Capítulo 33 - Uma voz doce, uma verdade áspera.
O sol se pôs, tornando a paisagem antes dourada em uma enorme vastidão escura. Ítalo o observou desaparecer entre os montes de areia no horizonte. Na verdade, eram dunas, mas isso não importava. Era apenas a sua mente tentando o distrair. Não havia muito o que fazer naquele momento além de andar. Mesmo apôs serem atacados por ladrões, as coisas não mudaram tanto. Continuavam viajando de noite e dormindo durante o dia, com a diferença de que agora um ficava acordado em vigia enquanto o resto dormia, alternando com outro quando o sol subia até certo ponto. Era difícil para ele, quando era a sua vez, decidir qual era o ponto certo. Sempre acordava o próximo vigia antes ou depois da hora certa, o que deixava os outros transtornados, principalmente Marcelo.
O ataque em si não foi tão ruim. Ninguém ficou ferido, a exceção do ladrão que teve os dedos quebrados por Tyler. Pamela o atou com pedaços rasgados de tecido, orientando para que não se movesse tanto. Ela queria que eles o levassem também, até que seus ferimentos melhorassem. Ele disse que seus companheiros retornariam e o ajudariam
Tyler viu essa observação como um motivo para “calar” o ladrão. Algo que Pamela se opôs piamente. Eles o deixaram lá. Mesmo desconfiados, eles seguiram na direção indicada por ele. Ítalo não sabia se essa era a escolha correta, mas não é como se ela fosse sua.
O ar frio e seco assolava seu corpo. A lua não apareceu, tornando a noite estava mais escura. Felizmente seus olhos aos poucos estavam se acostumando com a escuridão. Mesmo assim precisava tomar cuidado onde pisar.
Ao longe escutavam sons altos e distantes, parecidos com uivos. Marcelo dissera que não precisariam se preocupar com predadores desde que eles estivessem em menor número. Além de agora eles poderiam se defender com armas pegadas de algumas ruínas encontradas pelo caminho. Tyler achou apropriado levar algumas desde o ataque dos ladrões. Todos concordaram, mesmo Pamela, que era tão aversa a violência.
Tyler levava consigo uma alabarda, Pamela escondia uma adaga em suas roupas, Ítalo achara engraçado a forma tímida como ela a pegara. Apesar de já levara estranha adaga que encontrara na caverna a qual acordaram, ele mesmo pegara para si uma espada curva do tamanho de seu de seu braço. Não porque achava que conseguiria usar, mas sim por ficar fascinado pelos entalhes em seu cabo. Não era tão pesada para ele carregar, e a bainha podia ser atada na cintura. A quantidade de ruínas e túmulos transformaria aquela enorme estrutura escarpada como um dos maiores sítios arqueológicos em seu mundo. Cada estrutura caída por onde passavam fazia seus olhos brilharem.
Mas a mesma animação não podia ser vista em seus companheiros de viagem. Daisy demonstrava o medo e a preocupação de sempre, e Pamela, mesmo se esforçando para acalmá-la, estava ficando cada vez mais inquieta. As reclamações de Marcelo eram cada vez mais frequentes, e Tyler era um mistério. As vezes calmo e soturno, outras vezes falante e jocoso. Parecia uma pessoa diferente a cada virada de lua, mas ainda assim, de alguma forma, ele era confiável. Até Marcelo tinha de admitir isso. E não era para menos.
Afinal, se não fosse por ele, Ítalo teria morrido nas mãos do “porco”, como o próprio Tyler o chamara, pois, segundo ele, o homem apenas comia, andava e dormia. O homem continuava em silêncio, a exceção de quando começava a gritar sem razão alguma, assustando a todos. Não demonstrava resistência quando o diziam para andar ou parar. Pamela, mesmo assim continuava suas frustrantes tentativas de se comunicar com ele. Marcelo tentava ignorá-lo, mesmo resmungado de vez em quando que deviam empurrá-lo e alguma ravina, e deixá-lo lá para os abutres, se é que existiam abutres naquele mundo. Tyler o vigiava, assim como Ítalo, que não esquecia a sensação daquelas mãos em seu pescoço, assim como o calor das lágrimas do homem em seu rosto.
