Capítulo 8 - Algo para se desejar.
Os olhos se abriram ao sentir o calor se espalhar por seu rosto. Viu o feixe de luz a machucar-lhe a vista por um momento, então se mexeu preguiçosamente, erguendo o corpo aos poucos. A cama improvisada de palha rangia a cada movimento. Respirou fundo. Sua mente recém desperta montava o quebra cabeça de sua vida até aquele momento nos breves instantes que dura o primeiro piscar de olhos ao acordar, e então se lembrou de onde estava. Lembrou, aborrecida.
Carmen se levantou.
Os panos grossos que a envolviam deslizaram por seu corpo quase desnudo. Bateu o cotovelo na parede ao arriscar um movimento mais brusco. A dor atravessou por seu braço, subindo o corpo até a boca, no que saiu como um xingamento que faria sua avó repreendê-la
Libertou-se da roupa de cama, caminhando livre pelo estreito cômodo que era seu quarto. Três passos e já estava no extremo oposto a sua cama. Ela abriu a arca de madeira salpicada de poeira dos meses de ocioso desuso e tirou de lá as roupas que usaria naquele dia. Thierry a deixara ficar com os vestidos ao expulsá-la da casa, além de tê-la arranjado uma hospedagem.
Era um velho gentil. Um velho gentil que a expulsara.
Tomou as roupas íntimas que havia trazido de seu antigo mundo, repetindo movimentos conhecidos por seu corpo ao colocá-las. Movimentos que a lembravam de sua antiga rotina, de sua antiga casa, de sua antiga vida. Uma vida que parecia distante.
Deslizou de entre os tecidos amarrotados um vestido simples de cor verde abacate, não fosse o rendado com estrelas em formato de asteriscos com oito pontas, as quais havia feito dias por puro tédio. Decidiu não usá-lo, uma vez que denunciaria o uso de material do ateliê que não havia sido necessariamente dado. Escolheu um cor amarelo queimado com alguns babados brancos e o vestiu.
Minutos depois, ela desceu agachada uma escada com não mais de quinze degraus curtos e cumprimentou sua anfitriã com um sorriso tão quente e sincero quanto conseguia exibir nos lábios.
Senhora Arianne encontrava-se recatadamente sentada à mesa. A mão pousando uma xícara do que parecia ser um chá na madeira polida, enquanto os olhos refinados da elegante dama se focavam em Carmen.
— Bom dia, minha cara. Espero que a noite tenha-lhe sido agradável — disse com uma voz delicada e respeitável.
— Foi ótima — respondeu Carmen chegando aos pés da mesa e sentando em uma cadeira vaga.
A casa de madame Arianne não era grande, espaçosa ou confortável como a de Thierry, mas ainda era maior do que a maioria das cabanas de madeira carcomida que os aldeões chamavam de “casa”. E mais agradável ao nariz, pelo que Carmen podia julgar.
Sons vieram da cozinha e uma mulher com o dobro da cintura de Carmen e triplo das rugas de senhora Arianne e da senhora Marjorie juntas emergiu pela porta com uma bandeja repleta de pão morno e frutas fatiadas, pondo-a no centro da mesa e regressando por onde veio logo depois.
Essa era outra diferença.
Arianne tinha condições de pagar por uma empregada que fizesse as tarefas domésticas. Algo que Carmen pensava só o prefeito e madame Jackelin possuírem.
Thierry não tinha empregados, embora o garoto que ele chamava de neto fizesse tal função com afinco.
Carmen ganhava uma moeda de cobre por dia trabalhado quando começara, e, após dois meses de trabalho e mérito obtido devido a sua habilidade com o bordado, ela passara a ganhar três por dia trabalhado. Muito embora omitisse tal coisa de suas amigas e dos garotos. Imaginava quanto aquela refinada senhora devia ganhar trabalhando no ateliê.
A refeição prosseguiu de forma calma e silenciosa. Não parecia haver esforço ou vontade de iniciar e manter uma conversa por parte de Ariane, e Carmen pouco desejava uma em que fosse respondida com comentários vagos, suportando assim o silêncio.
Ao terminarem, ambas saíram pela porta e caminharam por dez minutos pela aldeia, que ainda começava a ter o movimento típico das manhãs.
Carmen aos poucos se acostumava com aquela monotonia, sentindo uma familiaridade nostálgica com os dias em que acordava cedo para ir a escola, observando o mundo vazio a sua frente como se seus olhos fossem os primeiros a vê-lo.
