Capítulo 84 - Melodia febril.
Chuva. Pela janela Jonas a assistia cair sobre a rua abaixo. Podia ver a água escorrer pelos telhados de madeira que cobriam as maltratadas casas de pedra e cair no chão coberto de calçamento. Jonas ouvia as gotas baterem contra o teto como se caíssem sobre ele próprio. Tão alto, e mesmo assim ainda escutava os sons da vida abaixo.
Beuha era o nome daquela cidade, ou assentamento, como os que moravam nela a chamavam. Segundo o que Eric descobrira já foram uma grande cidade, nos tempos em que grandes e antigos impérios dominavam toda aquela região, até vir a desolação e só restarem ruínas para serem reocupadas. História tão antiga que Jonas não via problema em não lembrar. Eric via, lembrava e fazia com que Jonas também lembrasse.
Jonas voltou sua atenção para o interior do quarto. Graça descansava deitada sobre uma das duas camas de palha que serviam de mobília, junto a um criado mudo. Bandagens estavam em volta do braço que lhe faltava. Leandro estava sentado de pernas cruzadas na outra. A cabeça apoiada no braço, enquanto olhava para o chão. Parecia entediado. Todos estavam. Por três dias não haviam saído do prédio da guilda desde que chegaram à cidade após serem resgatados no rio.
Podiam descer até a taverna para comer e conversar com outros hóspedes e frequentadores da guilda, mas não podiam sair. Era um parecerem privado, mas ao menos tinham camas e um teto, coisa que Jonas havia esquecido qual era a sensação.
— Quanto tempo tu acha que ainda vai demorar? — Leandro perguntou, esfregando os olhos com as mãos.
— Não sei. Não lembro de ter demorado tanto assim — respondeu Jonas, se afastando da janela. Ouvira uma melodia que lhe chamou atenção vinda do andar de baixo.
— Demorou mais do que eu, pelo menos — Leandro se jogou para trás na cama, suspirando. — Que caralho de cama dura, bem que poderiam apresentar espuma pro dono desse lugar.
— Se inventarem eu mostro pra ele — Jonas disse, caminhando até a porta e saindo do quarto.
Caminhou pelo corredor ouvindo o som das conversas que ocorriam por trás de cada porta. Não conseguia discernir as palavras, apenas ouvia o coro desorganizado de uma dezena de vozes a se misturar em viva confusão, que começava a lhe dar dor de cabeça. A música estava cada vez mais alta em sua mente.
Jonas desceu uma escadaria circular que levava para o piso térreo, notando passos descompassados a subirem-na. Percebeu segundos depois que se tratava de um bêbado sendo guiado por uma mulher igualmente embriagada. Muito provavelmente iriam para um dos quartos. Jonas se pressionou contra a parede e os deixou passar, dobrando os lábios enquanto esperava a cena à sua frente desaparecer. A forma como a mulher mal se vestia e o comportamento lascivo do homem para com ela. Sabia o que eles fariam e não tinha nada haver com ele, foi o que decidiu pensar. Começou a remexer a boca, sentindo um gosto desagradável.
“Não lembre dela”, falou a si mesmo, sufocando uma antiga lembrança.
Ficou algum tempo na escada, encostado na parede, mesmo após o som dos passos dos dois se distanciar. Viu pessoas subirem e descerem, mas permaneceu parado, olhando para as paredes. Por um momento não sabia mais para onde iria ou o que desejava fazer lá, até ouvir mais uma vez a melodia e tornar a descer a escadaria.
No térreo, o prédio se revelava em uma grande câmara de pedra repleta de mesas e separada em duas áreas públicas. A recepção, onde os sons tomaram forma em um caos de pessoas a entrar, sair e passear pelo estabelecimento, e a taverna onde o caos era complementado por alegria, álcool, comida e música.
A esse segundo foi para onde Jonas se dirigiu.
Homens munidos de armaduras pesadas, espadas, mantos, e arcos. Mulheres com jóias, capas e cajados.
“Aventureiros”, era do que se chamavam. Desbravadores das terras desoladas. Pessoas saídas dos filmes de fantasia que Jonas sempre assistira quando entediado. Alguns seguravam espadas longas, outros arcos e aljavas, cajados e escudos. No entanto, todas eram humanas. Não vira elfos ou anões, Hobbits ou pessoas-feras. Jonas viu-se um tanto desapontado, mas, por algum motivo, essa falta de anormalidade também lhe era reconfortante. Nada de monstros, apenas pessoas peculiares festejando ao som de música. A música que o atraíra.