“Por que ele estava chorando?”
Caminharam, até que seus estômagos o forçassem a parar para uma refeição. Marcelo acendeu uma fogueira esfregando duas pedras, uma à outra, usando folhas secas e pedaços de ramos, que eles tinham encontrado pelo caminho, para alimentar as chamas. Havia algumas plantas pequenas em lugares com fontes de água. Marcelo pôs a carne de alguns animais caçados por ele e Tyler sobre o fogo. Eram semelhantes a antílopes pequenos, porém tinham um chifre em suas cabeças, o que os tornava perigosos a certo modo. Porém, desde que o homem passou a usar a alabarda, isso não importou tanto. Ele parecia manejá-la de forma natural, ou ao menos suficientemente bem para Ítalo.
A carne assando trouxe água na boca de Ítalo. Apôs semanas – ou talvez meses – comendo carne malpassada, sua boca praticamente esqueceu como era sabor de algo temperado com sal e verduras de fato, nem se lembrava delas quando comia. Também não sabia mais o sabor das frutas. Pareciam lembranças de uma vida a muito distante, e eram.
Todos comeram animados, mesmo que as porções não fossem tão generosas. Ítalo rasgou a carne, sentindo-a ficar presa em seus dentes. A quanto tempo não os escovava? O pedaço de carne acabou antes que percebesse, deixando-o com uma sensação vazia nas mãos e na boca. Seu estômago queria mais, teria de esperar até o fim da noite, no entanto.
Marcelo contava uma história, seu humor estava melhor que o habitual.
— Uma vez eu saí para tomar uma e chegou um cara, um caminhoneiro que tinha acabado de voltar pra casa depois de uns meses no trabalho. Ele chega e a primeira coisa que o baitola faz é ir pro bar beber. Ficamos lá, eu, ele e uns amigos. Depois que o dono do bar fechou, fomos pra casa desse cara. Ficamos bebendo e falando putaria enquanto a mulher dele servia uns tira gostos.
Ítalo reparava em Tyler, que escutava atentamente, rindo como se soubesse o final da história. Talvez já pudesse adivinhar depois de ouvir tantas outras. Ítalo sabia bem onde as histórias do velho homem levavam. Pamela também já devia saber pela cara de desconforto que fez. Por algum motivo, todos estavam mais relaxados aqueles dias. Talvez pela perspectiva de ter algum lugar para ir.
— O tempo passou e quando percebemos, o cara dormiu bêbado no sofá. ‘Achemos’ melhor sair, mas a mulher dele disse que ‘tava’ tarde e mandou a gente esperar. Quando não, depois de um tempo a mulher dele aparece na nossa frente de camisola fina, quase transparente. Perguntamos o que era aquilo e ela falou “Fico meses esperando por esse corno, e quando ele aparece, a primeira coisa que faz é ir pro bar, e depois chega tão bêbado em casa que não consegue me comer, mas hoje eu dou o troco. De agora em diante vocês vão ter motivo pra chamar ele de corno”. Ela tirou a camisola e nós, bêbados, aproveitamos. No outro dia o cara disse que a mulher estava morta de alegre e ele não sabia por que — Marcelo concluiu, rindo tanto que mal conseguia falar.
Tyler riu junto dele. Ítalo deu um pequeno sorriso, mesmo vendo a mal gosto da história. Pamela revirou os olhos.
Ela bufou, se levantando.
— Vai alimentar seu porco de estimação? — Tyler perguntou de forma zombeteira, olhando para Pamela.
Marcelo riu da provocação.
— Pare de chamá-lo assim — Pamela respondeu, se afastando com um pedaço de carne nas mãos.
Daisy a acompanhou. A garota parecia uma sombra da mulher.
Ítalo olhou as duas se afastarem, sentindo algo incômodo. “Está escuro, talvez eu devesse ir com elas, não?”, perguntou para si mesmo, se levantando logo em seguida.
— Olha só, lá vai o cachorrinho atrás dela — Marcelo brincou, rindo uma risada seca.