As duas chegaram ao prédio do ateliê, entrando pela porta da frente. Carmen notou que ao menos um terço das costureiras já havia chegado e começado a trabalhar em alguma peça da confecção.
Arianne trocou algumas palavras com duas delas e seguiu para a sala de madame Jackelin. Carmen a seguiu seus passos como uma segunda sombra.
Ao entrar na sala viu o jardim florido repleto de luzes repleto de luzes resplandecentes no mundo dourado que era o vestido a qual madame Jackelin trabalhava.
Carmen perdeu o fôlego pela simples visão daquele arranjo. Um formigamento correu por sua pele. Ela olhou para as jóias distribuídas pelo vestido de forma a se balancear entre o fundo dourado e o entrelaçado bordado multicolorido trançado no tecido. Ainda se perguntava o que eram, não acreditando nas respostas que madame Jackelin e as senhoras Arianne e Marjorie lhe deram. Não conseguia se convencer de que simples gemas lhe causasse tamanho tremor.
Ainda assim, se deixou ficar admirada com a beleza em camadas que era a roupa à sua frente.
Pensou em si mesma usando aquela obra de arte, girando e fazendo as baias girarem. Dançando uma dança que nunca aprendera com um homem. Muito embora soubesse que ele nunca dançaria com ela.
“Não combina com a Ju”, pensou com certa amargura.
— Bom dia madame Jackelin. Espero que tenha dormido bem — Arianne fez uma reverência em direção a um dos cantos da sala, onde Jackelin jazia sentada com o corpo inclinado para frente – o braço apoiado na perna cruzada, enquanto a mão sustentava o queixo – uma pose não muito digna para uma dama, mesmo para os padrões que Carmen conhecera em seu mundo.
— Foi uma noite proveitosa — respondeu ela sem tirar os olhos da bela obra de arte no centro da sala.
Carmen, sem ter certeza do que fazer, se moveu se pondo no lado oposto ao que a mulher estava.
— O que acha? — Jackelin perguntou. Seus olhos ainda contemplando o vestido.
Carmen moveu os lábios de forma incerta até a voz de Arianne responder de forma alta e clara.
— É absolutamente magnífico..
— “M-a-g-n-í-f-i-c-o” — repetiu Jackelin como se julgasse a palavra.
Endireitou sua postura e descruzou as pernas antes de tornar a falar.
— E você, minha cara, o que acha?
Carmen prendeu a respiração, lambeu os lábios e estalou um dedo antes de responder. O som pareceu-lhe alastrar pela sala.
— Achei lindo. Não sei nem o que dizer — respondeu tentando encontrar palavras mais sofisticadas.
Madame Jackelin suspirou, cruzando os braços em um movimento fluido, refinado, e ainda assim, indulgente. Seus olhos se viraram para Carmen. Dois discos negros e polidos como cerâmica escondidos por pálpebras pesadas que abriam e fechavam a cada respiração sua.
— Não saber o que dizer não é uma resposta — disse com um meneio de cabeça.
Os lábios de Carmen se dobraram. Uma raiva menor começou a brotar no seu peito. Ela mordeu levemente sua língua.
Ouviu a porta se abrir, chamando sua atenção. Virou-se, vendo a verruga de Marjorie pendurada no queixo da velha mulher. Natalie surgiu em seguida, fechando a porta. Sua tez parecia mais pálida a cada dia. Carmen imaginava se algum sangue corria pelo rosto da garota.
— Bom dia, madame Jackelin. Sua figura parece mais luminosa do que nunca — cumprimentou Marjorie com uma reverência profunda. Natalie a imitou.
Jackeline abriu-lhe um sorriso de canto de lábios e suspirou levemente.
— Chegaram em boa hora — declarou. — Respondam-me, o que acham? Fiz tal pergunta a suas antecessoras aqui presentes. Uma respondeu com “Magnífico”, e a outra disse-me que não sabia o que dizer. Talvez uma de vós saiba.
Carmen sentiu suas bochechas queimarem com o comentário, mas se conservou calada, prestando atenção na resposta das duas mulheres. Ambas se agitaram, seus pescoços virando-se e seus olhos alternando entre Carmen, Arianne, Jackelin e o vestido analisado.
Após um momento de reflexão, Marjorie foi a primeira a responder.
— É de uma beleza rara. Um trabalho refinado e esplêndido. Digno de ser chamada de criação da senhora — declarou com uma voz lisonjeira.
