Capítulo 35 - Falem mais alto ou se calem.
Ítalo acordou com a voz de Marcelo avisando que o sol estava prestes a se pôr. Ele se levantou, batendo em suas roupas para tirar o pó dela e cuspindo a areia que entrara em sua boca enquanto dormia. Os outros faziam o mesmo. Mesmo se refugiando entre os corredores daquela imensa estrutura geológica, eles ainda eram acertados pelo vento e pela areia que ele soprava. Parecia estar ficando mais forte a cada de dia.
Sua cabeça estava turva. Tinha tido sonhos estranhos, quase alucinógenos, embora mal se lembrasse deles. Pareciam fleches em sua memória.
— Andem logo, já vi porcos indo pro abate com mais coragem que vocês — Marcelo disse tossindo, antes de inclinar para trás e lançar uma branca secreção viscosa no chão.
— Meu tio morreu disso aí — comentou Tyler, sorridente.
Marcelo bufou antes de se afastar. Ele tinha de preparar a refeição antes da partida.
— Bem, hora de andar.
Ítalo estirou a coluna, sentindo – e ouvindo – os ossos da coluna estalarem.
— Tão novo e já está assim — Pamela observou. Ela tinha um sorriso afável nos lábios.
Ítalo sorriu em resposta.
— Talvez eu precise de uma massagem, dormir assim tá acabando com as minhas costas.
— Dez mil dólares e posso te dar uma.
— Não acho que isso tenha valor aqui — ítalo observou.
Pamela revirou os olhos.
— Esqueci que humor não é seu ponto forte — Ela pegou um vaso de sua bolsa improvisada, fazendo uma cara confusa.
— O que foi? — Ítalo perguntou.
— Está vazio.
— Pode pegar do meu — Ítalo enfiou a mão em sua trouxa, sentindo um leve espasmo ao tocar a adaga sem querer, e tirou um vaso que deveria ter cerca de vinte centímetros de tamanho.
A argila, ou o que quer que fosse aquele material, era leve, tornando fácil de carregá-lo. Mas naquele momento estava leve demais.
Ítalo franziu o cenho a sentir seu peso, e o entregou a Pamela.
— Não tem muito — Ela observou apôs destampá-lo.
— Pode beber — falou Ítalo.
— Tem certeza?
Ele confirmou com a cabeça. Preferia que outra pessoa bebesse, se sentiria estranho ao beber enquanto via outra pessoa com sede.
Pamela bebeu e deu um pouco a Daisy. Ítalo olhou para a pequena garota, mas afastou os olhos quando eles se encontraram com os dela. Sentia-se estranho perto dela apôs aquela noite. A garota devolveu o vaso, agora mais leve, para Ítalo. Ainda tinha água, mas não duraria até o próximo dia.
Ítalo foi até Tyler, que checava os nós que prendiam o homem gordo. Parou a poucos metros. Mesmo estando atado, Ítalo não conseguia se manter calmo perto dele. O homem olhava com um olhar vazio para onde o deserto se estendia. Mesmo quando adentravam as rochas ele sempre procurava olhar para as areias. Ítalo se perguntava o porquê disso. Tentou prestar atenção em algo naquele deserto, querendo saber o aquele homem tanto olhava, mas tudo o que via era o brilho do sol refletido nas dunas e nuvens de areia sendo levantadas ao longe. Estavam cada vez mais comuns.
— Ei — Ítalo chamou.
— Que foi? — Tyler respondeu, enquanto apertava o nó que prendiam os braços do homem. Provavelmente doía, embora não houvesse reação por parte dele.
— Quanto você ainda tem de água?
— Meia jarra.
Ítalo estalou a língua.
— A da Pamela acabou, e a minha tá quase no fim também.
Tyler suspirou, apertou o nó nas pernas do homem e caminhou em direção a Marcelo, que ainda tentava fazer algum fogo. Momentos depois ele mandou que Ítalo recolhesse todos os vasos e os pusesse em duas trouxas. Quando Ítalo o fez, Tyler pegou uma e disse:
— Vamos — falou e partiu sem esperar resposta de Ítalo.
Parecia convencido de que seria obedecido, e tinha razão. O jovem, que aparentava ser apenas alguns anos mais velho que Ítalo, caminhou confiante a frente de Ítalo o tempo todo, como se soubesse para onde ia. Também não falou muita coisa, a semelhança daquela noite. Ele apenas continuou andando a passos largos até o seu objetivo, como se soubesse exatamente onde estava.
— Água — Tyler gritou enfim.
Ítalo se apressou em alcançá-lo.
