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    O quarto estava quente, abafado e mal iluminado. Não era grande, e se tornou menor com tantas pessoas reunidas dentro dele. Júlia estava sentada na cama junto a Letícia e Carmen. Os meninos estavam espalhados. Eduardo estava encostado na parede, de frente para a porta, com os braços cruzados. Parecia pensativo. Caio pegou a única cadeira do quarto. Ele a virou e se sentou, com os braços, e queixo, apoiados nas costas do assento. Parecia estar confortável naquela posição. Já Theo fora empurrado para o canto mais longe o possível de onde elas estavam.  

    — Não tem como você se afastar um pouco mais? — Carmen perguntou a Theo. Ela tampava o nariz com uma das mãos.  

    — Já estou no canto do quarto, só posso me afastar mais se eu sair — Theo protestou.  

    — Se puder fazer isso eu agradeceria — disse Letícia.  

    Theo a respondeu erguendo um silencioso e solitário dedo do meio.  

    O problema, é claro, era o cheiro de Theo. Dias e dias trabalhando no meio da terra adubada impregnaram um odor desagradável nele.  

    — Vamo lá, nem tá tão ruim assim — disse Caio, tentando defender o amigo.  

    Apesar de seu ânimo habitual, ele esfregava constantemente os olhos, revelando seu cansaço.  

    — É, dá pra aguentar, se você não tiver nariz — Letícia comentou com um inclinar de rosto.  

    — Tá bom gente, estou cansada, e minhas mãos não param de doer, vamos terminar logo isso, que tal? — disse Júlia, a voz mais lamentosa do que o pretendido.  

    Seu dia foi longo e cansativo, como quase todos eram, não estava com muita vontade de conversar. Ela nem sabia ao certo para o que aquelas reuniões serviriam afinal.  

    Theo dizia que era para repassar e discutir sobre qualquer informação importante. O que tanto podia significar muita coisa do que viam, e ouviam, como também quase nada. Eles relataram as conversas que tinham com os aldeões, nomes de lugares, pessoas, hábitos, qualquer coisa nova que descobrissem. No entanto tudo isso parecia igualmente inútil para Júlia, afinal havia apenas uma coisa que ela queria saber mais do que tudo e, no entanto, ninguém falara disso em nenhum momento naquela noite, ou em qualquer outra.  

    Júlia se perguntava onde estaria o deus azul que os tinha enviado para aquele lugar. Qual era a sua intenção afinal, enviando-os daquela forma sem saber de nada aquele mundo. Não podia deixar de pensar no quão estúpida era aquela ideia, afinal, nem tinham se formado na escola, o que ele esperava que fizessem?  

    — Beleza então, Edu, Caio, ouviram algo dos soldados sobre ataque de ursos mês passado? — Theo perguntou, passando uma mão sobre os olhos visivelmente exaustos.  

    Caio sacudiu a cabeça negativamente.  

    — Sério, nem dos moradores?  

    — Não me disseram nada, eles não falam muito com a gente, parece até que tem medo — Eduardo respondeu.  

    Theo estalou a língua com óbvia frustração.  

    — Pensei que ouviriam mais coisas já que entraram na guarda.  

    — Entramos semana passada, não é como se fossemos nos tornar amigos deles tão rápido — disse Eduardo.  

    Júlia ficou surpresa ao saber que Eduardo e Caio haviam sido chamados para a guarda. Ocorreu alguns dias depois do ataque dos ursos. Muitos lenhadores e guardas tinham morrido, e o luto tinha se espalhado pelo vilarejo. No entanto, rumores se espalharam sobre Edu e Caio. Era dito entre os que presenciaram o ocorrido que a tragédia teria sido maior se não fosse por eles. De alguma forma, a que Caio tinha obviamente se gabado a todos com quem conversara nas últimas semanas, os dois conseguiram matar um dos ursos.  

    Isso impressionou o comandante da guarda, como também a Thierry, que sugeriu a ele que recrutasse os dois. Caio se animou com a ideia, porém Eduardo recusou a princípio, sendo convencido por Theo depois.  

    — E você Carmen, alguma novidade? — perguntou Theo.  

    — Não acho que vai ser tão útil assim, as costureiras falam bastante, mas a maior parte é só fofoca inútil. Além disso, eu não tenho ficado muito junto das outras. A chefe me chamou pra trabalhar com ela.  

    — Olha a minha gatinha se destacando — Letícia passou um braço por cima do ombro de Carmen, trazendo-a pra mais perto de si.  

    Carmen mostrou um pouco de incômodo, mas nada podia fazer contra a força superior de Letícia, que parecia ter aumentado nos últimos tempos.  

    — Mesmo assim, não ouviu nada de interessante? — Theo insistiu na pergunta.  

    Carmen se soltou do aperto de Letícia, pôs uma mão no queixo e ficou alguns segundos em silêncio, pensativa.  

    — Um tal de sir Alóis vem para cá, e todas estão animadas com isso.  

    — Ouvimos a respeito, ele é alguém importante — disse Caio.  

    Theo assentiu.  

    — De acordo com as conversas das outras meninas, ele é o senhor da aldeia. A senhora Marjorie tem reclamado que o prefeito está preocupado por conta do ataque de urso, e com os goblins.  

    A menção desse nome causou um arrepio na espinha de Júlia.  

