Índice de Capítulo

    Júlia esfregou as mãos, tentando se aquecer. A noite naquele mundo parecia ser mais fria do que o que estava acostumada. Também parecia vir mais rápido também. Em um instante e antes que percebesse a luz alaranjada do crepúsculo tinha desaparecido no horizonte. Dando lugar a imensa tapeçaria de estrelas que era o belo céu noturno acima de sua cabeça, coroado com uma bela lua azul brilhando em seu topo. 

    Não havia nuvens, o que fazia a noite mais clara. Abaixo ela via pontos brilhantes espalhados pela escuridão. Tochas e luzes vindas das casas ao longe. No entanto, ela não estava sentada no lado de fora em meio ao frio para ver as distantes luzes da noite, mas algo que acontecia a poucos metros dela. Dois homens, despidos da cintura para cima, lutavam com bastões de madeira, em uma espécie de treinamento noturno que repetiam todos os dias. Embora Júlia achasse os golpes violentos demais para isso ser considerado um treinamento, assustando-se sempre que Eduardo era acertado por Caio. Embora o contrário acontecesse muito mais vezes. 

    — Eles estão bem animados hoje — Comentou Carmen, sentando-se ao seu lado.  

    — Como eles aguentam ficar sem camisa nesse frio? 

    A garota vestia uma espécie de camisola grossa que cobria o corpo todo. Uma roupa bem quente, adequada para aquele frio. 

    — Eu não entendo por que eles fazem isso? — Júlia murmurou. 

    Embora isso não importasse de verdade para ela, contanto que pudesse ver a figura suada de Eduardo sem camisa. 

    — Quem sabe, talvez queiram só uma desculpa para competir um com os outro. Quem ganhar leva a sobremesa, ou coisa assim. 

    — A gente não come sobremesa — respondeu Júlia. 

    De repente Júlia sentiu falta dos bolos que sua mãe fazia. Não havia muitas coisas doces naquele mundo. Apenas frutas e o xarope quente que Thierry de vez em quando fazia para eles. 

    — Ah, você entendeu — Carmen estava sentada sobre os joelhos, apoiando o rosto nas mãos. Observando os garotos com o rosto levemente corado. 

    “Para quem ela está olhando”, Júlia se perguntou, sentindo um certo nó em sua garganta apertar. Então balançou a cabeça afastando aqueles pensamentos idiotas. 

    Ela voltou a olhar para os garotos, que balançavam violentamente seus bastões um contra o outro. Podia ver o suor de seus corpos brilhando a luz das tochas. Ouvia o som da madeira ressoar toda a vez que os bastões se encontravam. E então escutou o gemido de dor de Caio quando Eduardo acertou sua mão, o fazendo derrubar o bastão. 

    — Merda — praguejou. 

    Eduardo deu um sorriso de triunfo, sem se parecer se preocupar com o amigo machucado. 

    — Então, admite a derrota? 

    — Como se fosse, ainda estou de pé — Caio pegou o bastão caído no chão e avançou novamente no namorado de Júlia. Que recuou, se esforçando para desviar dos seus ataques. 

    Ele parecia se divertir com aquilo. O que Júlia não conseguia compreender. Ela se levantou, suspirando. Provavelmente permaneceriam naquilo até que o jantar estivesse a mesa, no entanto não estava com vontade de assisti-los. Carmen já faria isso por ela. Com esse pensamento incomodo, adentrou a cabana. 

    Era uma casa bem grande, comparada as que vira naquele mundo. Possuía três quartos. Dois quais um era usados por ela, Letícia e Carmen, o outro pelos meninos, e o último por Thierry e o seu neto. Havia também, além da sala da lareira, a cozinha, a sala de refeições e o escritório de Thierry. Lugar em que o velho homem passava boa parte do dia, e também onde atualmente estava. 

