Índice de Capítulo

    Havia um ninho…

    Eles passeavam pelas ruas familiares em que Júlia crescera.

    Nele, dois pássaros cantavam… Belos, alegres…

    As casas, calçadas, postes e comércios, tudo parecia como se lembrava. Como antes era. Exceto pelo céu. Nuvens brancas espalhadas em um céu dourado. Um céu divino sobre o firmamento mundano que sempre conhecera.

    Alegres por conta dos ovos… alegres por conta da vida…

    Não via ninguém além deles. Estavam sozinhos. Sozinhos em um mundo dourado.

    Ovos que em breve eclodiriam…

    — Sabia? Estrelas são luzes do passado. Elas já se apagaram vários anos antes de nós nascermos. — Ele caminhava à frente, falando sobre tudo, e ao mesmo tempo sobre nada.

    — Como são luzes do passado, se podemos vê-las? — Ela escutava tudo, sem entender as palavras.

    — Porque estamos no futuro delas e por isso vemos o seu passado. Assim, também seremos o passado de alguém, quando nos procurarem nos céus.

    O que ele queria dizer? Não sabia.

    Mas isso não importava. Nada importava. As ruas, o céu, as nuvens, as casas, palavras, os pássaros. Não precisava entendê-lo, apenas escutá-lo. Ele falara com ela; apenas isso importava e nada mais.

    Por que era tão importante?

    Não se lembrava. Não importava.

    Havia uma serpente…

    — Você sabia? — Ele tinha uma borboleta em sua pequena mão. — Borboletas significam a morte em algumas culturas. Elas levam as almas dos mortos pro paraíso — Ele abriu a mão e a borboleta voou.

    Ela lembrava disso. Já sabia o que ele iria dizer e o que falaria após. Ela lembrava, mas por que lhe era tão estranho? Por que não parecia ele, mesmo sendo? Por que ela não se sentia a mesma?

    — Existem paraísos em outras culturas? — Júlia perguntou. Sua voz parecia-lhe mais infantil do que estava acostumada

    — Como não? — Ele subiu em uma barra de ferro da calçada, seu pequeno corpo se equilibrando em uma perna.

    Jonas era uma criança, da mesma forma que ela era, e ao mesmo tempo nunca fora. Ou ao menos, não se lembrava de ter sido.

    — Pensei que, após a morte, todos fossem pro purgatório.

    — Todos iremos para algum lugar, disso eu sei — Ele respondeu, saltando energicamente pela fileira de barras de ferros postas na calçada.

    Júlia sentiu um estranho pressentimento. Ela lembrava das palavras, então por quê não se lembrava daquilo?

    — Quando a hora chegar, você gostaria de ser levada pelo quê? Uma borboleta, uma valquíria, um anjo? — Ele perguntou, quase caindo ao parar abruptamente.

    — Não ligo — respondeu.

    “Desde que eu possa conversar contigo…”

    Ela rastejou pela árvore silenciosa, paciente, voraz…

    Ouviram um som. Um tilintar alto e suave de metais que soava de forma quase lírica.

    — Ande logo ou vamos nos atrasar — Jonas disse e correu em direção ao som.

    Júlia o seguiu. Por que o seguia? Para onde iam? Se atrasar para quê? O que era aquele som que nunca escutara antes na vida?

    Em seu íntimo, sabia que deveria fazer tais perguntas, mas se recusava. Desejava apenas correr como a criança que naquele momento era. Pequena e sem restrições.

    Se lembrava de já ter vivido aquilo, ou algo semelhante. Em outro lugar, em outro tempo. Em um sonho do qual já acordara.

    Poderia aquilo também ser um sonho. Mas o que importava? Em algum momento iria acordar, e tudo se tornaria em memórias borradas de um mundo que não conseguia lembrar. Estava alí, em um lugar que em um abrir de olhos desapareceria. Por que se importar em acordar?

    O canto cessou…

    Ela corria, gritando para ele esperar. As ruas se tornaram estranhas. Pequenas, apertadas. O céu, antes dourado, ganhara tons de cinza avermelhado.

    Jonas parecia maior. Já não era uma criança e sim o adolescente que arrancara-lhe tantos sorrisos antes. Ele olhou para trás, e Julia viu seu rosto pela primeira vez em tempos. O cabelo liso e despenteado, o nariz fino e pontudo, os olhos negros e afiados. Parecia-lhe do exato mesmo jeito que lembrava.

    Ele entrou em um beco sombrio. Júlia sentiu um frio em sua barriga, mas o seguiu, adentrando na escuridão.

    Onde ele ia? Por que lhe deixara?

    Ela ouvia seus passos. Pareciam cada vez mais altos, ao mesmo tempo que eram cada vez mais distantes.

    Então, Júlia viu uma luz à frente, um pequeno ponto, que crescia a média em que ela corria. Ao atravessá-lo, o mundo se tornou em completo branco por um segundo.

    Um estalo veio a sua mente e Júlia parou. Olhou com uma mistura de confusão e medo para o homem à sua frente. Jonas sorria olhando para ela.

    — No fim, só consegui te trazer até a entrada — Atrás dele, Júlia viu uma grande catedral.

    Asas bateram, penas voaram… a víbora abriu sua boca…

    Três torres erguiam-se muitos metros acima do chão, repletas de pilares e contrafortes. Eram feitas de rocha negra como carvão, com o que pareciam cobras de pedra a espiar o mundo, como gárgulas, nas janelas da torre. Os pilares da estrutura eram repletas do que pareciam ser plantas rasteiras, como se vinhas e trepadeiras os cobrissem por toda a sua extensão. Vitrais monumentais retratavam figuras inimagináveis, que se moviam como se estivessem vivas. Algumas pareciam animais, outras eram homens de diversas etnias e formas. Outras, a mistura de ambos.

