cores do céu que iam se misturando à medida em que o sol descia rumo ao horizonte. “As jóias na caixa tinham essa mesma cor…”, refletiu lembrando-se de minutos antes, antes da vergonha ser sentida em seu ser. Desejava ver as jóias novamente. Toca-las. Usá-las. Lembrou das cores, dos formatos, da estranha sensação que passavam. Muito semelhante a que sentirá quando aquela luz dourada a atingirá na noite em que entraram no escritório de Thierry.

    Desde então percebera algo estranho no mundo à sua volta. Tudo parecia mais vivo de certa forma. Letícia e Theo pareciam sentir o mesmo. Os dois diziam que conseguiam perceber quando certas pessoas se aproximavam, mesmo que não as reconhecessem, tal como Carmen sentirá um calafrio quando madame Jackelin entrou na sala, antes de vê-la.

    Também sentia o mesmo quando se aproximava dos dois. Uma leve vibração se espalhava por seu corpo e permanecia até que a pessoa em questão se afastasse. Ok que era inquietante.

    Olhou em volta, não havia ninguém. As pessoas mais próximas eram silhuetas longínquas trabalhando nos campos, realizando a colheita.

    Aumentou o passo, seguindo pela trilha, próxima a uma amurada de pedras. Então pulou sobre ela e correu, saltando entre as falhas irregulares causadas pelo desgaste nas rochas. Corria sem cair ou escorregar, mesmo que o vestido não a ajudasse. Aquilo também chamava a sua atenção. Nunca teve uma coordenação ou equilíbrio tão bons como naquele momento.

    Dádivas. Ela pegara uma adaga. Ou assim foi o que o sabe tudo do Ítalo chamou. O que tinha a ver suas capacidades físicas melhoradas com uma lâmina tão pequena? Não sabia, nem se importava, contanto que isso significasse a sua sobrevivência naquele mundo, como no dia em que os goblins a atacaram.

    Parecia ter sido a tanto tempo, mas fora a apenas três meses. Uma estação. Ela demorara menos tempo para testar suas habilidades longe da vista dos outros.

    Poderia pular e escalar grandes alturas. Tinha habilidade e agilidade nas mãos para manusear qualquer tipo de ferramenta ou arma pequena. Isso além de outras coisas. Também mantinha sempre uma lâmina escondida no vestido, junto a cinco dezenas de agulhas que sumiram da linha de produção de madame Jackelin. Que não pareceu sentir falta delas.

    Continuou a correr, sem se importar com o vento que soprava, sacudindo o vestido cor de pêssego. Seu coração palpitava. Queria fazer mais. Pular em alturas mais elevadas. Testar a si mesma. Mas não havia muito o que fazer naquele momento, naquela vila. Talvez isso mudasse quando Eduardo voltasse. Era certeza de que Thierry os expulsaria, e já planejavam deixar a vila de qualquer maneira. Tinham dinheiro para tal, de acordo com Théo e já não tinham desculpas para ficar.

    No entanto, Júlia ainda permanecia desacordada fazia três dias.

    Eduardo provavelmente insistiria em permanecer, tanto para esperar pela melhora de Júlia, quanto para tentar acalmar e reconstruir a confiança de Thierry. Por algum motivo ele dava muita importância a opinião do velho. Todos davam.

    Eduardo ficaria triste por conta de Júlia, isso era certo. Carmen não via outra coisa a fazer a não ser consolá-lo por sabe-se lá quanto tempo demorasse até a amiga melhorar. Essa perspectiva não lhe era ruim.

    Pelo menos até Júlia despertar.

    Carmen parou de correr ao ver uma multidão ao longe, seguindo por um caminho separado entre os campos. As pequenas silhuetas dos agricultores corriam para ela. Viu o reluzir metálico que só podia ser de armaduras e armas se estendendo por toda a coluna que seguia em movimento e compreendeu quem eram.

    Os soldados retornavam. Eduardo retornava.

    Ela correu, adentrando e atravessando os campos. Correu passando por entre os agricultores que ainda colhiam o trigo. Esquivando-se deles com agilidade. Apesar da longa distância, levou apenas alguns segundos. Se espremeu por entre os homens que se reuniam para olhar, animados, a coluna passar.

    Viu os homens armados, caminhando em um passo vagaroso pela estrada. Alguns carregavam lanças, e estavam vestidos de aço, couro e malha. A maioria, no entanto, se vestia usando roupas grosseiras e rasgadas e carregavam liteiras feitas de madeira com homens claramente feridos estendidos sobre elas. Como também guiavam carroças com um panos para cobrir a carga. Carmen podia sentir um cheiro pútrido vindo delas, além de ouvir clamores agonizantes dos homens nas liteiras.

    Procurou com os olhos na coluna que passava, mas não achou quem procurava. Então viu Caio e correu em sua direção, notando ao se aproximar que ele vestia roupas rasgadas e carregava uma liteira junto a um velho que ela não reconheceu. Mas o que a chocara foi quem estava deitado na liteira.

    Eduardo jazia enfaixado do peito a cintura por panos úmidos e vermelhos de sangue. Seu rosto estava pálido. Exceto por uma cicatriz vermelha que ia da orelha esquerda aos lábios. A pele do ferimento era lisa e inchada, como se tivesse recém fechado. Um ferimento parecido podia ser visto em seu braço esquerdo que pendia na lateral da liteira e o direito estava imobilizado. O que não era comum acontecer tão rápido para um corte daquele tamanho.

    Caio olhou para ela quando a percebeu.

    — Ah, é… Carmen. Pode ir na frente pedir para o senhor Thierry preparar uma cama para o Edu? — disse. Parecia mais cansado do que preocupado.

    Ela não respondeu por algum tempo. Olhava o movimento fraco que o peito de Eduardo fazia enquanto ele respirava. Então Caio gritou a mesma ordem e ela assentiu, virou e caminhou pelo campo, mais vagarosamente do que antes. Seu peito doía.

    “Não era justo”, pensou.

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