    Ela entrou na sala da lareira, pondo mais lenha para alimentar a fraca chama prestes a se apagar. Alimentou a chama e passou em direção a cozinha, encontrando-se com Letícia que tinha uma careta de dor no rosto, sangue em uma das mãos, e Roque ao seu lado a enfaixá-la. De vez em quando a amiga ajudava o garoto com o jantar. Ela tinha certa experiência com cozinha, e gostava de se gabar disso. 

    — Tá tudo bem? — perguntou, desviando o olhar da mão ensanguentada. 

    — Sim, eu só me cortei com a faca enquanto fatiava os legumes, não foi nada muito sério — Letícia respondeu. 

    — Pronto, terminei. Depois pedirei ao meu avô por algum remédio. Vá e sente-se próximo a lareira. Deixe que eu termino o resto — Roque respondeu em seu tom reservado de sempre. 

    — Tá certo, valeu — Letícia respondeu acariciando a mão machucada. 

    — Perdão, o que quer dizer “valeu”? — Roque disse confuso. 

    — Ah, obrigada, eu quero dizer. 

    Roque assentiu retornando aos seus afazeres. 

    Letícia suspirou. As duas voltaram para a sala da lareira, sentando-se em frente ao fogo. 

    — Tá doendo muito? — perguntou Júlia, olhando a atadura. 

    — Incomoda um pouco. 

    Júlia tomou a mão da amiga, a massageando. 

    — Lembrei de uma coisa que a minha vó fazia — comentou com uma sensação nostálgica. 

    — O que? 

    — Quando a gente se machucava, ou caia ela tocava a ferida e fazia uma reza. 

    Letícia levantou uma sobrancelha. 

    — Qual era? 

    Júlia pensou um pouco, tentando se lembrar das palavras, e então as proferiu incerta se estava falando corretamente ou não. Letícia escutou silenciosamente. Quando terminou, percebeu uma figura alta na entrada, as encarando. Ela virou-se para Thierry sentindo um misto de surpresa e vergonha. 

    — Ora, não se preocupe comigo jovem, continue. Nunca tinha ouvido essa prece antes, e não conheço esse São Lázaro a que falais, quem és? — disse o velho homem assentando-se em sua poltrona. 

    Júlia pensou, incerta do que dizer. Thierry era um homem muito religioso e devoto ao seu deus, Ellday. Embora seus costumes fossem um tanto diferentes Letícia via semelhanças entre ele e seus parentes mais religiosos. 

    — É um homem santo senhor Thierry — respondeu por fim. 

    — Nunca ouvi falar deste. Diga-me as histórias sobre ele? 

    — Eu mesma não sei. Minha avó é que me ensinou essa reza. 

    — Hum, embora tenha visto e ouvido falar de muitos homens santos, um que sara feridas é algo surpreendente. Ele deve ser muito próximo de Ellday. 

    — Não sei se ele podia ser considerado assim — Letícia comentou. 

    — Como não? Sarar feridas é algo que mesmo os maiores sacerdotes e magos não podem fazer — disse Thierry. 

    — Mesmo? — Letícia ergueu uma sobrancelha. 

    Thierry afirmou com a cabeça. 

    — Tanto na magia elemental quanto nas súplicas dos sacerdotes nunca vi um homem ser curado utilizando magia. Apenas medicantes e curandeiros podem tratar de alguém ferido. 

    Curiosamente, apesar de sua similaridade com a religião a qual Júlia estava acostumada, a de Thierry não parecia se incomodar muito com magos, ou persegui-los. Na verdade, ele mesmo contava histórias sobre alguns que alegara ter conhecido. 

    — Agora, dito isso, o que foi isso em sua mão mocinha? — Ele perguntou, olhando para a mão enfaixada para Letícia. 

    — Eu me cortei — respondeu ela, levantando a mão. 

    — Por que não me chamaram? Quem fez a atadura — ele se aproximou como se estivesse examinando o ferimento. 

    — Roque cobriu a ferida. 

    — Hum, acho que ele não aprendeu nada então — O velho homem respondeu, se levantado da poltrona. 

    Ele saiu da sala, retornando pouco depois com uma bolsa de couro marrom. 

