Capítulo 34 – Um mundo envolto em sombras.
Zaya acordou com as vozes dos cultivadores que se arrastavam pelas vielas em direção os campos de criação. “Pobres almas miseráveis”, pensou ela. Cultivadores não tinham permissão para sair da vila livremente. Viam o sol apenas quando iam aos campos. Sua única rotina após acordar era ir até lá, e trabalhar entre os cactos sobre o olhar atento dos guardas, e voltar para comer e dormir e repetir tudo no dia seguinte. Apenas os hóspedes abençoados com a confiança do anfitrião tinham permissão para sair e explorar o exterior. Hóspedes como Zaya.
Aaliyah descansava ao seu lado. Podia sentir sua respiração calma.
Zaya se levantou deixando sua irmã, e o conforto da cama de pedra lisa para trás. Ela esticou as costas. A dureza da cama era amenizada pela concha de retalhos que a cobria. Fora costurada com o passar dos anos usando diferentes tecidos que ela encontrara em suas explorações. Em nada se comparava a cama feita de gatos do deserto que seu pai fizera. Ainda se lembrava de seu cheiro e calor. Fora tomada dela quando seus pais partiram em exílio.
Lembrava-se claramente daquele dia. Era a sua décima primeira tempestade quando ocorreu, e vira mais oito desde então. Não tinha como esquecer de qualquer dia passado ao lado de seu pai, ainda mais o último.
Apesar de ser um estrangeiro, ou talvez por isso, seu pai fora um homem importante para a aldeia no passado, nos primeiros anos que se sucederam após Baaz se tornar o anfitrião. Ele fora um coletor assim como Zaya. Os coletores mais antigos ainda falavam de sua força e destreza, mesmo após ele ter sido banido. Um estrangeiro virando o principal dos coletores. Um grande feito, mas não o maior pelo qual seu pai se orgulhava. A mãe de Zaya, sim, era dita por ele como sendo “sua maior conquista, e a maior maravilha que ele já vira”, mesmo tendo visto tantas outras.
Um mar tão azul como o céu acima, uma terra pintada de verde para onde quer que olhe, onde a água era tão comum como a areia no deserto. Ele afirmara ter visto tudo isso, todas essas maravilhas, e prometera. Prometera que iria levá-la com ele para olhar todos esses mundos com seus próprios olhos. Prometera levá-la até o porto de Sarepta, onde o mundo azul estava, para viajarem até as terras verdes.
Mas ele partira exilado em meio a uma terrível tempestade de areia, e nunca mais retornara. Zaya lembrava de sentir suas sombras – seu pai e sua mãe – se afastando do portão até desaparecerem. Baaz os havia expulsado. Fora o certo. Eles cometeram um crime contra a aldeia e foram punidos, como o pai de Luqa também fora. Assim era aquele mundo de areia em que viviam.
Zaya se moveu pela casa com cuidado para não acordar a sua irmã. Estava escuro. Tochas eram usadas apenas nas vielas e na casa do Anfitrião e dos residentes. As casas dos hóspedes, tanto cultivadores, quanto coletores, ficavam em completa escuridão dia e noite. Ela tateou a dispensa em busca de sal e pão seco. Suas mãos bateram contra algumas vasilhas de barro, o que a fez estalar a língua pelo barulho causado.
— Por favor Zy, pare antes que quebre alguma coisa — Ouviu uma voz sonolenta dizer atrás de si.
A silhueta de Aaliyah surgiu na escuridão, andando com destreza no escuro. Ela tinha uma excelente visão noturna, como todos os outros que viviam permanentemente na vila sem ir para o exterior. Zaya não desfrutava dessa capacidade. Seus olhos demoravam para se acostumar a escuridão devido a quantidade de tempo de exposição a luz do sol, e nem de longe conseguia ver tão bem como Aaliyah, mas ela não reclamava. Esse era um pequeno preço a pagar pela liberdade de ir ao mundo exterior.
Este conteúdo está disponível no Illusia. Se estiver lendo em outro lugar, acesse https://illusia.com.br/ para uma melhor qualidade e maior velocidade.
— Fala como se fosse acontecer — Zaya protestou.
— É certeza de que ia — Aaliyah afirmou em tom confiante.
