Índice de Capítulo

    Julia respirava pela boca, tentando não sentir o ar pútrido que se espalhava por todo o acampamento. Podia escutar os gemidos dos moribundos mesmo a distância. Sentia sua dor, seu medo e sua vida se esvaindo. Sentia uma sombra a se aproximar. Uma presença obscura e intrusiva. Sentia-a naquela tenda, junto de Eduardo. Sentia sua vontade. A de levá-lo.

    — Minha cara — Thierry começou a falar —, bem sei que ambos tinham sentimentos um pelo outro, tanto vós, como Edwardo. Então também sei o que deveis sentir nesse momento. Fiz o que estava ao meu alcance — Olhou para Eduardo —, e lamento dizer que ele não o está.

    Julia o fitou. Vislumbrou uma expressão de tristeza no rosto em que se habituara a ver gentileza. Notou também outra coisa.

    A sombra – a mesma que cobria Eduardo – o seguia. Não da mesma forma que se mostrava nos que estavam enfermos. A qual parecia hedionda e hostil. Com Thierry, porém, se mostrava quase submissa, flutuando ao seu redor sem tocá-lo.

    Em certos momentos, Thierry parecia emaná-la.

    Julia balançou lentamente a cabeça para cima e para baixo. Seus movimentos eram limitados devido a falta de força. Thierry falou mais algumas coisas que Julia não se lembraria, e saiu da tenda com passos silenciosos demais para alguém de sua estatura e peso.

    O silêncio imperou na tenda por um momento. Julia conseguia ouvir apenas a própria respiração e a de Eduardo. Fraca, tão fraca.

    A sombra parecia cada vez mais intensa, como uma névoa a envolvê-lo com cem braços fantasmagóricos.

    Ainda que aquela visão lhe fosse aterradora. Ainda que soubesse de alguma forma o que a sombra faria. Ainda que em seu íntimo compreendesse o que era. Não sentia medo. Não dela.

    Algo em sua mente – em sua memória – a assustava mais.

    “Você se lembrará”, a voz falara em sua mente. E ela lembrava. Lembrava das ruas, e dos dois a correrem entre elas. Lembrava da catedral e de suas vidraças. Lembrava dele. O rosto de Jonas, os olhos de uma víbora e a voz de um demônio. Lembrava das palavras. Uma memória que jamais esqueceria, mas desejava.

    Seu peito vibrou ao se lembrar e Julia sentiu a sombra a se agitar. Olhou para Eduardo. A pele pálida, as marcas arroxeadas em volta das feridas, a cicatriz em seu rosto. Iria perdê-lo, sabia, e não poderia segui-lo dessa vez. Isso a assustava mais do que a sombra, as memórias e aquilo.

    Julia levantou-se da cadeira e tocou a mão de Eduardo, o calor já o tinha deixado. Lembrava do dia em que foram à cachoeira, de suas palavras, de seus olhos em contato com os dela. Havia algo em sua forma de olhar que a fazia se sentir segura. Julia desejava vê-los mais uma vez, sentir seu calor e ouvir suas palavras. Mas seus olhos estavam fechados, sua voz presa em seus lábios calados, e seus olhos, fechados.

    Desejava-o tanto quanto a sombra o desejava, no entanto não tinha forças para impedi-la de o tomar.

    “Patética”, lembrou da memória não saia de sua mente. A palavra martelava em sua cabeça. Sabia que era verdade. Não fizera qualquer coisa para ajudar os outros desde que haviam chegado àquele mundo. Pelo contrário, servira apenas como alguém a ser protegido e resgatado. Um peso a se carregar.

    “Patética”

    — Sim — disse, pondo as mãos sobre a cabeça —, mas o que posso fazer? — Sua voz saiu-lhe como um gemido.

    — Você? Nada! Mas eu posso.

    Julia assombrou-se. Olhou ao seu redor enquanto uma risada jocosa ecoava.

    — Não se assuste. Eu lhe disse, não disse. Você se lembrará — Era uma voz familiar. Parecida com a de…

    — Jonas?

    — Sim e não. Mas posso ser quem você lembrar — A voz mudou enquanto as palavras eram ditas.

    Os trejeitos e o timbre pareciam com o de…

    — Eduardo? — Julia sentiu seu coração gelar. — Você é aquilo. Por que… como? Pelo amor de Deus, o que é você? — Embora não tenha soado alto, sentiu a garganta queimar com o esforço. Sua voz estava fraca demais para gritar.

    — Sou uma memória que você passou a lembrar, apenas isso.

    Julia tentou raciocinar, mas sua mente se paralisou. A imagem vívida de seu corpo se desfazendo lhe correu a mente.

    — Não confias em mim e nem me desejas, mas deseja aquele de quem essa voz pertence e confias nela. Por isso se sente tão espantada e confusa..