    A “bolsa de primeiros socorros”, como Caio a chamava. 

    Ele retirou algumas pequenas vasilhas de madeira tampadas e folhas, espalhando-as pelo chão, e começou a refazer o curativo. O homem tinha muito conhecimento sobre medicina. 

    Júlia saiu do cômodo, sentindo-se incomodada com a visão do ferimento. 

    Ela passou pelo quarto dos garotos onde Theo estava enfurnado desde que saíra do banho. O garoto sempre se trancava enquanto Caio e Eduardo tinham sua seção de luta noturna. Eduardo dizia que ele meditava para acumular energia. Júlia não compreendera bem o significado daquilo. Sempre que tocavam no assunto, os outros, Eduardo, Caio e as meninas, logo falavam do rio e dos… dos monstros. Mas Júlia não se lembrava de nada. Como poderia? Ela estava inconsciente naquela hora. Teve de ser resgatada pelos outros. Sentia-se mal por isso, como se tivesse sido uma espécie de fardo. E ela foi. 

    Entrou em seu quarto, deitando-se na cama. Não era tão confortável como as que tinha em seu mundo, mas era melhor do que dormir no chão. Mesmo que tivesse de dividi-la com os empurrões constantes de Carmen e o ronco de Letícia. 

    Suas costas doíam, queria dormir. Dormir e acordar em sua casa, com o cachorro do vizinho a latir, e os seus pais a discutirem sobre qualquer coisa. Se bem que seu pai não estaria em casa para isso. Ele tinha ido embora, em definitivo, ou fora isso que a sua mãe falara. Ela se trancara no quarto por três dias, sem sair para comer, ou tomar banho. Júlia teve de se virar durante aquele tempo. Para a sua sorte, Jonas estava lá com ela. Ajudando-a a manter os nervos sobre controle. As piadas, o deboche, os conselhos. Tudo isso manteve sua cabeça no lugar. 

    Mas ele tinha que dizer aquilo. Tinha de fazer aquela proposta justo naquele momento. Sua reposta o desapontou, e ele foi embora. 

    Um tempo depois, sua mãe saiu do quarto, e voltou a sua vida normal, mesmo sem o marido. Assim como Júlia, que agora estava sem o pai. 

    E sem Jonas também. 

    Desde aquele dia, nada foi o mesmo. Ele se distanciou aos poucos. Eles ainda falavam um com o outro, porém ele não mais iniciava as conversas, e demorava para receber suas mensagens, além de parecer não mais prestar tanta atenção ao que ela dizia enquanto conversavam. 

    Mas então, um dia, de repente, ele a ignorou por completo. Não lhe deu bom dia, não brincou com a capa infantil de seu caderno, como sempre fazia, não pegou sua caneta quando ela a derrubara no chão, não prestou a mínima atenção nela. Apenas a tratou como se não existisse. Até aquele momento ela não entendia o porquê de ele agir de tal forma. Então um estalo soou em sua cabeça, junto de uma batida na porta. 

    Sentou-se na borda da cama. 

    “Então foi por isso”, pensou sentindo um estranho misto de culpa e raiva. Ela apenas tinha dito “não”, fora honesta, mas por que se ressentia tanto assim? Por algum motivo o rosto de sua mãe veio a sua mente. 

    — Júlia, o jantar está pronto — Ouviu a voz de Eduardo dizer do outro lado. 

    — Certo, já vou — Ela respondeu. 

    Ela saiu pela porta, encontrando-se com Eduardo, que continuava sem camisa, em pé no corredor. 

    — Não devia se limpar? — ela perguntou. 

    — Sim, eu ia, mas Caio entrou primeiro no… Tá tudo bem? — ele disse, com uma expressão séria. 

    — Hum? sim, por quê? 

    — Está chorando — Ele disse enxugando uma lágrima do rosto dela com o dedo. 

    — Não é nada — disse, tentando limpar o rosto. Detestava fazê-lo se preocupar. — Apenas lembrei lá de casa, dos meus pais… de um amigo. 

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