Jonas seguiu a melodia. Procurou o canto onde os músicos estavam tocando suas canções. Viu um homem imensamente gordo vestindo camisa, calças e sapatos verdes que lhe cobriam todo o corpo, deixando à mostra apenas a cabeça oval e as delicadas mãos que seguravam um instrumento de cordas retangular, a qual dedilhava. Ao lado dele, um homem pequeno – que não devia ter mais de um metro e meio – batia em uma percussão em um tambor cônico tão grande quanto ele. Os dois eram acompanhados por uma garota de vestido amarelo com bolas pretas, que saltitava entre e a volta deles segurando um pequeno violão, enquanto cantava uma música obscena.
Percebeu nela um rosto familiar. O que o fez se perguntar onde já a tinha visto antes. Enquanto perdia-se em seus pensamentos, uma mulher com um perfume doce lhe puxou pelo braço. Ao olhá-la, viu no rosto marcado pela meia idade a expressão rubra de uma pessoa bêbada. Usava um vestido vinho e roxo. Jonas sabia perfeitamente o que ela era.
Ele se desvencilhou abruptamente e afastou-se da mulher, que soltou uma torrente de ofensas, abafadas pelo som dos instrumentos.
“Não lembre dela.”
As pessoas dançavam, pulando em círculos dentro de círculos girando em voltas no salão. Jonas se viu preso entre eles, sem conseguir sair. Parecia-lhe um redemoinho humano.
A música aumentava em ritmo, tornando-se cada vez mais frenética que fazia o coração de Jonas bater mais rápido em seu peito. As pessoas se tornaram mais agitadas, movendo-se ao som da música.
Jonas se viu sendo levado por aquela correnteza de calor, álcool e fulgor, incapaz de sair, até que uma mão o agarrou e puxou-o para fora, levando-o até um balcão que servia como bar. Jonas se viu sem ar, respirando pesadamente. Suor quente escorria por sua testar a vapor cobria-lhe os olhos. Não havia percebido que se cansara tanto em meio a dança.
Demorou para perceber quem o tirara de lá. Eric limpava as lentes embaçadas dos óculos. Seus olhos estavam caídos e sua pele, pálida.
— Você… a quanto tempo… — Jonas buscava ar a cada palavra.
— A pergunta é a quanto tempo cê tava ali. Tem uns dez minutos que eu tento te tirar de lá — Eric disse, pondo o óculos de volta ao rosto.
Jonas franziu as sobrancelhas, confuso. Não parecia ter passado tanto tempo.
— A música — Eric olhou para os instrumentistas. — Tem algo nela.
Jonas olhou para os tocadores e então para as pessoas dançando. O peito acelerado voltando ao normal.
— Como tu sabe?
— Eu sinto algo como uma vibração vindo de lá e se espalhando por todos os lados.
— Não faz sentido.
Eric sorriu.
— Nada do que rolou com a gente até agora faz — respondeu ele.
Jonas soltou um suspiro cansado.
— Como foi lá? Demorou um bocado — perguntou.
Eric o encarou e então ajeitou os óculos.
— Não pareceu para mim.
Jonas sentiu uma sensação estranha. Lembrou-se da quietude daquela sala. Dos silenciosos passos do ouvidor. Lembrava de parte da conversa, mas não conseguia recordar o restante.
— E como foi? — perguntou.
Eric deu de ombros.
— Ele me perguntou várias coisas sobre a viagem e a torre. Mais sobre a torre. Mas quando disse que não entrei, ele não pareceu muito interessado no resto.
Jonas piscou os olhos. Era disso que não lembrava. Lembrava do ouvidor o perguntar sobre o que havia na torre, mas não o que tinha respondido, nem das outras perguntas após. Sua mente apenas clareou após sair da sala.
— O que acha que ele vai fazer? — Jonas perguntou ao mesmo tempo em que a música terminou e uma salva de palmas e gritos alegres se alastrou pelo salão.
— Ou nos prender, ou nos deixar ir.
Jonas sentiu um calafrio lhe percorrer.