Jackelin respirou profundamente, olhou diretamente para Marjorie e soltou uma bufadela de desdém, a qual deixou a velha mulher desconcertada. Até a verruga pareceu encolher em seu queixo.
Carmen não conseguiu segurar a pequena risada, a qual foi recriminada pelos olhos fumegantes de Marjorie.
Madame Jackelin não pareceu se importar, ao que prosseguiu.
— E você, criança, o que acha? — perguntou olhando para Natalie.
A garota pálida piscou duas vezes os imensos olhos e então respondeu com uma voz trêmula.
— Se a senhora não se importa que eu diga, hum — Parou, como se esperasse uma permissão para prosseguir em seu comentário.
Permissão essa que foi dada com um aceno de Jackelin.
— Bem, parece-me – com todo o respeito que tenho pela senhora – um trabalho preguiçoso de vossa parte.
Carmen abriu os olhos em incredulidade. Senhora Arianne franziu as sobrancelhas e Marjorie repreendeu Natalie com palavras bruscas sobre respeito no mesmo instante.
Então um riso melodioso reverberou pela sala e todas olharam para Jackelin, que dobrava o corpo para trás com uma mão na barriga.
Riu por alguns segundos até parar para recobrar o ar e então parcelar seu acesso de alegria em pequenos soluços seguidos de tosse.
Não fora a coisa mais elegante que Carmen já vira, disso tinha certeza.
— É verdade — comentou a costureira. — Poderia ter empenhado mais esforço como um todo.
— Madame, porque diz isso? — Arianne perguntou com certa confusão em seu rosto.
— Fizemos tudo com o mais perfeito cuidado e com toda a nossa capacidade. — declarou Marjorie, entrecortando a voz da companheira. Sua voz possuía um resquício de ressentimento.
Jackelin se acalmou e respondeu calmamente.
— Ah, perdoe-me a confusão, Anne. Não é sobre o vosso trabalho. De fato, fizestes o melhor que podiam, mas não o melhor que eu podia. Essa é a razão da pequena crítica de nossa querida aprendiz — Cruzou as pernas e as abraçou com as mãos.
Arianne abriu a boca, mas permaneceu quieta, com a confusão ainda em seu rosto. Marjorie apertou seus lábios, a verruga se retorcendo de forma elástica junto ao seu rosto.
— Perdoe-me, madame, Eu ainda não entendi o que a senhora quis dizer — Carmen perguntou então.
Jackelin suspirou mais uma vez e prosseguiu.
— A questão é: vosso habilidade é boa, mas, justamente por ser bom, eu transferi mais da metade do trabalho nessa peça a vós. Isso denota a preguiça de minha parte, pois se eu fizesse tudo por mim mesma, seria algo de valor mais substancial.
— Isso é bem arrogante de se dizer — observou Carmen, recebendo uma leve cutucada no ombro, ao que olhou para a senhora Arianne à seu lado, notando uma expressão incômoda.
Jackelin soltou outro riso, mais leve dessa vez.
— Arrogância não, confiança. É o que ocorre quando pessoas têm ciência de sua própria habilidade. Elas se tornam confiantes. Thierry não a ensinou isso?
Carmen sufocou um frio que subiu por suas costas ao ouvir o nome do velho cavaleiro. Apenas balançou a cabeça por duas vezes para os lados, negando.
Jackelin deu de ombros.
— De qualquer forma, ainda é um belo trabalho. Ao menos a princesa achará isso — Sorriu de uma forma que trouxe arrepios a Carmen. — Agora, trabalhemos.
O dia se passou com a mesma monotonia arrastada de todos os outros. Linhas, agulha e tecidos. Por um momento o mundo parecia ser inteiramente feito por essas três coisas.
A luz das janelas diminuiu e as cores dentro da sala se acinzentaram, revelando a passagem do tempo e o início do crepúsculo.
Carmen trabalhava em uma camisa masculina – o qual chamavam de gibão – costurando o símbolo dos machados de sir Alóis.
Arianne anotava as peças feitas no dia enquanto Marjorie orientava Natalie sobre como umas peças deveriam ser acabadas.
Carmen respirou com o alívio percorrendo suas mãos, ávidas por um descanso. Pensou em se levantar, mas a disciplina proveniente da convivência naquele ambiente fez continuar seu serviço até que a senhora Arianne a aconselhasse a parar.
Esperava por isso até ouvir a voz de madame Jackelin chamando a atenção de todas as que estavam presentes na sala.