    Julia franziu as sobrancelhas em confusão. Não conseguia pensar.

    — O que você quer? — perguntou mais uma vez.

    — As chaves — A voz respondeu.

    — Chaves? O que quer dizer.

    — Lembre-se e saberá — cantarolou a voz, seu tom agora lembrava o do professor de matemática de Julia.

    Julia procurou em sua mente o que aquilo poderia significar. Lembrava-se de algo relacionado a isso.

    “As chaves de minha libertação.”

    — Você é aquele deus?

    A voz riu de forma ruidosa. Julia preocupou-se em alguém ouvir.

    — Não me compare àquilo — A voz repreendeu, dessa vez emulando o timbre de Carmen.

    — Então o que — dizia até ser interrompida pela voz.

    — Certo detalhes não são necessários. Fui lembrado por ti e por isso devo ajudá-la a cumprir seu objetivo nesse mundo. Desejo as chaves e nada mais — A voz ecoou em sua mente.

    — E o que são essas chaves? Por que aquele deus não nos disse nada? Nem sabemos como elas são.

    Houve um momento de silêncio até que a coisa tornasse a falar.

    — Saberá disso, em breve. Agora tenho outro assunto para tratar. Seu amado Edu — A voz disse a última parte com o timbre de Leticia.

    Julia ficou em silêncio ouvindo o que a voz tinha a dizer. O nome de Eduardo chegou aos seus ouvidos como um estalo de chicote.

    — De certo ele morrerá e de certo você sofrerá, sem poder fazer nada a respeito. — afirmou a voz. — Sabeis, no entanto, que eu posso, se assim desejar.

    — Pode… o que?

    — Posso ajudá-lo.

    Julia sentiu seu coração palpitar.

    — Como?

    — Façais o que eu ordenar — A voz respondeu.

    Julia engoliu em seco. Um frio a tomou pelos pés, fazendo sua barriga gelar. Lembrou-se dos olhos frios de réptil a encarando, do sorriso cruel e das feições no rosto de Jonas enquanto a coisa falava.

    Perguntava-se se a voz estaria fazendo as mesmas expressões distorcidas enquanto falava.

    — Bem sei que me temes, mas garanto que não lhe fareis mal — A voz mudou seu timbre mais uma vez. Julia tremeu ao ouvir a voz de sua mãe depois de tanto tempo.

    Julia sentiu um calor se espalhar por sua mão e uma fumaça branca começou a surgir. No entanto, não havia dor.

    — Toque-o — A voz ordenou.

    Hesitante, Julia obedeceu. Tocou a bochecha de Eduardo e sentiu o calor de sua mão fluir para o corpo dele como se uma comporta de represa fosse aberta e a água vazasse. O rosto de Eduardo ganhou cor e seu corpo, calor.

    Julia olhou para a sombra que parecia retrair, afastando-se de Eduardo.

    As pernas de Julia tremeram e o ar de seus pulmões se esvaiu. Uma dor lancinante acometeu seu abdômen. Ela quis soltá-lo, porém não conseguiu, era como se uma corrente elétrica os mantivesse unidos. De alguma forma que não compreendia, ela sentiu o seu interior se esvaziar. O calor a deixava na medida em que o corpo de Eduardo parecia aquecer mais e mais, até que vapor começasse a sair de seu corpo. Uma expressão de dor começara a contorcer seu rosto e então ele gritou. Ela o soltou, indo ao chão no mesmo instante. Gemeu em posição fetal enquanto ouvia os gritos de Eduardo preencherem a tenda.

    — É uma pena que não tenha essência suficiente — A voz falou usando a própria voz de Julia.

    Ouviu o som alto de passos apressados e vozes em tom de urgência. Sentiu o tronco ser erguido do chão.

    — Julia? Julia? — Ouviu a voz de Letícia gritar.

    O que era aquilo? A criatura? Não conseguia responder. Não tinha forças para pensar. Encontrou a resposta quando o rosto de Leticia se tornou nítido em sua visão. Os olhos marejados e vermelhos, cobertos por olheiras negras na pele morena.

    Julia virou sua cabeça, percebendo múltiplos pares de pernas a sua volta, então olhou para a cama, vendo o movimento violento que o corpo de Eduardo fazia ao se debater em meio a gritos.

    Ela se forçou a ficar em pé, sendo amparada por Carmen e Leticia. Sentiu vozes desconhecidas ao seu lado. Uma dezena de pessoas que ela nunca vira tinham enchido a tenda para olhar a cena à frente.

    Thierry e outros dois homens subiram em cima da cama e o seguraram até que os movimentos cessassem. A fumaça os cobria e a sombra havia desaparecido e Julia respirou aliviada ao ver os olhos de Eduardo abertos.

    — Vossa essência chegou ao fim. Vejo-te em teus sonhos, portadora — proclamou a voz, desaparecendo da mente de Julia.

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