Aaliyah gesticulou para Zaya deixá-la preparar o desjejum e fosse se sentar. Zaya o fez e observou a sua irmã, ou a silhueta dela, se mover pela dispensa. A garota achou rapidamente o pão e a carne de cacto e os pôs na mesa, em frente a Zaya. Aaliyah pôs então uma jarra no centro e dois copos, servindo a sua irmã o conteúdo da jarra em um deles.
Água, doce água, Zaya nunca se cansava de seu gosto.
Aaliyah serviu-se e então se sentou sobre os joelhos do outro lado da mesa. Zaya olhou para sua irmã. Mesmo seus olhos se acostumando ao escuro, Aaliyah não era mais do que uma vulto envolto em sobras.
— Pode fazer as preces? — O vulto perguntou.
Zaya assentiu fechando os olhos, confiando de que Aaliyah fazia o mesmo.
— Oh grandioso Assh´hur, guia dos céus e expiador dos homens. Alimentai-nos com vossa graça, dai-nos o sustento de sua generosidade. Que o pão e a água dado por ti nos mantenham firmes por mais um dia, assim como a nossa carne manterá firme as bestas dos céus acima e da terra abaixo quando perecermos. Agradecemos a ti rei dos exércitos do céu.
Elas abriram os olhos e começaram a comer.
Quando terminaram Zaya vestiu sua túnica, pegou um vaso e caminhou até a fonte. Ela caminhou pela viela principal da aldeia. Cabeças a adornavam em ambos os lados, tornando o caminho pútrido. Algumas delas eram familiares a Zaya, ou eram antes da carne apodrecer.
Este conteúdo está disponível no Illusia. Se estiver lendo em outro lugar, acesse https://illusia.com.br/ para uma melhor qualidade e maior velocidade.
Após Luqa e seu pai Behnam morrerem, seus parentes e protegidos tiveram o mesmo destino, e o anfitrião ordenou que suas cabeças ficassem a mostra para todos verem. Residentes, hóspedes, coletores e cultivadores, um ao lado do outro, unidos como nunca foram em vida. Residentes, hóspedes, coletores e cultivadores, um ao lado do outro, unidos como nunca foram em vida.
Zaya passou pelo pátio onde ocorrera as execuções. O chão ainda estava manchado pelo vermelho carmesim daquele dia. Ela estava presente no momento em que homens, mulheres e crianças foram arrastados de suas casas para ter suas cabeças separadas dos corpos. Zaya se deteve ao ver uma cabeça familiar. A carne do rosto começara a se soltar e os olhos escorreram de seu crânio, mas podia dizer que era Touma.
Choro, gritos, pedidos de súplicas, essa fora a última visão que ela teve de seus companheiros antes dos guardas de Baaz os empalarem com suas lanças. Apenas ela fora poupada, afinal buscadores eram importantes.
Também fora por isso que não a mandaram para o exílio junto de seus pais.
— Acho que não vou mais ouvir as suas histórias absurdas — Ela falou para o crânio, e continuou a andar em direção a fonte.
Guardas do anfitrião vigiavam a água. Era permitido a cada hóspede encher um vaso por dia, dois no caso dos residentes. Qualquer um que excedesse isso receberia uma punição severa.
Mesmo sendo cedo, o lugar já estava cheio de pessoas, esperando em uma fila para pegar a sua parte diária. Zaya entrou na fila e esperou. Detestava esperar, mesmo que fosse por água. Sua mente divagou pela demora. “Seria ótimo se não tivesse de tanto esforço para pegar água. Imagine se ela chegasse sozinha até a sua casa”, ela pensou.
De acordo com seu pai, água era bem abundante em sua terra natal e eles a bebiam o tempo todo. Na realidade, o mais absurdo das histórias de seu pai sobre aquele grande mundo de água era o fato de que não podiam beber a água. Isso a deixava confusa. Como podia haver tanta água e ela não poder ser bebida? Parecia uma zombaria feita por Eresh para punir os homens. Ela se perguntava se um dia provaria dessa água.
Não havia conversas, todos mantinham um silêncio inquietante, enquanto mantinham as cabeças baixas. A espera a cansou. Zaya suspirou fundo, espiando a fila, vendo quantas pessoas estavam a frete. Ficou frustrada com suas conclusões. Ela então fechou os olhos para se distrair, sentiu-os queimar e arder e então formas humanas surgiram na escuridão.
