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    Carmen abriu a boca, sugou o ar e, antes que percebesse, começou a expirá-lo ao sentir o abraço da noite – pelo que julgou ser a sexta vez desde que perdera as contas.

    O vento noturno tinha um frescor que turvava os sentidos. Batia contra e através de seu corpo, de modo que parecia vir de todas as direções. O céu escuro de nuvens purpúreas a meia luz da lua azul, e cortadas como pães em uma vitrine de padaria, dava cor a sua noite e beleza exótica à sua vista.

    Do alto de uma das raras casas de dois andares, ela olhava para os esparsos pingos de luzes trêmulas espalhados à sua volta. E para um em particular.

    Ainda acordados.

    Fora uma ideia estúpida, sabia. Desejava tê-lo sabido antes de subir naquele telhado.

    Como o havia feito? Da mesma forma que subira no anterior para escapar de Caio. Seu corpo apenas se moveu. Como o sol que nasce e se põe, a lua que muda de forma dia a dia, ou um bêbado a capotar um carro. Ela apenas o fez como se fosse a coisa mais natural do mundo. Como se não soubesse que não podia. Sequer tinha medo de cair. Tudo o que sentia era apenas aborrecimento e preguiça em saber que teria de descer.

    Pensou no quão tarde deveria ser. Não muito, talvez. Não sabia por quanto tempo ficará andando após sair do ateliê. Nem a quanto tempo estava parada ali observando a luz daquela casa se extinguir. Era tolice. O que esperava?

    Nada que vá acontecer, pelo visto.

    Não era sequer um plano, apenas uma ideia infantil trazida por um desespero infantil. Infantil como sua motivação: vestidos, salões, danças e qualquer coisa magnífica que um baile em um mundo de fantasia pudesse oferecer.

    Algo que ela desejava.

    Eduardo estará lá!

    Algo que ela não pôde ter.

    Julia não.

    Mas desejava.

    As luzes minguaram ao seu derredor uma a uma, como velas sopradas pelo vento. Agachada, Carmen fitava apenas as luzes na casa à sua frente, torcendo para ninguém reparar em sua figura empoleirada como um pombo acima de um telhado.

    Já era tarde demais para voltar, percebeu. Se o fizesse aquilo não seria algo mais do que estupidez, não que já não o fosse. No entanto, seria uma estupidez inútil.

    Tentou ignorar o frio, a fome, o incômodo em seus pés devido aos sapatos pouco úteis em escaladas. Ignorar que seu vestido estaria em estado deplorável após o esforço da subida. Ignorar que aquilo era uma completa perda de…

    As luzes da casa apagaram-se.

    O ar preso em seu peito esvaiu-se por seu nariz, que tentou inspirá-lo novamente, fazendo com que Carmen arfasse levemente.

    Dormiram? O que ela faria agora? Deveria tentar entrar naquele momento ou esperar um pouco mais? Como entraria sem fazer barulho? Não sabia bem. Nunca havia invadido uma casa antes.

    Invadir uma casa…

    A noção do que estava intencionado fazer a atingiu como um tapa. Como foi capaz de pensar em uma loucura como aquela? Era ridículo, arriscado e mesquinho. Sequer sabia da punição que receberia se fosse pega. Seria presa, chicoteada, ou até enforcada? Sua pele tremia ao imaginar cada uma dessas possibilidades.

    Pensou em descer daquele telhado, correr para casa de Thierry e pedir desculpas. Passaria dias e dias sentada junto a Júlia, Letícia e do idiota do Théo enquanto o velho os ensinava a ler escrever e fazer tabuada, se ele soubesse isso.

    Pensou isso até ver o movimento de uma figura estranha se movendo nas ruas abaixo.

    Se agachou, escondendo-se da vista.

    A figura encapuzada parou em frente a casa de Natalie e olhou para cima. Em seguida pôs as mãos nos sulcos entre as toras usadas na construção e a escalou, chegando em apenas alguns segundos a altura do andar de cima. Então começou a contornar a parede, fazendo a breve opinião positiva que Carmen tinha sobre ele diminuir.

    Natalie morava em uma casa de esquina de dois andares cercada por outras de apenas um andar. Por que motivos aquele projeto de ladrão subiria pela frente da casa e a contornaria quando poderia simplesmente se trepar em uma das casas vizinhas e caminhar pelo telhado até a janela a qual desejava?

    Sorriu ao pensar nele como um tolo. Ao menos uma satisfação naquela noite.

    Uma rajada de vento soprou e afastou o capuz da cabeça revelando a cabeleireira, irreconhecível em meio a pouca luz da noite fechada.

    Era um homem, Carmen percebeu, não deixando de notar também que ele tinha um invejável equilíbrio e demonstrava muita flexibilidade – considerando o tamanho – ao se mover tão rapidamente enquanto escalava. Não tanto quanto ela, no entanto.

    Parou em frente a uma janela, que se abriu após algum tempo. Carmen reconheceu a figura silhueta de Natalie aparecendo no quarto escuro.