— Senhoras, agradeço-vos pelo serviço feito hoje. As peças feitas por vós são vestimentas maravilhosas e certamente deslumbrarão qualquer dama que as usar, e qualquer cavalheiro que as olhar, mesmo na mais elegante côrte do reino — disse. Sua voz era calma e tediosa.
O rosto pouco expressão tinha quando ela começou a falar. Seus braços estavam amarrados em volta da cintura de forma displicente. Não parecia um discurso de parabenização, ou um elogio sincero. Aos ouvidos de Carmen, mais parecia uma cortesia mal ensaiada.
— E tenho certeza disso, pois é para lá que irão cada pedaço de vestuário aqui costurado — disse, causando uma confusão nos rostos de todas que a escutaram, inclusive em Carmen.
Madame Jackelin observou os rostos e sua boca impassível se abriu em um fino sorriso trocista, que durou meio segundo em sua boca e meio minuto em seus olhos.
— Na côrte? — Foi a senhora Marjorie quem perguntou. A boca aberta de descrença.
— Madame Jackelin, que côrte seria essa? — Senhora Arianne questionou com certa incerteza na voz.
— A mais importante do reino, já lhes disse. A corte real.
“Real”, a palavra alcançou Carmen como uma pedra disparada por um estilingue.
Um mundo com nobres e cavaleiros, terras e títulos, espada e arco, teria também um rei. Ainda que óbvio, tal pensamento nunca lhe ocorrera. Até ouvir a palavra que remete à realeza.
Uma côrte, um castelo, um rei, uma coroa, um príncipe.
Uma miríade de cenários deslumbrantes provindo dos cantos mais longínquos de sua memória despertaram e a relembraram o encanto de cada uma dessas palavras. Um sorriso se formou em seu rosto antes que o percebesse. Seu corpo tremeu com a fervorosidade da excitação de em algum dia ver tais coisas.
Madame Jackelin continuava a falar.
— Sir Belanger levará tais peças como demonstrações aos mais refinados senhores de todas as regiões do reino. Por isso, ele também deseja que eu o acompanhe. Mas, como bem apontou nossa querida Natalie, sou demasiado preguiçosa para fazer tal coisa.
Carmen e as outras olharam para Natalie a tempo de ver seu rosto pálido ganhar a cor rubra de uma expressão envergonhada.
— Deste modo — Ainda dizia a madame —, mandarei representantes entre vós.
Um tremor surgiu nos pés de Carmen, escalando pelas pernas e passando com um frio por sua barriga, agarrando seu coração ao atravessar o peito e embolando sua língua ao chegar à boca, terminando por ferver seu cérebro no topo de sua cabeça.
Todo seu corpo ansiava pela expectativa do que seria dito.
Os bailes, os castelos, os lordes, os príncipes. Toda a beleza de um mundo mágico ao alcance de seus olhos. Ela prendeu a respiração quando a boca de madame Jackelin voltou a se mover.
— Portanto, enviarei Arianne e Natalie para ajudá-la no que precisar — Anunciou com as palavras mais secas que Carmen pensou ter ouvido em sua vida.
Carmen pensou ter ouvido o som de um tiro. Sentiu como se toda a tensão em seu corpo descesse por sua garganta e a fizesse sufocar com o ar. Sua língua foi inundada por um azedume repugnante, os olhos pareceram se abrir mais do que o habitual e as mãos se tornaram frias e húmidas ao toque.
A visão do sorriso animado naquela face magra, dos olhos gigantes cintilando como refletores em uma noite de neblina, e no vestido rodopiando enquanto o corpo da jovem girava o corpo devido ao êxtase do anúncio fizeram o peito de Carmen doer como se um punhal girasse dentro de seu coração.
Sua atenção foi então puxada para Arianne, que prestou uma reverência polida.
— É com muita alegria e honra que recebo essa demanda, minha senhora — Sua voz parecia mais aveludada que o habitual.
Natalie pareceu querer imitar o gesto e se curvou, baixando a cabeça quase até a altura da cintura em uma reverência atrapalhada.
— Obrigada, madame Jackelin — Ergueu o corpo, um sorriso mostrava que tinha todos os dentes na boca, embora Carmen quisesse mudar isso.
— Ora, pare com isso. Estou mandando-as fazerem meu trabalho, como a boa preguiçosa que sou — Um sorriso espreitou por entre seus lábios.
— Nem acredito que irei à capital real — declarou Natalie, quase pulando de alegria.
