Capítulo 41 - Cães e lobos.
Os braços de Eduardo tinham espasmos de dor devido ao esforço feito, quando ele pôs a última saca de grãos no depósito. Suor escorria por sua testa e seu corpo reclamava, e com razão. Fizera o trabalho praticamente sozinho por conta do machucado de Caio no “treino”. No entanto, Caio não estava melhor do que ele, tendo que limpar o estábulo. Os dois levaram uma bronca do capitão, assim como o soldado que os provocou. Entre ambas as tarefas Eduardo ficou com a menos ruim. Não imaginava o quão fedido devia estar o lugar naquele momento, uma vez que além dos cavalos normais, agora estavam acomodados lá também os animais da comitiva do cavaleiro.
“Sir Alóis Ballanger”, Eduardo ouvira esse nome tantas vezes nas últimas semanas que quase conseguia pronunciá-lo.
Pensar nisso era engraçado, tendo em vista que não sabia a escrita daquele mundo. Embora todos parecessem falar o mesmo idioma que ele, a escrita era um emaranhado estranho de rabiscos sem sentido. Muito embora isso talvez também fosse verdade para a maioria dos outros aldeões. Thierry, no entanto, parecia entender. O velho homem passava muitas horas do dia reservado em um quarto, que de acordo com Carmen que parecia gostar de espiar os outros, era repleto de papéis e livros.
Theo insistira em entrar no aposento muitas vezes, mas Júlia, Letícia e o próprio Eduardo rejeitaram a ideia. Por que ir atrás de fuxicar em livros que não sabiam ler? Além, é claro, de isso ser um completo desrespeito com o homem que os acolhera. Os pais de Eduardo não o criaram daquela forma.
Seus pais…
Pensar neles o fazia pensar em sua casa, em seus dias sossegados se preparando para o vestibular. Suas notas eram boas, estava progredindo no cursinho de inglês e até conseguiu uma namorada bonita para apresentar aos pais. No próximo ano estaria cursando engenharia ou administração, e levando Júlia para passear pelo shopping junto aos seus futuros amigos do campus.
Mas então, veio o dia da final.
Eduardo acordara animado para aquela manhã. Tinham ficado em segundo lugar no ano anterior e era seu último torneio. Vencê-lo seria uma boa memória para se lembrar e se gabar quando fosse mais velho. E ainda conhecera Júlia dias antes. A garota animada, de cabelos encaracolados e rosto rosado que ele acertara com uma bola quando a sua sala enfrentava a dela no carimba. Lembrar disso aquecia seu coração. Iria apresentá-la a seus pais.
Nunca tinha feito isso com as outras garotas. Elas não pareciam certas para aquilo, e nem lhe interessava a esse ponto também. Não que Eduardo fosse do tipo namorador, ao menos não se considerava como tal. Namorara quatro garotas antes de Júlia. Foram relacionamentos rápidos, superficiais, quase irrelevantes. Se ele pensasse bem, não conseguiria pensar em quase nada sobre elas ou sobre o pouco tempo que estiveram juntos, exceto por uma, mas isso não importava. Não naquele momento.
Eles iriam vencer, estavam em vantagem. O outro time, o da sala de Júlia, não tinha conseguido sequer um chute contra o gol direito. Eles tomaram um gol por descuido. No segundo tempo fariam mais um, talvez dois. Venceriam sem a menor dúvida. Era isso que Eduardo pensava naquele momento, enquanto eles mudavam de lados. Antes que aquele garoto estranho aparecesse, estendesse o braço e transformasse suas expectativas em desilusões.
Em apenas por um momento, pouco mais do que alguns segundos, tudo se tornou um caos aos sons dos gritos e dos disparos. O garoto derrubou um jogador do outro time primeiro, aquele que fez uma falta em Eduardo. Depois atirou contra o juiz, e então contra os outros garotos de sua sala e da de Eduardo.
Eduardo ficara paralisado sem acreditar no que seus olhos lhe mostravam. Era algo irreal, que só acontecia em filmes, séries. Eduardo sobrevivera apenas porque o garoto parecia mais interessado nos jogadores do outro time, mirando mais neles do que nos da sala de Eduardo. Isso não o impedira de matar Caio. Eduardo estava ao lado do amigo na hora. Ainda se lembrava do sangue espirrando da cabeça quando a bala o acertou.