Ele para no final de uma longa passagem estreita entre as rochas, que descia por algumas dezenas de metros e se abria em um espaço aberto. Existia um lago no fundo, refletindo a pouca luz que ainda restava enquanto o sol terminava seu declínio do entardecer. Viu fendas que levavam a cavernas profundas dentro do rochedo. Seu lado que explorava rpgs online se perguntava até onde elas levariam. Ítalo lembrou-se daquela fonte que haviam descoberto na primeira noite, quando Ítalo, sendo levado por sua curiosidade, seguira Tyler noite a fora rumo ao desconhecido. No entanto aquela havia sido claramente feito por mãos humanas, tendo restos de estruturas como pilares e degraus de escadaria. A fonte diante de seus olhos parecia ser claramente obra da natureza.
Mas não fora para admirar os formatos da natureza ou compará-los aos produzidos pelo homem que Ítalo andara tanto. Fora para achar água. E lá estava ela. Calma, serena e limpa. Não completamente limpa, Ítalo sabia. Vários micróbios deviam estar flutuando e vivendo dentro dela. Uma parte sua, a parte que ainda se lembrava do que era ser civilizado, dizia que era melhor ferver a água antes do consumo. Outra parte, a que sentia sede, desejava enfiar a cabeça no lago e engolir tudo o que conseguisse. Podia ouvir claramente uma repreensão de seus pais se o vissem fazer aquilo. Ele, imparcial como sempre, rejeitou a ambas, destampou os potes de barro que levava, mergulhou-os no lago e os encheu. Tyler fez o mesmo ao seu lado, com a diferença de beber metade de cada vaso que enchia.
Tyler chamara Ítalo e deixara as garotas, e Marcelo, junto ao homem gordo. Marcelo resmungara, como sempre, mas não se opôs completamente a ideia. Ítalo sentia uma ansiedade crescente ao pensar neles. Marcelo tinha melhorado do braço torcido, mas ainda não estava completamente bem. Se ladrões viessem novamente, ou o homem gordo se soltasse, as garotas ficariam indefesas.
“Vai me proteger?”
“Como se isso fosse possível.”
As vozes de Pamela e Daisy ecoaram em sua cabeça.
Seus lábios se secaram, mas não era por sede.
“Claro que não”, pensou, “Como eu poderia? Sempre fui o mais fraco”.
Sim, ele era fraco, sempre aceitara isso. Mas ouvir alguém dizer isso em voz alta doía.
Ítalo engoliu em seco e encheu o último vaso que carregava, colocando-o de volta na trouxa. Tyler fez o mesmo, com a diferença que ele bebia metade da água de um jarro para depois voltar a enchê-lo.
— Deus, como essa merda é boa — disse Tyler, satisfeito.
A principal diferença em comparação com aquela noite era de que Tyler estava mais falante. O completo oposto da postura taciturna e quase austera que apresentara daquela vez.
— E aquele velho calvo ainda tem coragem de dizer que algo bom assim tem gosto de mijo — falou ele, rindo.
— É provável que animais mojem mesmo na água — Ítalo observou.
— É o melhor mijo que já provei.
Ítalo revirou os para a declaração.
Não vai beber? — questionou Tyler, olhando para Ítalo.
Ítalo deu de ombros e negou com a cabeça.
— Não, valeu, tô de boa.
Tyler bufou balançando vagamente a cabeça.
— Cara, a gente tá na porra de um deserto. Água é ouro aqui, e você tá rejeitando uma mina cheia — Ele apontou para o lago com uma mão.
Ítalo se sentiu tentado, mas resistiu a essa vontade.
— Já disse que não quero.
Tyler deu de ombros.
— Você quem sabe — falou se levantando, olhando ao seu redor antes de se virar e afastar-se com um andar relaxado.
Eles já haviam começado seu caminho volta, tendo subido até a entrada do corredor quando Ítalo ouviu Tyler sussurrar.
— Se encosta no canto e fica quieto — disse ele se agachando contra a parede do corredor, olhando fixamente para o lago.
Ítalo franziu as sobrancelhas para ele. Seria Tyler mesmo doido? As vezes pensava que sim, outras tinha completa certeza. Tyler acenou energicamente a mão, como se mandasse que Ítalo fizesse o que fora pedido. Ítalo obedeceu, se pondo rente a parede rochosa e áspera do corredor.
Apôs algum tempo agachado, ainda carregando os vasos de água que pesavam e suas costas, uma irritação incomum a ele lhe sobreveio.
— O que estamos fazendo? — questionou.
Tyler chiou, querendo como que querendo dizer que Ítalo se calasse
— O que estamos fazendo — repetiu Ítalo, dessa vez sussurrando.
Tyler apontou para onde duas pequenas figuras surgiram de uma fenda nas rochas. Os dois usavam mantos sujos e rasgados que cobriam o corpo, dos pés ao pescoço. Uma garota que parecia ter a metade do tamanho de Daisy, e um adolescente que parecia ter a idade de Ítalo. Ele as observou caminhar de forma cautelosa até o lago.
— Então há mesmo gente aqui… — Tyler sussurrou.
“Que?”
— O que você quer dizer?
Tyler ignorou a pergunta, continuando a olhar para os recém-chegados.