    — Já sabemos disso também — Theo falou em um tom insatisfeito.  

    — Hum, então não sei mais o que dizer, trabalho costurando, não ouvindo fofoca — Carmen falou dando de ombros.  

    — Pensei que ouvir fofoca fosse algo natural para as garotas — Theo comentou, arrancando um bufo de desdém de Carmen.  

    Poderia ter evoluído para uma onda de xingamentos, porém a hora já estava avançada. E assim sendo eles encerraram a reunião daquela noite.  

    Ninguém parecia satisfeito, talvez fosse o desânimo de permanecer acordado até as… Júlia não sabia sequer dizer que horas eram, mas estava cansada.  

    Os meninos saíram do quarto e, tão silenciosos como conseguiam ser, retornaram ao seu próprio.  

    Eduardo foi até ela e se despediu com um beijo na testa, antes de passar pela porta. Sua atitude era estranha, distante. Júlia acreditava que algo o incomodava, mas não sabia bem como perguntar. Desconfiava que isso tinha relação com o dia em que ele lutou contra o urso. O próprio Eduardo não falava muito a respeito, sempre evitando o assunto quando questionado. Alguma hora falaria, no momento certo. Embora torcesse para que ele se animasse sozinho.  

    Ela se jogou contra a cama, ignorando os protestos de Carmen para que não ocupasse tanto espaço.  

    — É só me empurrar para o lado depois de eu dormir — Júlia disse, antes de o colchão a sugar para a escuridão pacífica e inebriante de sua mente, enquanto seu corpo relaxava e escorregava para a eternidade.  

    A voz de protesto de Carmen sumiu, e tudo que havia era o mais completo êxtase, até que sentisse o ponto de ruptura em que a mente se desvanecia e ela passava a ser outra coisa. Era ela, mas ao mesmo tempo não. Era outro alguém, em outro lugar, em um mundo diferente da terra, ou daquele em que estavam naquele momento. Um mundo só seu. O mundo dos sonhos.  

    Ela corria pelas ruas de calçamento de sua infância. O dia era nublado e cinzento. Seus pés e braços eram pequenos, e tudo, as casas, os postes, a própria rua se agigantou a sua volta. A sua frente seguia uma garotinha usando um vestido vermelho, que se destacava entre as ruas quase sem cor alguma.  

    Ela não sabia para onde estavam correndo, embora as ruas lhe fossem familiares, apenas corriam. Seu corpo não se cansava, seu peito não arfava, suas pequenas pernas não doíam. Corriam como se fosse a única coisa que soubesse fazer, como se tivesse nascido para fazer isso.  

    As pessoas se tornaram menos frequentes, elas corriam. Ruas se tornaram mais estreitas, elas corriam. Os prédios mais estranhos, elas corriam. Tinha algo errado, elas corriam. Como havia chegado ali? Elas corriam. Onde estava Eduardo e os outros? Júlia parou.  

    A garota que seguia à sua frente continuou correndo, entrando em um beco escuro e sumindo por entre as sombras.  

    Júlia olhou em volta. Seus braços e pernas mais longos do que em alguns momentos, seu corpo, exausto e dolorido. Não era mais uma criança, percebeu. Mas onde estava? Quem era aquela garota? Um súbito desespero a atingiu.  

    Para onde estavam indo?  

    Olhou para o beco em que a garota entrou. Ele era estranho. Não era especialmente coberto, nem os prédios eram maiores do que os outros, mesmo assim, não parecia haver luz nele.  

    — Qual o problema, não vem? — Uma voz infantil perguntou do outro lado.  

    — Quem é você? — Júlia perguntou.  

    — Como assim, estivemos juntos esse tempo todo e não sabe que eu sou? Vem, me segue, vamos continuar brincando — A voz ecoou no beco. Uma névoa subiu pelo chão até os joelhos de Júlia.  

    — Para onde está me levando? — Júlia continuou a perguntar.  

    Algo como um baixo assobio ressoou em seus ouvidos. A criança ressurgiu.  

    Júlia a encarou confusa. Parecia exatamente com ela própria, ou com as fotos que ela tirara quando criança. Mas seus olhos eram bizarros. Longos, finos, a parte que devia ser branca era esverdeada, e uma negra pupila plana dividia o centro de cada um.  

    — No fim, você não está pronta ainda — A voz disse parecendo descontente. As pupilas se abrindo em forma de losango.  

    — Quem é você, o que quer? — Júlia perguntou em desespero. Sentia o suor correr pela sua pele.  

    “Aquilo não devia estar lá”, era o que seu corpo parecia dizer. A névoa estava na altura de sua cintura.  

    — Eu sou uma memória — O sussurro a atingiu, e a névoa a cobriu completamente.  

    Júlia caiu gritando em desespero até bater contra o chão frio. Ela se levantou atordoada no quarto escuro. Onde estava? Cadê aquilo? O que era?  

    — Júlia, o que foi? — Letícia perguntou, com uma voz sonolenta.  

    — É que eu… — Ela parou o que ia dizer. De repente sua cabeça se acalmou, e as lembranças do estranho sonho pareceram se evaporar de sua mente. Sequer se lembrava mais do que tinha visto.  

    — Você?  

    — Não, nada, foi só um sonho, eu acho. 

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