Carmen sentiu vontade de sair da sala, já pronta para dar o primeiro passo.
— Mas não irão à capital real — A voz de Jackelin soou como um tapa em uma mesa de madeira. Ela se levantou. — Não irão para a real cidade de Alleran, e sim para Repouso das Garças, a majestosa cidadela dos Genêvile para o baile do inverno.
Começou a dançar com um acompanhante invisível. Seus movimentos suaves eram de uma graça vista apenas nas aves quando estas levantam voo.
— Um evento ímpar onde toda a nobreza do reino se reunirá para mostrar suas riquezas.
— Mas, madame — Arianne interveio confusa —, a senhora disse que iríamos até a corte real.
Jackelin parou de dançar e encarou a subordinada com um sorriso astuto. As mãos estendidas no ar, envolvendo seu acompanhante invisível, se uniram uma à outra em sua cintura enquanto seus pés se juntavam com uma sutileza elegante.
— Ora, eu disse. O primeiro príncipe, Aaron estará lá. Assim como a princesa, Désirée. Qualquer côrte que um membro da família real vá se torna em uma côrte real.
Após isso, madame Jackelin as dispensou.
Arianne nada falou, mas Carmen via uma mudança em seu semblante formalmente agradável que poderia se traduzir como um resquício de sorriso orgulhoso.
Natalie pulava, rodopiava e se gabava junto a suas amigas costureiras, das quais Carmen tinha pouco contato. Dizia que veria o príncipe. Dizia que tomaria chá com a princesa. Dizia que tomaria um cavaleiro em seus braços e seria desposada.
Dizia tudo isso com um sorriso de cem dentes, a qual Carmen desejava arrancar um por um.
Saltitante, a garota partiu para casa segurando algumas peças a que deveria dar acabamento em casa.
Marjorie, que durante toda aquela momento rivalizava apenas com o vestido em questão de silêncio, deu uma enxurrada de ordens às aprendizes sobre o que teria de ser feito no outro dia, antes de sair com passos apressados.
O dia havia acabado e Carmen não sentia a menor vontade de voltar. Também não desejava ficar no ateliê. Passou a andar pelas ruas poeirentas da vila, dando voltas no lugar que era menor que o bairro em que crescera.
Injusto, injusto, injusto…
A luz esmoreceu no horizonte, a noite veio a luz das tochas acesas nas paliçadas e nos postes ao lado das ruas. As pessoas se recolheram no interior das casas, onde se reuniram à mesa para rezar ao seu deus de nome estranho.
Ocupou a mente reparando as casas. Percebeu que em algumas as janelas abriam, outras não. As que tinham janelas dobráveis as possuíam no segundo andar, onde seria difícil de entrar, a menos que haja um bom escalador.
Um detalhe estranhamente interessante para a mente de Carmen.
Continuou a andar até sentir as pernas doloridas demais para dar mais um passo, e enfim decidiu por retornar a casa de Arianne, quando percebeu uma figura seguindo-a na escuridão.
Ela apressou o passo, dobrou em uma rua estreita e subiu uma das paredes, usando os sulcos deixados por entre as toras sobrepostas para escalar até o telhado da residência. Não havia janelas em ambas as paredes, de forma que ninguém dentro das casas poderia vê-la.
Esperou até que a figura estranha aparecesse e relaxou quando os olhos acostumados ao escuro reconheceram o rosto familiar do amigo de Eduardo.
Deixou-o passar, e então desceu, passando a segui-lo de perto. Não foi difícil, uma vez que ele não parecia minimamente apressado.
Com os passos silenciosos e ligeiros que se atrevia a dar, aproximou-se até estar a dois passos dele e falou em um tom inquisitivo:
— Procurando alguém?
Caio saltou um metro para frente e virou-se para ela. A mão na cintura segurando o que Carmen pensou ser o punho de uma espada.
— Calma menino, eu só estava brincando — Levantou as mãos tentando abrandá-lo.
Caio relaxou e baixou os ombros, e pôs a mão no peito. Carmen podia ouvi-lo arfar.
— Puta merda, eu quase cuspo meu coração pra fora. Como tu fez isso? Eu tava bem atrás de ti.
Carmen deu de ombros.
— Podia ter me chamado, a não ser que quisesse me assustar também — ergueu uma sobrancelha, sem saber se ele a veria na meia luz das tochas.
Caio não pareceu se importar em defender-se da acusação.