Os dois conversavam, mas Ítalo estava longe demais para saber o que estavam falando. Eles tiraram algo que parecia uma bolsa velha e a puseram na água, voltando com passos apressados para a gruta logo depois.
Tyler, que ainda estava agachado junto de Ítalo, se levantou, sussurrando algo para si mesmo.
— Vamos — Ele disse andando pelo corredor, sua voz fria e a postura incorrigível.
— Que? Como assim, você não viu eles? Quer dizer, a gente só vai deixar por isso mesmo? — Ítalo balbuciou confuso.
— Depois cuidamos disso. Por agora vamos levar essa água pro acampamento — Tyler respondeu de forma calma enquanto se distanciava.
Ítalo observo-o partir e então olhou para a gruta onde os desconhecidos entraram. Por um momento ficou tentado a segui-los e ver até onde iram. Por que não? Afinal se eles estavam ali, talvez houvesse mais pessoas. Isso podia ser tanto uma coisa boa, quanto uma ruim. Por que não verificar? Estaria sendo útil ao grupo. Mas então ele virou e seguiu Tyler, como tinha sido orientado.
A caminhada de volta foi silenciosa, com Tyler ignorando suas perguntas e recusando a explicar mais sobre sua decisão, fazendo com que Ítalo desistisse de obter alguma resposta. Era noite cerrada quando chegaram ao acampamento. O brilho azul da lua crescente já podia ser visto bem alto no céu. Uma fraca fogueira crepitava no lugar onde algumas pessoas podiam ser vistas.
Marcelo estava em um lado, Pamela do outro, a fogueira entre os dois. Carne de um animal parecido com lebre assava em cima do fogo. Marcelo o tinha pegado um dia antes. O homem gordo estava mais afastado, como sempre. O que surpreendeu ítalo foi ver Daisy ao seu lado. Todos olharam ansiosamente para eles.
— Chegaram na hora certa — Marcelo proclamou —, a carne já vai terminar de assar.
— Vamos comer rápido, estamos de partida daqui — Tyler disse, olhando para Pamela.
— A gente já sabe.
— Não, vocês vão ficar, eu e ela é que vamos — Tyler disse com naturalidade, sentando-se.
Um olhar de confusão apareceu no rosto de Marcelo, assim como no de todos, incluindo Ítalo.
— Pera, pera, explica isso aí melhor — Pamela exigiu, olhando para Ítalo como se procurasse por respostas.
Infelizmente, ele também as queria.
Tyler bufou.
— Acontece que eu e o garoto aqui encontramos pessoas enquanto pegávamos água.
— Ladrões? — Marcelo perguntou cauteloso.
Tyler deu de ombros.
— Sei lá. Quero dar uma olhada neles pra ter certeza.
— E por que quer que eu vá? — Pamela questionou.
— Porque você já se mostrou bem amigável e persuasiva — Tyler olhou para Daisy. — Quero que seja assim com eles caso sejam algo além de um bando de ladrões.
— E se não forem? — Ítalo perguntou preocupado.
— Para isso eu estarei lá.
— Acho melhor discutirmos isso um pouco melhor antes de decidirmos o que fazer — Pamela argumentou.
— Não precisa, já decidi — Tyler respondeu de forma seca.
Todos se entreolharam, e alguns segundos de silêncio se seguiram.
— Espera, por que está decidindo isso tão rápido assim? Quem tu acha que é? — Marcelo berrou, apontando com o dedo para Tyler.
Tyler se ergueu.
— Se não quiser me ouvir, tape os ouvidos ou me faz calar a boca, se puder. Do contrário fique calado e escute. O que vai se? Por mim, tanto faz — Tyler declarou com uma voz gélida.
Sua face mal iluminada pela fogueira, sua postura firme, suas palavras… Ele parecia maior do que todos.
Ítalo pegou-se tremendo e observando a reação de Marcelo. O homem calvo abriu a boca, mas então cerrou-a e começou a mexer a carne sobre o fogo, em silêncio.
Tyler olhou para Pamela. Daisy tinha corrido para o lado dela.
— E então? — perguntou.
Pamela apenas acenou com a cabeça.
Tyler voltou a se sentar e esperou pela refeição. Ao final dela, quando já se preparavam para partir, Ítalo foi até ele.
— Não acha melhor eu ir também? Afinal, se essas pessoas forem perigosas, só vocês dois… — parou de falar quando Tyler lhe fitou. Sua expressão mudando de uma escultura greco-romana austera para um sorriso jocoso de algum bobo da corte medieval.
— E pra que eu iria querer outra pessoa para proteger? — respondeu-lhe ele. Sua postura havia mudado.
Ele sumiu na escuridão. Pamela se despediu de Daisy e então foi apôs ele. Ítalo os observou serem engolidos por aquele véu disforme da noite. E apenas naquele momento reparou em uma coisa. Como Tyler saberia aonde ir se eles não faziam ideia de para onde aqueles estranhos tinham ido?
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.