— Mas acho que é a segunda opção. Se fosse para nos prender, nem estaríamos aqui — Ele olhou em volta.
Jonas respirou aliviado.
— E agora, o que vai ser? — questionou, tanto a Eric quanto a si mesmo.
Eric inclinou a cabeça e tirou algo de seus bolsos. Jonas reconheceu o objeto. Uma moeda de prata.
— Vamos viver disso por enquanto.
“A compensação.”
Haviam recebido cada um três moedas de prata como um pedido de desculpas pelo incidente da torre.
— É surpreendente eles terem o conceito de indenização por aqui — comentou Eric.
— E depois?
Eric deu de ombros novamente.
— Me dê algumas respostas também — disse.
Jonas bufou e revirou os olhos.
“Como se pensar fosse minha praia.”
Ouviu o toque das cordas dos instrumentos e se distraiu com uma música nova sendo tocada. Era diferente da anterior, mais calma, melódica e triste.
— Como eu disse antes — Eric começou a falar —, tem algo nessa música, então tente não prestar atenção nela.
Jonas reparou nas pessoas que um momento antes estavam em êxtase. Agora permaneciam em pé, parados como se estivesse em transe. Algumas choravam e soluçavam. Outras seguiam com a voz a melodia da música.
— Por que mais ninguém percebe, então? — questionou.
— Talvez saibam, mas vai saber o que se passa na cabeça de aventureiros.
Jonas olhou para o lugar. “Aventureiros”, pensou.
— Talvez dê certo — disse.
— O quê? — Eric mudou de postura.
— Vamos entrar nessa. Virar aventureiros.
Eric arregalou os olhos e então suspirou.
— Me perguntava quanto tempo levaria pra você ter essa ideia.
Jonas levantou uma sobrancelha.
— Acha ruim?
— Acho toda essa situação ruim — A voz de Eric se tornou monótona.
— Então o que fazemos? — Jonas ergueu os braços, batendo em um homem ao seu lado, que caiu no chão, bêbado.
— Exatamente isso. Não vejo outra opção também — Eric respondeu, sem dar muita atenção ao ocorrido.
— Se já tinha pensado nisso, porquê perguntou?
— A verdade eu só esperava que outra sugestão viesse de ti porquê não via essa ideia com bons olhos. Não quero acabar como o Túlio.
A boca de Jonas amargou.
— Eu sei, mas… — Ele falava quando foi interrompido por Eric.
— Mas, já que estamos em um mundo em que isso é possível e se isso parece ser a opção mais rápida pra se conseguir dinheiro, por que não?
— Certo, então tá decidido — Jonas disse, passando a mão no cabelo, e remexendo-o.
— Outra coisa — Eric disse.
— O que?
— Eu sei que você não tá legal. Quero dizer, a coisa com a Júlia e…
— Parou, tá bom. Não quero falar disso.
— Pois é, mas tu pensa o tempo todo nisso pelo que percebo. Essas olheiras dizem isso — Eric estendeu o dedo para os olhos de Jonas. — Não dorme bem nem depois que a gente chegou aqui.
— Você também não — Jonas apontou, fitando os olhos cobertos por anéis negros do amigo.
— É, mas não é por causa de uma garota, isso posso dizer.
Jonas sentiu a raiva lhe subir o rosto. Eric pareceu perceber.
— Sério, não estou tirando com a sua cara. Só estou preocupado contigo cara. Eu não quero perder outro amigo.
Jonas umedeceu os lábios e sentiu a garganta secar.
— Eu sei. Eu sei.
— Então, vai parar de pensar nela e deixar o que rolou pra lá?
Jonas fez um esforço para que as palavras lhe saíssem da boca.
— Sim, eu vou. Vou tentar, pelo menos.
Eric tocou em seu ombro num gesto afetuoso e sorriu.
Jonas olhou ao redor do salão, tentando recuperar a compostura quando viu aquela mulher que o havia puxado. O vestido roxo e vinho desgrenhado e se desprendendo do corpo. Ela ria junto a um grupo de três homens que vestiam armaduras de couro leves. Eles se dirigiam em direção às escadas.
Então a imagem de outra mulher lhe veio à mente. Uma que um dia já lhe chamou de filho.
“E essa, como eu vou parar de pensar nela?”, se perguntou, ouvindo a melodia lenta e triste que era tocada.
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