— Eu te procurei por que preciso te avisar de algo.
Carmen estreitou os olhos.
— O que? — Perguntou e a resposta fez sua garganta secar.
Encarou o garoto, incrédula.
— Eles… contaram? — perguntou, torcendo para que fosse uma piada. Para que ele começasse a rir. Para que aquilo fosse uma vingança pelo susto de antes.
O sério acenar de cabeça de Caio destruiu essas esperanças.
Carmen sentaria, se tivesse uma cadeira aos seus pés. Desmaiaria, se houvesse uma cama ao seu lado. Gritaria e choraria de pânico, não fosse a vergonha que a ideia trazia.
Ao invés disso perguntou em seu tom mais desagradável:
— Vocês são burros? Não conseguiriam inventar qualquer coisa, desviar a atenção do velho, convencê-lo de que tudo aquilo era loucura e achismo de um coroa cenil?
— Ele já sabia de tudo, e o Edu não queria mais mentir — Caio respondeu com certa aspereza.
Carmen revirou os olhos.
— Meu Deus, que nobreza. E qual foi o resultado disso?
— Ele não expulsou a gente — rebateu Caio, com uma raiva mais aparente.
Carmen recuou, lembrando-se do quão sensível era o garoto.
— Tá, entendi, desculpa. E aí, o que houve.
Caio deu uma cusparada no chão – que Carmen achou por demais nojenta – e prosseguiu.
— Contamos sobre as chaves, sobre o deus, sobre nosso mundo e como viemos pra cá.
— E ele?
— Ouviu, perguntou e aceitou.
Carmen sentiu sua respiração se desregularizar.
— Simples assim? — questionou.
— Eu te disse que ele já sabia.
— Mas como?
Caio deu de ombros.
Uma bufada de vento acertou-os e Carmen envolveu o corpo com ambas os braços.
— Ah, tem mais uma coisa — Caio quase gritou ao falar. — O Thierry disse que para conseguirmos achar essas chaves que a Júlia sonhou, precisamos de conhecimento e conexões.
— Disso a gente já sabe — retrucou Carmen, como se explica-se o óbvio.
— É, mas não sabíamos como fazer isso — continuou Caio. — Thierry disse que vais nos ensinar vocês a ler e a escrever. E também sobre a história desse mundo.
Carmen franziu o cenho, quase rindo do quão ridícula era a ironia daquela situação.
Fui expulsa para nada, pensou, quando um detalhe na frase de Caio chamou sua atenção.
— “Vocês”, como assim? Tu não vai aprender também?
Caio sorriu com um sorriso sem graça.
— Não vai dar tempo, vamos viajar — Coçou a parte de trás da cabeça — Essa era outra coisa pra falar. Vocês; o Théo, a Júlia, tu e a Leticia, vão ficar aqui aprendendo com ele. Eu e o Edu vamos sair da vila com o sir Alóis.
As pernas de Carmen balançaram.
— Por quê? — perguntou.
— O sir vai ao encontro do conde e de alguns outros nobres importantes. Thierry disse que não tinha lugar melhor para criar conexões do que na companhia de nobres.
— Repouso das Garças — Sem que percebesse, a boca de Carmen emitiu as palavras. Havia mais ar do que voz.
— Sim, esse mesmo. Como sabia?
Carmen balançou a cabeça.
— Não importa. Era só isso? Tá frio e preciso voltar pra casa antes que a senhora Arianne feche a porta.
Caio hesitou.
— Ah, sim, era só isso. Eu também preciso ir. Até mais
Tocou no ombro de Carmen com a palma da mão em gesto a meio caminho de um tapa e um afago, se afastou três passos e então virou.
— Tem outra coisa. O Thierry disse que você podia voltar, se quisesse — disse e ficou em silêncio, como se esperasse por sua resposta.
A boca de Carmen se comprimiu.
— Tá certo, é melhor se apressar. Parece que vai chover — Apontou para o céu nublado.
Caio olhou, concordou com a cabeça e então retomou o passo sumindo por entre as ruas desertas.
Carmen suspirou.
— Voltar, é?
Olhou para o chão e então para o céu noturno. Ela havia mentido. Estava nublado, mas não achava que choveria.
Eduardo irá para côrte, percebeu.
Uma noite escura. Perfeita para não ser vista. Seus pés se moveram, não mais tão doloridos quanto estavam. Caminhou em direção a uma casa em especial. Não era a de Arianne, tão pouco a de Thierry.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.