“Buscadores”, assim chamavam pessoas como Zaya, que conseguiam ver as “sombras”.
Este conteúdo está disponível no Illusia. Se estiver lendo em outro lugar, acesse https://illusia.com.br/ para uma melhor qualidade e maior velocidade.
Via a fila a sua frente, uma linha contínua que lentamente diminuía, e atrás, uma fila maior se formava. Pareciam pairar na escuridão como espectros. Podia vê-los, ouvi-los, senti-los. Podia dizer suas emoções pela cor e as sensações que lhe passavam.
A maioria das sombras era cinzenta, e traziam-lhe uma sensação inquietante. Era medo, apreensão, Zaya percebeu, e sabia o motivo.
O expurgo, as execuções, as cabeças. Os mais velhos diziam que não ocorria algo assim desde que Baaz virara anfitrião. Na época Behnam, o pai de Luqa, fora um dos mandantes do expurgo. Ele matara os homens e exilara mulheres e crianças. Agora a cabeça dele enfeitava uma estaca na viela principal da aldeia ao lado de velhos, crianças, mulheres e de seu próprio filho.
Zaya avançava, passo a passo. Mesmo de olhos fechados, ela sabia quando a fila se movia graças as suas capacidades de buscadora. Existiam outros como ela, com capacidades diferentes. Alguns tinham força e velocidade além do normal desde a infância, sendo chamados de valentes por conta de suas proezas físicas. Outros podiam sentir a água por perto, podendo localizar os lugares em que havia fontes. Esses eram considerados por todos quase como divindades. Infelizmente, o último capaz disso morrera anos antes de Zaya nascer.
Ela não sabia muito sobre essas capacidades – quase ninguém sabia na realidade. Era dito pelos anciões que eram bençãos concedidas por Assh´hur. Muitos abençoados por essas capacidades criam no mesmo. Se fosse o caso, Zaya se perguntava se aquilo que Saadi fizera também era uma dessas capacidades.
“Não”, disse consigo mesmo, “aquilo não fora uma benção de Assh´hur, foi um truque de Eresh”.
A fila se moveu.
Zaya suou frio, seus ombros tremeram, seus pés fraquejaram. Uma sensação angustiante tomou conta de si quando um terrível espectro de um profundo vermelho, que parecia envolto com um manto de violência apareceu em meio as sombras, que se afastavam dele.
Ela abriu os olhos fitando a direção em que se encontrava. Teve de controlar alguns espasmos quando viu Burak em pé atrás dela.
— Saia da frente, Hóspede — ordenou ele.
Este conteúdo está disponível no Illusia. Se estiver lendo em outro lugar, acesse https://illusia.com.br/ para uma melhor qualidade e maior velocidade.
Trajava uma couraça feita de bronze, valiosa demais para se usar a esmo. Muito provavelmente era para ostentar o seu valor perante o anfitrião.
Zaya baixou a cabeça e se afastou, deixando-o passar. Burak era um dos guardas pessoais de Baaz. Fora ele quem decepara a cabeça de Luqa.
Uma vintena de soldados o seguiu segurando vasos e odres, os enchendo na fonte.
Apôs o expurgo, Baaz ordenou que fossem recolhidos um grande número de recursos para uma expedição ao norte. Levariam dezenas de soldados e hóspedes para carregarem os mantimentos. O próprio Saadi a comandaria, e Zaya iria com eles. Ela precisava ir, afinal… era uma buscadora.
“Pegar pergaminhos, que estupidez”, Zaya pensou. Para ela, rabiscos em pergaminhos tinham tanto valor quanto folhas secas das árvores do deserto com que se limpava. Não entendia bem por que Saadi os queria tanto, e nem porque Baaz lhe dera permissão e tantos recursos, apenas se preocupava em voltar viva e ver sua irmã de novo.
Os soldados saíram, e a fila se formou novamente. Zaya achava que tinha sido empurrada para mais longe em meio a breve confusão consequente a saída dos soldados.
Ela esperou até sua vez e enfiou seu jarro na água.
“Norte, hum? É mais perto de Sarepta. Talvez eu possa ver o mar… talvez de relance.”
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.