— Deixe o garoto — disse Tyler, tomando um gole de água de um dos vasos que tinham trazido.
“Às vezes debochado, as vezes sério, afinal o que esse cara é?”, Ítalo não deixou de pensar enquanto se afastava.
Eles tinham o deixado amarrado a uma certa distância do fogo Em parte por que Marcelo se sentia mais confortável se tê-lo por perto, como também ele aparentava ficar mais calmo assim.
Quando Ítalo se aproximou, viu Pamela lhe entregando a carne na boca. As mãos do homem estavam amarradas, então ele não poderia comer de outra forma. Daisy estava parada a um metro deles, visivelmente trêmula. Ela se sobressaltou quando ouviu Ítalo se aproximar. Pamela olhou para Ítalo de imediato, sua expressão mudando de surpresa para alívio ao vê-lo.
Ítalo não sabia dizer devido a pouca iluminação, mas os lábios dela formaram o contorno de um sorriso.
— Oi, o que foi? — Pamela perguntou.
— Nada, só estava… entediado — respondeu ele, na falta de uma palavra melhor.
Pamela virou-se novamente para o homem, ainda oferecendo-lhe a comida. Ele relutava antes de abrir a boca e morder a carne.
— Não é cansativo? Quero dizer, ele parece um gato arisco para comer — Ítalo observou.
Pamela deu de ombros.
— Nada diferente de dar comida a uma criança.
“Mas ele não é uma criança”.
— Você fala como se fosse acostumada.
— Tive uma irmã mais nova, não lembra? — Ela retrucou.
Ítalo olhou para o homem. Entendia o que Pamela estava fazendo. Era praticamente o que ela havia feito cm Dayse e com aquele ladrão.
— Tyler diz que devia parar com isso, afinal esse cara dá muito trabalho — Ítalo comentou, engolindo em seco quando percebeu o olhar do homem sobre ele.
Pamela semicerrou os olhos.
— Aquele imbecil diz muitas besteiras.
Ítalo virou a cabeça de lado.
— Verdade, mas também, diz muitas outras coisas.
— Nada que preste.
Aquilo fez Ítalo rir.
— Fala como o Marcelo.
Pamela bufou. Era de alguma forma engraçado ver aquela bela mulher agindo de forma tão imatura.
Ela o fitou. Ítalo não conseguia ver seu olhar devido a pouca luminosidade.
— E você, o que acha?
— Não sei… eu… acho que é muito perigoso te deixar sozinha com ele.
Não conseguia ver direito, mas podia dizer que ela estava sorrindo.
— Por isso veio, vai me proteger? — Ela juntou as mãos e as pôs ao lado da bochecha, inclinando a cabeça
Ítalo corou, agradecendo por ela não poder vê-lo.
— Como se isso fosse possível — ouviu uma voz delicada, porém fria, falar.
Ele virou na direção de onde a escutara, vendo apenas a pequena e quieta Daisy.
— Querida, isso foi rude — Pamela comentou, confirmando que fora a garota quem dissera aquilo, para o espanto de Ítalo.
— Não, eu… não me importo — ele disse, meio desconcertado
Sentia uma frieza no corpo, que não era resultado do implacável vento frio da noite. Ele engoliu seco, um arrepio percorreu sua espinha. Parecia que ele tinha encostado naquela adaga novamente, mas não. Aquilo era uma reação fisiológica natural de seu corpo as palavras ditas pela pequena garota. Era ele, instintivamente reconhecendo a verdade que aquilo representava. Era ele reconhecendo o quão fraco era. Fraco ao ponto de até uma coisa pequena como aquela chamá-lo assim.
— Então meninas, vamos andando? — Tyler disse para eles, como se incluísse Ítalo no “meninas”.
Ele se aproximou do homem, desatando o nó das pernas para que ele pudesse andar.
Pamela se levantou.
— Ah, lá vamos nós de novo — disse desanimada.
Daisy, como sempre, a seguiu. Mas não sem antes olhar para Ítalo.
Por um momento ele pensou que ela fosse dizer algo, mas a garota se moveu, afastando-se dele.
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