    Os dois pareceram conversar por pelo menos um minuto, antes do homem – ainda pendurado do lado de fora da janela – segurar Natalie, fazendo-a escorregar até suas costas, onde ela se agarrou pondo os braços ao redor de seu pescoço e ombros.

    Em uma demonstração de força, que novamente deixou Carmen surpresa ele desceu pela parede até a rua, deixou Natalie descer de suas costas e então a tomou entre seus braços – levantando-a no ar e a carregando, como um príncipe de contos de fada – e caminhou pela rua com certa rapidez, passando ao alcance da precária luz de uma das poucas tochas ainda acesas no limite da vista de Carmen, revelando a cor alourada de sua cabeça.

    Todas tem alguém, pensou ela bufando. A boca, e o que havia em seu peito, se retorcendo.

    Olhou para a janela, se perguntando se Natalie havia deixado aberta. Não faria mal checar, decidiu.

    Desceu do telhado, escondendo-se em um beco ao ouvir os passos de um guarda se aproximando, o qual xingou por passar no exato momento em que ela começara a agir.

    Deixou-o passar e esperou por certo tempo até ter certeza de que havia ido embora. Então escalou a casa da forma que o projeto de ladrãozinho devia ter feito, indo em direção aquela por onde Natalie havia saído, na lateral da casa, através da casa vizinha.

    Tocou de leve a lateral de madeira e sentiu ela se mover. Sorriu, começando a empurrá-la mais para dentro. Então se conteve, perguntando o que faria caso Natalie tivesse irmãos que dormissem com ela, ou se os pais da garota a vissem.

    Trouxe à memória as fofocas que escutara sobre Natalie, e tudo o que a mesma já falara sobre si mesma.

    Sabia que o pai dela era alguém próximo ao prefeito e comumente passava noites lá por conta do trabalho de administração da aldeia. Também sabia que a mãe roncava de forma estrondosa e que ambas – ela e Natalie – dormiam juntas quando pai não estava. Ela nunca falara nada sobre ter irmãos.

    Carmen abriu um pouco mais a janela e espiou para dentro do que reconheceu como sendo um quarto. Seus olhos pareciam se acostumar bem rápido com a escuridão, pois percebeu que estava vazio.

    Entrou sem fazer barulho, imaginando se o pai de Natalie estaria em casa, ou se a garota era imprudente ao ponto de correr o risco de escapulir com ele presente. Carmen não seria tão burra, é claro.

    Caminhou com passos cautelosos. Torceu para não pisar ou encostar ou topar em nada que fizesse barulho ou quebrasse, lembrando de sua última aventura noturna invadindo um cômodo.

    Reconheceu os formatos do guarda roupa, da cama e de um baú na escuridão.

    Foi ao baú, onde pensava estar o que fora buscar e se agachou, trazendo as mãos uma presilha de cabelo que mantinha consigo e uma das agulhas que pegara emprestadas do ateliê.

    Abriu o baú depois de uma dúzia de respirações, aborrecendo-se mais e mais a cada uma delas. Enfiou lá as mãos e sentiu os tecidos que jaziam guardados. Não conseguia diferenciar as cores, mas procurou por uma textura específica que só sentia nos vestidos feitos no ateliê de madame Jackelin. Parou quando os seus dedos deslizaram pela maciez e sedosidade conhecidas das peças que fazia todo dia.

    Levantando-se, a tirou, contemplando o tecido sem cor devido a falta de luz. Lembrou das palavras rígidas ditas pela senhora Marjorie sobre a importância de terminar aquelas peças até o dia da partida de sair Alóis – e da imagem da verruga se contorcendo no rosto da velha mulher.

    Enrolou a roupa no braço, imaginando se isso seria o bastante para que Natalie fosse punida. Torceu para que sim.

    Estava para fechar o tampão quando percebeu uma vibração vinda do baú. Uma sensação conhecida. A mesma que sentirá no ateliê de madame Jackelin e perto de Thierry. A mesma que sentia junto ao vestido. A sensação vinda das jóias que o decoravam.

    Enfiou a mão no baú e remexeu furiosamente as roupas que lá estavam até sentir nos dedos um toque quente que a fez afastar a mão de surpresa.

    Tateou mais calmamente e fechou a mão em um objeto pequeno e duro, e quente.

    Desembolsou os tecidos que o cobriam e sentiu aquilo que reconheceu como uma das jóias de madame Jackelin. Nunca havia tocado em uma.

    Quente.

    Por que estava tão quente?

    Lembrou que as outras nunca haviam comentado sobre qualquer coisa diferente dessas jóias. Será que apenas ela sentia isso? Nunca se perguntavam por que eram tão quentes?

    Tomaria aquilo em conta e o pensaria em outro momento, pois um questionamento novo e mais merecedor de sua atenção lhe surgiu a mente.

    Por que Natalie está com uma?

    Sorriu, e enfiou no bolo de tecido em seu braço feito pela peça surrupiada do baú. Desceu da casa com certa dificuldade, mas com cuidado o bastante para ninguém a ver. Também fechou o baú e deixou a janela encostada na mesma medida que Natalie havia posto.

    Caminhou pela noite, rindo consigo mesma como nunca em muito tempo.

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