Índice de Capítulo

    — Sentes frio? — O funcionário da guilda perguntou antes de atirar um pedaço de tora na larga lareira que aquecia o escritório.

    Jonas deu-lhe uma tardia resposta, acenando a cabeça afirmativamente enquanto se via estranhamente hipnotizado pela forte luz produzida.

    A madeira logo foi engolida pelo fogo, sendo consumida aos poucos até virar um negrume flamejante que em breve se tornaria em cinzas. O som que fazia era relaxante aos ouvidos cansados de Jonas.

    O funcionário caminhou silenciosamente pelo espaçoso cômodo, que mais parecia uma sala de estar do que um escritório. Além da grande lareira, havia um banco acolchoado – que aparentava ser um sofá rudimentar – uma mesa de madeira com miniaturas em forma de homens e criaturas bizonhas. O chão era forrado de peles de variadas cores e nas paredes, animais empalhados que Jonas nunca vira jaziam pendurados. Cabeças do que pareciam ser cervos com apenas um longo chifre retorcido na cabeça, aves dentadas com garras e penas revestidas com algo da aparência do ferro, enormes cabeças de ursos vermelhos, além de outras que Jonas reconhecera; Lobos Hatti, homens lagartos e sapos Goliath. Esse último fora posto abaixo de uma espada de tamanho e formato bizarros.

    A lâmina era negra, levemente curvada e dentada como uma faca de cozinha. Tinha o comprimento do braço de Jonas, e o dobro da espessura. Acima de cada uma das molduras e animais havia um nome em um dialeto que Jonas não conhecia. Pareciam rabiscos pintados por uma criança.

    — Nessa época, sempre faz frio aqui — falou com um sorriso agradável.

    Jonas continuava sem respostas. Estava absorto com aquele cômodo, aquela cadeira que sentava, o calor, o conforto. Parecia-lhe que nunca tinha sentido nada assim antes, mesmo em seu antigo mundo.

    O funcionário sentou-se na frente de Jonas, com a mesa entre eles. Ambos se encararam e Jonas sentiu-se pressionado contra a cadeira ao vê-lo de frente e de tão perto. Detestava aquela sensação, e detestava não entender o porquê de se sentir assim.

    O homem usava uma camisa de mangas longas azul-turquesa, de tecido aparentemente leve e folgado, coberta por um colete cinzento com botões negros com uma insígnia no formato de uma coruja fincada em seu peito. Seus oleosos cabelos escuros estavam penteados para trás e a barba jazia completamente raspada, à exceção do cavanhaque em seu queixo. Anéis de variadas cores brilhavam nos dedos de ambas as mãos. Nada nele era ameaçador e mesmo assim, Jonas parecia estar na torre diante daquele monstro outra vez.

    Algo nele tirava de Jonas toda a sensação de conforto que aquele lugar proporcionara.

    — Agora, falemos de nossos assuntos; chamo-me Raggin, ouvidor da guilda de aventureiros desse assentamento. Pode me dizer seu nome?

    — Jonas!

    — “Jonna”, certo — disse ele rabiscando em um papel.

    — Não, “Jonas” — repetiu Jonas.

    Raggin o encarou.

    — “Jonna”! — disse mais uma vez e voltou a mover a pena em cima do pergaminho.

    Jonas o encarou confuso. Pensou em repetir seu nome novamente quando o homem tornou a falar.

    — Bem sei que vens de uma longa e penosa viagem, senhor Jonna, mas há perguntas que preciso fazer a ti e aos que contigo estavam — Ele encarou Jonas com um semblante sério. Seus olhos pareciam tão cinzentos quanto os botões de seu colete, com algumas manchas laranjas perceptíveis — De onde vosso grupo vinha quando chegaram à torre de vigia?

    Jonas lambeu os lábios antes de responder. Tentou lembrar-se das palavras de Eric.

    — Nós trabalhávamos para o sir Orland Capro. Estávamos em um grupo de comerciantes, atravessando as terras devastadas quando fomos atacados por Dentes de adaga — Jonas percebeu as sobrancelhas de Raggin se erguerem. — A maioria das pessoas foram mortas e apenas nós e o sir escapamos.

    Raggin mexia suas mãos, escrevendo nos pergaminhos. Jonas percebeu que as letras que ele escrevia eram parecidas com as das paredes.

    — A quantos dias fora isso? — perguntou Raggin parando o movimento de sua mão.

    — Não sei ao certo. Algumas semanas, talvez.

    A pena voltou a se mover com seu som áspero ao percorrer o papel. Jonas sentia o peito gelar. Não sabia o que aconteceria ou no que aquele interrogatório poderia causar.