    Elas se reuniam em grandes grupos, que lançavam-se um sobre o outro em uma batalha feroz. Então separavam-se e chocavam-se novamente.

    — Onde estou? — Julia perguntou.

    Jonas manteve seu sorriso.

    — Onde eu lhe trouxe.

    Ela deu um passo para trás, sentindo uma parede em suas costas. Percebeu depois que tudo em volta deles havia se transformado em uma alva imensidão, pintada por manchas de nuvens rubro douradas. O chão parecia feito de pedras brancas de calçamento.

    Os pássaros não mais voavam…

    — Você é engraçada — Jonas falou, movendo-se por aquele pátio de pedra.

    Julia o seguiu com os olhos. Ele andava, descrevendo um círculo em volta dela enquanto falava.

    — Seus pais, suas amigas, o seu querido Edu, até você mesma. Nunca me seguira tão longe, mesmo que sua essência já lhe permitisse isso. Mas seguiu-me, ou melhor, seguiu-o.

    Ele a olhou. Seus olhos fixados nos de Júlia. Ela tremeu ao encontrar-se com o que aquelas janelas refletiam.

    Uma escuridão tomava toda a órbita, com tal intensidade que simplesmente encará-la entorpecia os sentidos de Júlia.

    Então eles mudaram de forma. As pupilas Se afunilaram em um losango negro, cortando a esfera esverdeada que era a esclera.

    Aquele que parecia Jonas se aproximou.

    Julia caiu sobre as suas pernas, sentando-se no chão. Uma onda de emoções pareceu desmanchar sua alma. Aqueles olhos não eram de Jonas, ou sequer de um humano. Eram de algo à parte. Algo que não deveria existir. Pareciam os olhos de um demônio.

    Os ovos não mais chocariam…

    — Quem é você? — Ela perguntou, as lágrimas a correrem-lhe as bochechas.

    A coisa com a rosto de Jonas sorriu.

    — Eu já lhe disse antes — A coisa respondeu. — Eu sou uma memória, mas não sua.

    Júlia ouviu sons estranhos. Olhou para a catedral. Algo parecia se mover por entre os pilares, como se as vinhas criassem vida. Elas desceram, serpenteando pelas paredes, chegando até o chão. Dezenas de cabeças achatadas se ergueram sobre longos corpos delgados e cilíndricos, que se moviam, rastejando por sobre o piso branco.

    Elas sibilavam com tamanha intensidade, que quase pareciam falar.

    — Não às tema, são minhas, o que quer dizer que podem ser suas, se assim eu desejar — A coisa disse, parando aos pés de Julia.

    — Minhas? — Júlia olhava as serpentes se aproximarem, rastejando em sua dança corporal. — Não quero, por favor, me deixe em paz.

    Ela levantou seus olhos mais uma vez para encarar a coisa. O rosto de Jonas estava com uma expressão de aborrecimento. Os olhos reptilianos a encaravam com um desprezo gélido.

    — “Quando aqueles que uma vez provaram da vida recusarem a morte, vós sereis lembrados”, que promessa patética — disse a coisa. — Tão patética quanto aquela que me escolheu.

    As serpentes formaram um círculo ao redor deles.

    — Acha que ainda está em seu mundo? Acha que pode fugir de suas escolhas, deixar que outros as tomem e fugir das consequências para sempre? — A coisa sorriu. — Você teve uma escolha, a fez, aqui está a consequência. Arque com ela ou tudo será em vão.

    — Quem é você? — Perguntou Júlia mais uma vez.

    — Eu já lhe disse — sussurrou a coisa. — Sou uma memória.

    Não havia mais ninho…

    Júlia sentiu uma dor intensa na mão. Levantou-a na altura dos olhos e viu que uma pequena serpente, da finura de seu dedo anelar a havia mordido. Duas finas linhas de sangue começaram a escorrer quase imediatamente.

    — O veneno da serpente também é o seu antídoto — Ele falou.

    Sua mente pareceu flutuar, enquanto seu corpo pesava.

    — Você se lembrará disso e então não terá mais desculpas — A voz da coisa com o rosto de Jonas parecia alterada. Ou ao menos Júlia a ouvia assim.

    Havia apenas a serpente, e mais nada.

    O rosto dele se distorceu. Sua pele brilhava em tons de roxo, azul e vermelho. O mundo a sua volta girou, ao mesmo tempo em que ela parara. As serpentes dançavam à sua volta, no sentido oposto a que todo o resto seguia.

    Ela caiu com o rosto no chão, que pareceu se abrir e engoli-la.

    “Você se lembrará”, A voz gritou em seus ouvidos.

    “Não”, pensou. Não queria lembrar daquilo.

    Seu corpo começou a queimar. Sentia suas vísceras se revirando em seu estômago. Seu peito parecia querer abrir. E então abriu. A carne em seus braços e pernas se desprendiam dos ossos. Seus olhos pareciam derreter em seu rosto, e o cabelo fora arrancado de sua cabeça, caindo em tufos. E ela sentia tudo, ao ponto da dor nublar sua mente e interromper seus pensamentos.

    “O veneno da serpente é também o seu antídoto.”

    Os ossos se desprenderam e tudo em seu corpo se desfez, até que não restasse mais nada além das partes que já não eram um todo.

    “… antídoto.”

    Seus ossos se reajustaram. A carne prendeu-se novamente em seu corpo, músculo por músculo, órgão por órgão. Os cabelos se aninharam em sua cabeça. Sua pele se refez, e seus olhos voltaram a ver.

    E ela os abriu.

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