De algum jeito conseguiu fugir e encontrar Júlia, mas eles acabaram encurralados por sua culpa. Por sorte, a arma do atirador falhou e ele não perdera a oportunidade. Se jogou contra o desgraçado. Batera nele com ambos os punhos. Cada golpe sendo impulsionado pela raiva e pelo medo. Mas sentiu uma dor em sua barriga. Seu pulmão ficou sem ar e seus membros perderam as forças. Ele não conseguia sequer falar. Sentiu seu corpo cair e por um momento tudo ficou escuro.
Lembrava de uma praia, e de entrar no mar. O rosto de seus pais em sua mente, Júlia, e a vida que lhe fora roubada. Então acordou naquela câmara repleta de pilares, e aí tudo aquilo começou. Não parecia ser verdade. Não era para ser verdade. Mas foi. Assim como naquele momento, aquele mundo era.
Por quê? Poderia se perguntar mil vezes e não encontraria respostas.
Um guarda com uma grossa pelagem na barba o chamou para ajudá-lo a descarregar uma carroça de lenha e Eduardo obedeceu. Estava cansado de carregar as sacas, mas precisava continuar seu trabalho.
Madeira, grãos, feno, leite, tudo era armazenado no forte. Havia outros depósitos também, mas aquela provavelmente era a reserva mais importante. Eduardo se perguntava como os lenhadores estavam se saindo, lembrando-se novamente do repentino ataque de ursos. Muitos morreram naquele. O próprio Eduardo estaria nessa conta se não fosse por Caio, e Pierce. O jovem homem arriscara a vida para o salvar quando Eduardo estava frente a frente com o monstro. E por isso Eduardo se sentia em dívida.
Após a madeira, veio outra tarefa, e depois outra, sem pausas, à exceção de sua refeição diária. E assim o dia se passou sem que Eduardo percebesse. Já era tarde e em breve seu “turno” terminaria. Ele estava louco para ver Júlia. Ela e as outras garotas perguntariam como fora o dia de soldado, e ele deixaria Caio falar por ambos. Eduardo não se sentia parte da guarnição, uma vez que tudo que fizera fora trabalho braçal e de limpeza, no entanto, não se importava com isso. Preferia estar ali do que lá fora com os ursos. Já havia visto morte demais, e provado dela também.
O soldado encarregado de lhe conceder tarefas o dispensou, e Eduardo cruzou o pátio em direção aos estábulos, onde Caio esperava sentado sobre um banco de madeira. De longe sentiu o fedor de cavalo que permeava o local. Caio parecia não se importar tanto com o odor, pela forma como estava sentado.
— Tá melhor do pé? — Eduardo perguntou.
— Só dói quando eu mexo — falou Caio agitando levemente a perna, com uma careta de dor.
— Vamos, tá na hora de ir embora — Eduardo se abaixou para que Caio apoiasse seu corpo no dele.
— Beleza, mas antes deixa aquela luta acabar — Caio apontou para o local onde o treino de espadas ocorria.
Era um tanto distante, então Eduardo enxergava com dificuldade. Caio parecia não ter problemas pela forma que assistia a tudo calmamente.
— Cara, aquele desgraçado é bom mesmo, não foi a toa que quebrou o meu pé — Caio falou sem tirar os olhos da luta.
— Não tá quebrado.
— Como sabe?
— O osso do teu pé deve ser tão duro quanto o da tua cabeça.
— “Há, há”, muito engraçado — Caio respondeu enquanto revirava os olhos.
Eduardo olhou novamente para onde os soldados treinavam. Pareciam incansáveis, uma vez que sempre ouvia o som de espadas se chocando toda vez que passava pelo pátio. Talvez o ataque de ursos os tenha deixado mais agitados, ou então a visita do cavaleiro, ou ambos.
— Completos amadores, não? — Alguém disse ao seu lado, fazendo Eduardo quase dar um salto de surpresa. Desde que o urso saíra da água naquele dia ele se tornara desconfiado com o que não percebia vindo pelas suas costas.
Para seu azar não era um urso o dono da voz. Era o soldado loiro, “Lohan” era seu nome. Ele ostentava o mesmo sorriso presunçoso de sempre.
— Parecem muito bons para mim — Caio observou, ainda sem tirar os olhos da ação.
— Só um deles, pelo que posso ver, tem alguma instrução, mas ele parece mais interessado em humilhar os demais do que em ensinar apropriadamente. Não vou julgá-lo, afinal cães, quando maiores que os outros, agem como lobos, mesmo que nunca tenham visto um de verdade. Não acha isso também, Edward?