    — Certo. Atravessastes os brejos de Lodos correto? — Raggin retomou o questionário.

    — Brejos?

    — Pântanos. Os pântanos de Lodos — Raggin levantou a pena na altura do rosto. A luz das gemas em seus dedos reluziam nos olhos cinzentos.

    Algo naquele gesto fez Jonas se remexer em desconforto.

    — Sim — respondeu —, levamos vários dias para isso.

    A pena voltou a preencher o pergaminho.

    — E então chegaram até a torre de vigia, suponho?

    Jonas acenou afirmativamente com a cabeça.

    — Quanto tempo passastes na torre?

    Jonas apertou as mãos uma na outra. Os anéis de Raggin pareciam vagalumes em movimento toda vez que ele movia a sua mão. Por algum motivo aquilo o fazia sentir-se inquieto.

    — Chegamos quando estava ficando de noite.

    — No anoitecer, então — Raggin o interrompeu e então gesticulou para que continuasse.

    Jonas se remexeu novamente, tentando retomar as palavras. Enquanto o fazia pôde perceber o que pensou ser satisfação disfarçada na expressão do ouvidor.

    — Estava de noite e buscamos refúgio lá. Mas não encontramos ninguém — respondeu por fim.

    — Então decidiram por entrar.

    — Sim, bem, o sir decidiu — disse, seguindo o conselho de Eric para culpar o cavaleiro pelas decisões tomadas.

    — Então, o que lá encontraram?

    — Eu entrei com o sir e vimos que a torre estava vazia, então subimos os andares.

    A pena silenciou-se. Jonas prendeu a respiração sentindo o olhar fixo de Raggin. A única coisa que Jonas conseguia ouvir no cômodo era o crepitar vindo da lareira.

    — E o que encontraram lá — perguntou Raggin.

    — Um monstro — Jonas respondeu. A palavra parecia ter sido arrancada de sua boca.

    — De que tipo? — Os anéis nos dedos do homem pareceram brilhar. Um deles mais do que os outros.

    — Eu não sei ao certo. O sir não disse — Jonas sentiu-se mais uma vez absorto, mas não pelo calor ou pelo conforto, e sim pelos olhos daquele homem à sua frente. Pareciam dois faróis o guiando por um caminho na escuridão.

    — Como ele era?

    A boca de Jonas pareceu se mover sozinha ao responder. Sentiu sua voz tremer ao ponto de quase falhar. Não conseguia desviar os olhos dos dele.

    — Tinha uma enorme cabeça e patas de inseto. Pelos no pescoço e asas de couro, e fazia um som terrível. Era tão alto como um homem adulto ou mais.

    — Esse monstro matou a guarnição?

    — Sim. Eles estavam mortos, pendurados em casulos quando os encontramos. O monstro nos atacou e matou sir Orland. Escapamos em um barco preso no cais.

    — E para onde o monstro voou após isso.

    — Não sei.

    O anel perdeu o brilho e Jonas sentiu como se seus pulmões estivessem vazios. Tossiu quando o ar os invadiu novamente. Era como se sua respiração tivesse cessado por alguns segundos sem que ele percebesse. Uma náusea dançava em seu estômago, junto de uma fina dor que cutucava sua cabeça.

    — Obrigado por responder às minhas questões, senhor Jonna — Raggin disse enquanto escrevia algo nos papéis em cima da mesa.

    Seu peito se movia de forma mais brusca, o rosto parecia mais pálido e o suor brotava de sua testa. Ainda assim, o sorriso em seus lábios se manteve.

    — A guilda de aventureiros pede perdão pelo transtorno e oferece uma compensação. Por favor, entregue isso na recepção para recebê-la. — Ele estendeu a mão, oferecendo um papel para Jonas.

    — Ah, obrigado — Jonas o recebeu, sentindo-se mais relaxado do que momentos antes.

    Sem que Raggin pedisse, Jonas se levantou e se dirigiu para a saída. Raggin não mostrou qualquer objeção ao gesto. Ele apenas se pôs em pé e se dirigiu com passos silenciosos para frente da lareira.

    Antes de sair Jonas deu-lhe uma última encarada, vislumbrando aqueles olhos cinzentos mais uma vez. Pareciam mais alaranjados do que antes. Atravessou a porta, retornando ao mundo barulhento ao qual se acostumara nas últimas semanas. Bem diferente do interior silencioso do confortável escritório de Raggin.

    “Silêncio”, pensou, percebendo o que o incomodava naquele homem.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota