Índice de Capítulo

    O vento soprava forte, remexendo os campos à sua volta. Eduardo seguia o caminho feito entre as plantações. Caio caminhava ao seu lado, conversando com Carmen, que não parecia muito interessada no assunto. O próprio Eduardo não estava para falar a verdade. Caio era um cara animado, divertido e confiável, mas tinha o hábito de falar demais, e o humor de Eduardo não estava para conversas nos últimos dias, dando respostas breves a cada vez que um dos dois tentava falar com ele. 

    Suas manhãs na última semana foram assim. Uma vez que iam na mesma direção. Os três passaram a ir até o vilarejo juntos. 

    Sua cabeça coçava, provavelmente devido ao calor advindo do uso do capacete de ferro da guarnição. Tanto ele quanto Caio tinham recebido um conjunto de armadura de couro, peitoral de ferro e um capacete usados pelos membros da guarda. Eduardo não havia se acostumado com eles ainda, e duvidava que o faria tão cedo. Theo rira feito o desgraçado que era aos ver completamente vestidos pela primeira vez. Carmen não mostrou muita reação. Letícia foi até Caio e bateu em seu capacete, dizendo algo sobre a cabeça dele não precisar daquilo por ser mais dura. Júlia disse que ficaram bons neles, em clara troça a julgar pelo seu sorriso. Um belo sorriso. 

    Eduardo só podia aguentar aquilo. Não queria ingressar na guarda, mas como tudo desde que chegara aquele mundo, ele o fizera para ajudar o grupo. Não queria mais ter de passar por situações como aquela no moinho. 

    Eles chegaram até a entrada do vilarejo, onde foram recebidos com certa estranheza pelos guardas que estavam de serviço. Eles os olharam como se vissem um bode de duas cabeças. O que poderia existir naquele mundo pelo que Eduardo sabia. Foi assim todo dia nos últimos sete dias, uma vez que as duplas se alternavam. Eduardo não sabia bem como reagir àquilo. Talvez devesse cumprimentá-los acenando com a cabeça, afinal agora era um deles, embora não se sentisse. 

    Ele o fez, o que só deixou a situação mais estranha. Caio ergueu a mão até a cabeça em saudação, aumentando em Eduardo a sensação de constrangimento. Os guardas apenas mantiveram o olhar enquanto eles passavam, sem dizer nada. 

    Eles passaram, deixando o portão, e o momento desconcertante para trás. 

    Moradores vagavam de um lado para o outro ocupados com seus afazeres, a lembrança do luto estampado em seus rostos. Ele reconheceu alguns. Estavam no enterro. Eles paravam para olhá-los passar, ou assim Eduardo se sentia. A armadura fazia-o sentir como se estivesse se destacando. 

    “É o matador de ursos”, pareciam dizer. Foi como tinha sido chamado por aquele soldado de olhos verdes. Parecia se lembrar dele com frequência, o que só aumentava o incômodo de Eduardo ao pensar naquele dia. 

    Cerca de vinte homens morreram no ataque de ursos. Todos eles tinham famílias que choraram enquanto os corpos eram enterrados em uma cerimônia de enterro que o prefeito presidiu juntamente com o sacerdote da vila. Eduardo costumava detestar esse tipo de evento. Fazia-o ter pensamentos que achava serem desnecessários. Pensamentos sobre morte, a vida e o que vinha após. 

    Ele preferia viver a vida do que passá-la se preocupando com seu fim. Isso fora antes, quando pensava que a morte estava longe, e a vida estava toda à sua frente. Agora sabia o que vinha após. 

    Eduardo perguntava a si mesmo se os homens que morreram teriam outra chance como a que ele teve. Decidiu afastar esse pensamento antes que ele o levasse a respostas que não desejava. Não precisava delas. 

    Eles se aproximaram do forte no centro do vilarejo. Eduardo e Caio se despediram de Carmen e adentraram os portões da muralha de pedra que cercava a torre principal. Theo o chamara de torre de menagem ou algo assim. Tinha em torno de vinte metros de altura, e poderia facilmente ocupar um quarteirão inteiro, ou perto disso, em seu antigo bairro. Muito maior do que qualquer casa que Eduardo já tenha entrado antes. 

    Havia um amplo espaço entre o portão e a torre propriamente dita, o qual era usado para treinamento e o trato dos animais, contendo um estábulo, onde homens grandes e mal-encarados cuidavam dos cavalos. A uma certa distância podia-se ver um grupo de besteiros praticando tiro, e outro grupo realizando o que deveria ser o treinamento com espada, a julgar pelo som. 

    — Cara, isso é foda. Nunca pensei que veria espadas de verdade na minha vida. Me faz lembrar de Final Fantasy — Caio disse, alegre e com um brilho nos olhos, enquanto observava os soldados. Parecia uma criança em um parque de diversões. 

    — As espadas daqui não tem dois metros de comprimento e os guardas não são um bando de emos adolescentes — apontou Eduardo. 

    — Mesmo assim é foda. 

    Eduardo não compartilhava tal animação. Ele sentia o olhar dos guardas. Não confiavam neles, ele percebia, e entendia o porquê. Eles eram completos estranhos e ninguém confiava em um estranho. Exceto Thierry. O homem parecia tratá-los como se fossem parte de sua família. Deixara-os viver em sua casa, e até lhes arranjou empregos. Basicamente agia como o bom samaritano, algo que Eduardo estranhava, embora não questionasse diretamente as ações do homem por motivos óbvios.  

    — Vejo que finalmente chegaram — Uma voz lhes chamou atenção. 

    Um homem robusto de cabelos grisalhos vestindo uma armadura desgastada, com uma capa marrom presa nas costas, estava parado na entrada da torre os encarando. 

    Era o capitão da guarda. 

    Eduardo pensou em cumprimentá-lo, mas antes que terminasse de abrir a boca foi interrompido de forma ríspida. 

    — O que fazem aí parados? Movam-se seus pedaços de estrume seco, façam seu trabalho — Ele apontou para onde homens, sem armaduras, descarregavam grandes e pesadas sacas, do que Eduardo pensou ser grãos, de uma dúzia de carroças estacionadas a certa distância. — E façam rápido ou vou arrancar suas línguas e servi-las as vacas. 

    Eduardo suspirou e Caio apertou seu rosto em uma carranca enquanto seguiam para obedecer ao homem. Todo dia eles eram mandados a fazer algo diferente. Limpar o chão, escovar os cavalos, lustrar os sapatos. Pareceria a Eduardo como um ritual de iniciação, se não percebesse o olhar desconfiado e pouco amistoso de quase todos ao seu redor. O mais hostil deles sendo o do próprio capitão. 

    Aqueles olhares não eram novidade para Eduardo, mas o faziam questionar o porquê o capitão aceitaria dois garotos em quem não confia. Após o ataque dos ursos carmim, Thierry comentou sobre a aparente perícia de Eduardo e de Caio com armas, e o capitão engolira, pelo menos, tudo aquilo. Ou fora isso que Eduardo pensou. Na realidade, não sabia se chegaria em algum lugar tentando descobrir a natureza do interesse do capitão. Poderia perguntar a Theo depois. 

    Eles se aproximaram de uma das dezenas de carroças que se amontoavam dentro do pequeno pátio. Os homens trabalhavam nelas de forma quase incansável. 

    — Olá — Ele saudou ao perceber que eles notaram a sua chegada. 

    — O que quer? Vamos fale logo — exigiu o homem em cima da carroça. 

    — O capitão nos mandou ajudá-los 

    O homem grunhiu e então assentiu. 

    — Aqui, pegue — Ele soltou uma saca nos braços de Eduardo, que tremeram com o peso. 

    Caio não reclamou, mas era possível ver seu rosto mudar de cor, tornando-se cada vez mais vermelho. Eles levaram ambas as sacas para dentro da torre. 

    O lugar era espaçoso, bem iluminado e consideravelmente limpo, para a surpresa de Eduardo. Sempre imaginara castelos como sendo sombrios, apertados, e cavernosos, como os dos filmes antigos. No entanto, o prefeito da vila, que também morava ali, não parecia ser do tipo que aguentaria viver em um buraco cheio de teias de aranha, respirando o mofo que crescia nas paredes. Por isso o castelo era limpo regularmente por uma equipe de criados, muito embora Eduardo e Caio venham ajudando nisso. 