— Como sabe o meu nome? — “Por que fala desse jeito?”, Eduardo queria dizer.
Na verdade, todos do vilarejo o chamavam daquele jeito, e ele não entendia o porquê.
— Goblins, ursos carmim, matar essas coisas tornam alguém famoso em um vilarejo pequeno. Ainda mais se estão sobre a proteção de alguém como sir Thierry, “o abençoado”.
De novo o uso do “sir” …
— “O abençoado”, o que isso quer dizer? — Caio perguntou.
Lohan arregalou levemente seus olhos verdes, e então deixou escapar um pequeno riso.
— Se vocês realmente não sabem, vou explicar depois, agora me deem licença, tenho de fazer algo — Ele começou a andar.
— Para onde vai? — Eduardo perguntou.
— Mostrar aqueles cães como é um lobo de verdade — respondeu Lohan enquanto se afastava.
Foi em direção a roda de homens assistindo a disputa – pelo menos uns dez – e se pôs em meio aos dois homens lá dentro, falando com o que machucara Caio. Eduardo não podia ouvir o que falavam, mas o outro homem saiu do meio do círculo, deixando apenas Lohan e o soldado que Caio enfrentara, um de frente para o outro.
— Eles vão lutar — Caio afirmou o óbvio.
— É o que parece — disse Eduardo.
Lohan de repente tirou algo de sua roupa e jogou para o seu oponente, Eduardo não conseguiu ver o que era.
— Ei, o que era aquilo? — perguntou para Caio, que demonstrava uma visão superior a sua.
— Um frasco.
— De que?
— Isso eu não sei.
Eduardo forçou a sua vista para assistir ao embate. Como queria ter recebido a boa visão do Caio daquele maldito deus.
O homem levou o conteúdo do pequeno frasco à boca e então avançou contra Lohan. O jovem recuou enquanto seu oponente avançava com uma tempestade de golpes, reverberando o som de aço pelo pátio enquanto as espadas se chocavam. Mesmo a distância, Eduardo notou que o soldado mirava na parte superior do corpo de Lohan, tentando acertar sua cabeça. Ambos usavam espadas cegas, no entanto um golpe daqueles ainda podia ser perigoso, como Caio bem sabia.
O soldado gritava com fúria enquanto avançava. A velocidade e a aparente força dos ataques faziam Eduardo engasgar-se, se perguntando se poderia lidar com aquilo. Lohan, no entanto, movia-se de forma quase suave enquanto aparava cada golpe com uma velocidade igualmente surpreendente.
“Mas não ataca, por quê? Não encontra nenhuma brecha?”.
— Ele está sorrindo — disse Caio.
— Que?
Caio apontou na direção dos dois.
— Aquele loiro. Ele tá só fugindo enquanto sorri.
Eduardo olhou de novo para os dois e notou que o cavaleiro ficara mais lento.
“Ah, claro”, pensou, “Ele está só brincando”.
De repente o homem parou de avançar e então Lohan partiu para a ofensiva. Não havia comparação. Eduardo mal via sua espada, e o soldado não parecia melhor. Ele recebeu ao menos umas três pancadas, todas nos braços. Mas sempre que acertava uma, Lohan parava e deixava seu oponente se recompor, antes de avançar novamente. Após mais algumas investidas, o soldado caiu, incapaz de continuar. Lohan passou por ele, dando tapinhas em seu rosto, antes de voltar para onde Eduardo e Caio estavam.
— Foi um ótimo passa tempo — declarou com um sorriso de satisfação.
— Mandou ver, acabou com ele — Caio falou com voz animada. Ver o homem que o humilhou recebendo o mesmo tratamento deveria ser reconfortante.
— Acredito que eles agora saberão reconhecer a diferença deles para um lobo, certo Edwardo?
— Se você diz.
Lohan sorriu, e então olhou para a direção do sol.
— Bem, o sol em breve irá se pôr e parece que, meu senhor, ainda demorará um pouco por aqui. Vocês podem ir na frente e preparar a recepção. Iremos depois.
— Recepção de que? — Eduardo disse confuso.
— Meu senhor fará uma visita a sir Thierry essa noite. Então nos encontraremos em sua casa, por isso até lá. Conversaremos mais à noite — Ele olhou de novo para Eduardo, fez uma pequena mesura e se afastou.
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