    Eles carregaram as sacas até os largos depósitos dentro do forte. Eduardo se impressionava com a quantidade de grãos que se podia armazenar em um só lugar cada vez que entrava neles.  

    Caio estalou as costas após soltar a saca. 

    — O que foi? Não vai me dizer que já cansou? — provocou-o Eduardo. 

    — Que nada, tô só me esticando! — Caio respondeu. Sua postura mais caída do que antes de carregar o saco. 

    Eles voltaram até a carroça para continuar a trazer os sacos, quando alguns soldados se aproximaram. Sorrisos presunçosos brilhavam em seus rostos cobertos de pelos. 

    — Hora, vejo que são os dois matadores de urso — disse um, que segurava espadas em ambas as mãos. — O que estão fazendo carregando sacos de cevada desse jeito? Gente que nem vocês deveriam estar lutando no pátio conosco. 

    — O capitão nos deu ordens — respondeu Eduardo. 

    — O capitão dá muitas ordens — O homem riu. — Por quê não fazem uma pausa disso aí e vem treinar conosco? Podem nos mostrar como mataram aquele urso. 

    Ele estendeu uma das espadas que segurava para Eduardo e Caio. 

    Caio cutucou o braço de Eduardo. 

    — Ei Edu, vamo lá! 

    — Não sei se é boa ideia. 

    — Se estão preocupados com o capitão, ele saiu a pouco tempo para inspecionar alguns postos próximos ao rio. Não vai voltar por um tempo. E aí? — Ele voltou a perguntar com um sorriso. 

    Eduardo olhou para Caio que tinha sua animação estampada na cara, e então para carroça. Onde os homens ainda trabalhavam descarregando as sacas. 

    — Não precisa se preocupar com os trabalhadores, eles não dirão nada, certo? — O guarda olhou para o homem sentado na carroça, que respondeu bufando e revirando os olhos. 

    Eduardo então suspirou e com relutância respondeu. 

    — Se tu quer ir, beleza, vamo. 

    Pouco depois, Caio estava no meio de um círculo formado por duas dezenas de guardas, encarando o homem que os chamara para treinar. Ambos seguravam espadas sem gume e trajavam armaduras. 

    Eduardo estava junto aos outros que cercavam os dois. Caio parecia uma criança olhando para um brinquedo novo. 

    — Então, vamos começar? — O homem disse, avançando. 

    Caio pareceu atordoado com o ataque repentino, conseguindo apenas erguer a espada, que voou quando foi acertada pelo golpe. Eduardo viu um sorriso de satisfação na face do homem enquanto ele se preparava para dar o segundo golpe, o qual Caio desviou, cambaleando para trás. Um som de risadas se alastrou entre os guardas que assistiam a disputa. 

    — O que foi garoto? Foi assim que venceu o urso carmim? 

    “Não, ele estava longe, com uma besta, disparando dardo após dardo em cada parte vital que encontrava”. Fora assim que eles mataram o urso. Eduardo pode ter finalizado a criatura, mas Caio a debilitou o suficiente para que ele pudesse permanecer vivo até lá. 

    — Vamos lá, me mostra o que tem — O homem provocou, chamando Caio com uma das mãos. 

    Caio estalou a língua e avançou, balançando sua espada de forma desajeitada. Seu adversário apenas saiu do caminho dando um passo para o lado, deixando Caio passar por ele, chutando-o logo depois. Caio tropeçou e caiu no chão. 

    — Chama isso de ataque? Acho que no fim os rumores eram mentiras. O que deu na cabeça do capitão em chamá-los para cá? — Ele disse com um sorriso presunçoso. 

    Caio berrou e avançou novamente golpeando com a espada. O homem apenas parava os golpes com a sua própria lâmina de forma calma, enquanto caminhava para trás. 

    Caio continuava a avançar. Eduardo podia ver raiva impulsionando os seus ataques. Ele sempre fora esquentado, e não aguentava ser provocado. 

    — Toda vida é assim. 

    — É, mas pelo menos temos algo para rir. 

    Eduardo ouviu os guardas conversarem entre si, e logo entendeu do que se tratava. “No fim, sempre tem gente assim em todo lugar”, pensou, lembrando-se de Manon e Collet. 

    — Seu merda — Caio gritou, avançando. 

    O homem desviou novamente, dando um passou para o lado, e então atacou. Sua espada acertando a parte traseira do joelho de Caio. Pareceu ter doído, pois Caio soltou outro grito, mas dessa vez de dor. Ele caiu no chão abraçando a perna atingida. 

    — Acho que já está bom para ele — O homem disse. Havia um sorriso de satisfação em seu rosto. 

    Eduardo se moveu para ajudar Caio a se levantar e sair dali. Ele já começara a pensar o quão difícil seria fazer o trabalho sem ele. Além de ter de explicar isso ao capitão se ele os visse. 

    — Você, sua vez — o homem apontou para Eduardo, que apoiava Caio em um dos ombros. 

    — Na verdade, eu passo. 

    — Você “passa”, como assim? 

    — Eu não vou lutar contigo cara — Eduardo se virou, ajudando Caio a andar. 

    — Está com medo, vai fugir é? — gritou o homem enquanto eles se afastavam. 

    Chacotas e insultos eram lançados pelos guardas, que chamavam Eduardo de covarde. 

    — Vai lá Edu, quebra a cara dele como tu fez com os goblins — disse Caio, ou ao menos a raiva que ele sentia, quando eles se aproximaram da carroça. 

    — Cara, eu não vou fazer iss… — Eduardo parou ao perceber um alvoroço irregular se formando próximo ao portão. Soldados e criados começaram a se reunir lá. 

    — O que é aquilo? — Eduardo perguntou ao homem que permanecera na carroça. 

    — Não sei, vá ver você — respondeu ele de forma ríspida. 

    — Vamo lá — Caio falou. 

    — Não vou te carregar até lá — protestou Eduardo. 

    Caio estalou a língua. 

    — Então pelo menos olha o que é e me diz, faz esse favor. 

    — Tá, mas você me deve duas — respondeu Eduardo, se afastando. 

    Ele se aproximou do portão onde a aglomeração se formou, se enfiando entre o resto dos guardas e serviçais, e então viu o que os todos olhavam. 

    Uma comitiva de pelo menos uma dezena de cavaleiros surgiu. Todos trajados de blusas acolchoadas cobertas por coletes de malha. Seguidos por um homem montado em um grande cavalo castanho entrou orgulhosamente pelo portão. Vestia uma curiosa camisa vermelha que parecia apertada em seu corpo volumoso. Havia uma estampa de machados negros cruzados no peito, com uma coroa de cabeça para baixo sobre eles. 

    De algum lugar que Eduardo não pode ver, o prefeito da cidade surgira para o saudar. 

    — Meu senhor, Sir Belanger, é uma honra tê-lo por aqui, embora tenha que me desculpar pela lamentável recepção. Pensamos que só chegaria em algumas semanas. 

    — Achei por bem vir mais cedo — o homem disse, desmontando e entregando o seu cavalo a um servo. — Soubemos das novas, foi uma lástima. 

    Seus homens fizeram o mesmo. 

    — De fato, um ataque como aquele fora devastador. 

    — Garanta que as famílias dos homens que partiram sobrevivam ao inverno. Agora vamos, tenho assunto para tratar e lugares para ir — O homem chamado Belanger caminhou em direção à torre. 

    Pela formalidade que Donis falava com ele, Eduardo sabia que o homem não deveria ser pouco coisa. Além de ter sido chamado de “sir”, o que lhe deu uma ideia de quem seria. Estava prestes a retornar para Caio quando os viu. Aqueles olhos verdes e jocosos daquela noite em meio aos homens do cavaleiro. 

    Eles o encararam novamente, e o soldado loiro surgiu. 

    — Venha Lohan — gritou o cavaleiro. 

    — Sim, meu senhor Alóis — o soldado respondeu antes de acenar com a cabeça na direção de Eduardo e começar a andar. 

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota